

A nova política da Meta: desinformação, discurso de ódio e infração a direitos fundamentais
Os primeiros dias de 2025 trouxeram novidades no campo da regulação de plataformas digitais. A virada de posicionamento político extremamente danosa anunciada pelo CEO da Meta, Mark Zuckerberg, causou alarde no mundo inteiro. E a notícia nos atinge frontalmente, especialmente quando o debate de regulação de plataformas digitais está tão aquecido no Brasil, em virtude do julgamento das ações no STF sobre o art. 19 do Marco Civil da Internet.
As medidas anunciadas pela Meta são desastrosas do ponto de vista de combate à desinformação e à violência nas plataformas da empresa. O anúncio de Zuckerberg, quem tem por título “mais discurso e menos erros”, explicita a substituição de checadores de fatos por um sistema de notas comunitárias, semelhante ao que acontece no X, ex-Twitter, e a redução dos filtros de moderação de conteúdo, que serão mantidos apenas para violações consideradas graves (terrorismo, exploração sexual infantil, drogas e fraudes). Fica demarcado, portanto, que não mais haverá um combate ativo contra desinformação, discurso de ódio e violência contra grupos mais vulneráveis, como mulheres, pessoas LGBTQUIAP+, negros, imigrantes, entre outros. Tudo isso em nome de uma pretensa “liberdade de expressão”.
O que acontece, na realidade, é um alinhamento político da empresa ao lado musk-trumpista da força, ou seja, uma defesa da liberdade de expressão como direito absoluto, que acaba por permitir, inclusive, o uso de violência no discurso sem qualquer consequência dentro das plataformas.
É importante ressaltar que já existem falhas na moderação de conteúdo das plataformas digitais que vêm sendo sistematicamente denunciadas. Remoção de conteúdos legítimos sem explicação, suspensão de contas sem a devida transparência e sem devido processo ou conteúdos que infringem a lei e as políticas das empresas e mesmo assim não são removidos são casos constantes, pois a moderação automática, realizada por filtros algorítmicos, tem suas limitações. Mas a ausência completa desses filtros nos coloca numa situação muito mais vulnerável, já que agora não haverá nenhuma barreira aos casos absurdos.
O pronunciamento de Zuckerberg, contudo, diz que os esforços empreendidos pela empresa estariam prejudicando usuários inocentes com a remoção indevida de conteúdo, o que justificaria, no entender do bilionário, a suspensão dos programas de moderação e de checagem de fatos.
A partir do anúncio, portanto, a nova política das plataformas da Meta permite “alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual, considerando discursos políticos e religiosos sobre transgenerismo e homossexualidade, bem como o uso comum e não literal de termos como ‘esquisito’”. A nova diretriz ainda diz que “permitimos conteúdo que defenda limitações baseadas em gênero para empregos militares, policiais e de ensino. Também permitimos conteúdo similar relacionado à orientação sexual, desde que fundamentado em crenças religiosas”.
O CEO ainda afirmou que a empresa voltará a recomendar conteúdo político, novamente sob a justificativa da defesa à liberdade de expressão.
Toda essa declaração vem carregada de preconceito e misoginia, afinal, depois do anúncio oficial, Zuckerberg ainda declarou, em entrevista ao podcast de Joe Rogan, que as empresas precisam de “mais energia masculina”. Importante lembrar que a criação de sua rede social está ligada à prática misógina de “avaliar” a atratividade de estudantes mulheres da Universidade de Harvard.
Mas essa foi apenas a cereja do bolo na guinada trumpista de Zuckerberg. Antes disso, ele já havia elogiado o presidente estadunidense publicamente, doado para seu fundo inaugural e nomeado um apoiador chave de Trump, Dana White (sim, aquele do UFC) para o Conselho de Administração da Meta.
E como isso chega ao Brasil?
Uma das declarações do CEO da Meta no vídeo em que anuncia as mudanças foi de que há “tribunais secretos de censura” na América Latina e na Europa, o que facilmente pode ser encarado como uma crítica ao Supremo Tribunal Federal e sua tentativa de regular o que o Congresso Nacional não foi capaz de fazer.
E aqui cabe uma nota: a tarefa de regular as plataformas, extremamente necessária, deveria ser exercida pelo Congresso Nacional, em sua atribuição constitucional estrita. Nesse caso específico, corremos um grande risco de, com o julgamento do STF, perdemos o art. 19 enquanto instrumento legal de avaliação sobre a legalidade de conteúdos em plataformas. Esse seria o pior dos cenários. Mas mesmo que o STF opte por uma interpretação do dispositivo conforme a Constituição, ainda faltarão medidas de transparência e devido processo que são fundamentais para a segurança dos usuários nesses ambientes. Ou seja, nossos deputados federais e senadores precisam agir, já que o STF jamais dará conta de suprir a necessidade regulatória.
Mas a declaração sobre supostas “cortes secretas de censura” feita por Zuckerberg certamente decorre da batalha travada pelo X, ex-Twitter, com o STF, a ponto de a rede ter sido suspensa em todo o país. O certo é que as plataformas que quiserem operar no Brasil devem seguir as leis locais e as ordens judiciais, respeitando a soberania brasileira, o que foi reafirmado pelo Ministro Alexandre de Moraes em declaração pública durante cerimônia que relembrou os ataques de 8 de janeiro, que, aliás, foram arquitetados utilizando plataformas digitais.
Além disso, após a repercussão negativa no Brasil, a empresa respondeu a uma notificação da Advocacia-Geral da União que o Programa de Verificação de Fatos será encerrado apenas nos Estados Unidos e não valerá para o Brasil. Porém, a nota confirma que as mudanças referentes à política de conduta de ódio já foram implementadas no país, com o objetivo de “garantir maior espaço para a liberdade de expressão”.
A sociedade civil também agiu. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) protocolou uma representação contra a Meta junto ao Ministério Público Federal em virtude da autorização do discurso que permite associar a transexualidade e a homossexualidade a doenças mentais sob o pretexto de “discurso político e religioso”.
Já a Coalizão Direitos na Rede, da qual o IP.rec faz parte e que conta com mais de 50 organizações da sociedade civil e da academia que defendem direitos digitais, publicou uma carta, que conta com mais de 200 assinaturas, pedindo que as plataformas do grupo Meta “revejam as medidas e assumam sua responsabilidade no combate ao discurso de ódio, à desinformação e à exploração online”, além de pedir aos “governos e organizações ao redor do mundo a intensificar os esforços para criar um arcabouço regulatório global que proteja os direitos digitais e garanta que o espaço digital seja um ambiente seguro, justo e democrático para todos.”
Tudo isso para dizer que ninguém está satisfeito com esse novo direcionamento tomado pela empresa. Quer dizer, aqueles que gostam de extrapolar os limites e disseminar desinformação e discurso de ódio contra grupos minoritários estão exultantes, supostamente albergados sob o manto da liberdade de expressão.
Mas por que isso nos afeta?
Boa parte das nossas vidas passa pela internet e pelos outrora chamados “jardins murados” das plataformas digitais. Queiramos ou não, as regras impostas pelos controladores desses ambientes fazem parte do nosso cotidiano, da sociedade contemporânea hiperconectada. Quando essas regras são modificadas de forma a permitir a violação de direitos fundamentais, elas precisam ser revistas.
Além disso, as pessoas mais vulneráveis terão, ao contrário do que se quer com essas medidas, sua liberdade de expressão tolhida, já que, por estarem ainda mais expostas, pensarão duas vezes antes de dizer o que pensam em plataformas da Meta. Ou seja, mais poder para quem oprime, menos voz aos oprimidos.
As novas regras de moderação favorecem, portanto, um ambiente violento e desinformativo, muito propício para a expansão do modus operandi da extrema-direita, que se utiliza de uma desinformação que reforça preconceitos para propagar suas ideias. E isso pode ser particularmente danoso em períodos eleitorais, como vimos acontecer nos pleitos recentes, já que a disseminação de mentiras e preconceitos se alastra na internet, atingindo milhares de pessoas, tudo baseado em algoritmos calibrados para favorecer este tipo de conteúdo viral. É premente uma regulação que proteja direitos dos usuários.
Próximos passos dessa novela
O cenário da regulação de plataformas digitais no Brasil está aquecido pelos últimos movimentos. A AGU realizou uma audiência pública para receber contribuições de especialistas e da sociedade civil, além das próprias plataformas, mas estas não estiveram presentes. Há notícias dando conta também de que o governo federal planeja negociar com o Congresso Nacional o envio de um novo projeto de lei sobre o tema, em que as plataformas estariam submetidas a um “dever de precaução”, semelhante ao dever de cuidado descrito no Digital Services Act europeu. Mas a decisão, aparentemente, depende da conclusão do julgamento das ações no STF.
E falando nisso, esse é outro capítulo que teremos que observar. Após os votos dos Ministros Toffoli e Fux, relatores das duas ações em julgamento, que trouxeram imprecisões técnicas e teriam consequências prejudiciais aos direitos humanos, chegando inclusive a inovar exageradamente no ordenamento jurídico, colocando obrigações e novas regras às plataformas, o que não seria possível do ponto de vista constitucional, o Ministro Barroso, presidente da Corte, votou de forma mais equilibrada, ponderando direitos, acolhendo a diversidade de atores impactados e refletindo sobre a proporcionalidade em relação às competências do Judiciário nesse processo.
Segundo a nota publicada pela Coalizão Direitos na Rede, “o voto do ministro Barroso concilia os questionamentos abertos pelos recursos analisados com as limitações legais e institucionais do STF”, além de apresentar “caminhos interpretativos concretos, com hipóteses de aplicação de um regime de exceções, critérios de deveres colaterais e mecanismos de controle social. Ao mesmo tempo em que oferece respostas mais equilibradas, o voto mantém o espaço regulatório que é de competência do Congresso.”
A questão aqui é: o novo direcionamento da Meta pode mudar o cenário de votos na Corte, numa tendência de fechamento do cerco às plataformas, o que pode ser ruim também para nós, usuários. De toda forma, é preciso que os Ministros tenham em mente que sua competência de julgamento tem limites, os quais não podem ser ultrapassados sob pena de infração ao princípio da tripartição dos poderes.
Ao fim e ao cabo, a nova política da Meta põe em risco a diversidade e a pluralidade de ideias necessárias à construção de uma sociedade justa, igualitária e democrática.

Raquel Saraiva
Presidenta e fundadora do IP.rec, é também graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestra e doutoranda em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2017). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Algoritmos e Inteligência Artificial, Privacidade e Vigilância e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada, mas também se interessa pelas discussões sobre gênero e tecnologia.