O ano de 2019 no Brasil não começou fácil. Dia 13 de março, brasileiros e estrangeiros ficaram perplexos com a notícia de que dois atiradores haviam assassinado 8 pessoas, ferindo outras 11 e depois cometendo suicídio, num ataque a uma escola na região metropolitana de São Paulo, na cidade de Suzano. Tragédia. Após um desastre destas proporções, muitos questionamentos aparecerem.
Logo após o ataque, tivemos contato com o perfil dos assassinos. Uma ficha detalhada de quem eram, o que faziam da vida e fatores que poderiam tê-los levado a tal atitude. Entre os fatores estavam o bullying, o mau relacionamento com alguns familiares e o uso exacerbado da internet e/ou jogos de tiro. Todos estes pontos merecem cuidados e devem ser estudados para evitar novas tragédias. Muito foi publicado sobre a ligação dos assassinos a tecnologias, porém necessitamos afastar hipóteses sem respaldo com a realidade, como culpar a internet e videogames.
Vamos falar do ocorrido: não foi o primeiro ataque desse tipo. Desde 2002, o Brasil vem sofrendo com atos bárbaros semelhantes, contudo nos últimos ataques que tivemos parece que há um padrão entre os atiradores: jovens que passavam por momentos difíceis, seja bullying ou desavenças familiares, além de serem “digitalmente ativos”. Porém, como professor da área de tecnologia, irei focar apenas na área que me cabe.
Após o crime de Suzano a investigação já apontava que os atiradores supostamente podem ter recebido apoio do fórum Dogolachan, local onde os usuários debatem sobre temas “moralmente questionáveis” e que foi fonte para os assassinos se informarem e até serem incentivados a como fazer com que a tragédia ocorresse. O fórum foi criado em 2013. Seu criador hoje cumpre pena de 41 anos de prisão, foi condenado por racismo, incitação ao cometimento de crimes, associação criminosa, divulgação de pedofilia e terrorismo.
Foi noticiado que o fórum Dogolachan está na deep web. Muitas vezes, as pessoas mencionam a deep web quando, na verdade, estão se referindo à dark web. Em todo caso, o termo deep web dá medo em muitas pessoas. Então, antes de seguirmos, vamos explicar no que a deep web difere da nossa web tradicional. A web que nós conhecemos é a surface web, portanto a camada mais superficial. Nesta região, estão boa parte de todas as coisas que conhecemos. Falando assim, parece que a surface web representa boa parte de toda internet, mas representa apenas 10%, aproximadamente. Uma analogia muito utilizada para explicar estas regiões da internet é a imagem de um iceberg. Na superfície vemos apenas uma pequena parte de gelo, o grande volume está abaixo. A surface web é portanto a ponta deste iceberg.
Então 90%, aproximadamente, da internet é o que chamamos de deep web? Calma. Ainda temos que apresentar o que é a dark web. Dark web é uma coleção de sites que são visíveis publicamente, mas ocultam os endereços IP dos servidores que os executam. Isso significa que qualquer um pode visitar um site da dark web, mas pode ser muito difícil descobrir onde eles estão hospedados ou por quem. Ou seja, dark web é a uma pequena parte da deep web. Propositalmente, a dark web é mantida escondida e não pode ser acessada por nenhum dos nossos navegadores comuns. A deep web, então, é composta por conteúdos que não podem ser encontrados por mecanismos de busca. Geralmente boa parte deste conteúdo necessita de uma autenticação do usuário para acessá-lo. Portanto, não é um conteúdo público na internet.
Para garantir o anonimato na navegação desta área mais profunda da internet não é apenas necessário o uso do navegador Tor, é preciso um pouco mais. Em novembro de 2017, foi descoberta uma vulnerabilidade do próprio navegador Tor, que ficou conhecida como TorMoil e permitia que um computador se conectasse diretamente a outro. Com isto, acabávamos tendo uma maneira de rastrear o tráfego até o usuário, mesmo que ele estivesse navegando pelas chamadas redes onion. Para quem ainda não conhece o funcionamento do navegador Tor, ele se diferencia dos navegadores tradicionais pois utiliza mais artifícios de criptografia durante seu tráfego na web, conectando-se a diferentes máquinas e servidores. Por utilizar várias camadas de criptografia sobre seus pacotes, podemos fazer a comparação com uma cebola, onde várias camadas sobrepostas desde da casca até seu miolo. Esta analogia não é à toa, visto que a cebola é o ícone deste navegador e dá nome a sua rede, a rede onion (cebola, em inglês).
O Tor visa dificultar a identificação exata do usuário ao usar um sistema operacional próprio que interliga a toda rede de usuários do navegador. Como o Tor dificulta a identificação dos sites, muitos usuários largaram os navegadores e aplicativos convencionais para utilizar o Tor. Para você de fato fazer uma navegação anônima pela web, é interessante que você navegue utilizando uma VPN e, até mesmo, o Sistema Operacional portátil TAILS, que é baseado no Debian Linux e apaga, realmente, todos os seus dados durante a sua utilização. O TAILS, por exemplo, já tem o Tor integrado.
Garantir o anonimato na sua navegação não quer dizer que você vai “aprontar” digitalmente. Muitas vezes, o anonimato é necessário para que possamos ter bons frutos. Veja o caso do WikiLeaks, onde o anonimato dos usuários fiz com que a plataforma recebesse e divulgasse pesadas denúncias e materiais que revelavam ações polêmicas, como, por exemplo, invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos, problemas sobre as eleições presidenciais estadunidenses de 2016 ou dados sensíveis sobre a guerra no Iraque.
O Dogolachan não é o único fórum em que você pode se comunicar anonimamente. Temos exemplos de sites com tal característica na surface web, como o 4chan. Talvez o pioneiro em permitir essa comunicação anônima entre os usuários, o 4chan permite que o usuário poste e debata sobre qualquer assunto e, hoje, acaba se distanciando da ideia inicial do seu criador, que criara o 4chan apenas para aproximar pessoas que gostam de mangás e animes. Acontece que, diferente do 4chan, os usuários que buscavam o Dogolachan eram extremistas que destilavam ódio em postagens anônimas neste fórum da dark web.
Obviamente não podemos dizer que toda a deep web é ruim. O Wikileaks, por exemplo, tem seu trabalho na publicação de matérias que revelam atrocidades cometidas por governos e teve sua origem na deep web. Como o Wikileaks, há vários endereços com espírito libertário e cuja proposta é promover o acesso à informação, fornecendo, por exemplo, contato com livros, como o “Jotunbane’s Reading Club” ou o “Biblioteca Imperial de Trantor”. Mesmo na surface web, temos ferramentas “responsáveis”, como as de apoio a quem é vítima de bullying e se sente abalado emocionalmente, promovida pelo próprio Facebook.
Um segundo ponto, também mencionado, foi o de que jogos violentos podem também ter influenciado a conduta dos assassinos. Bem… se voltarmos no tempo, nossos pais e avós certamente brincaram de polícia e ladrão, e nenhum deles se desvirtuou no caminho, não é verdade? Não existem estudos que comprovem o aumento da violência por conta dos jogo. Existem, por outro lado, pesquisas provando que a prática desse tipo de modalidade de jogo não altera a personalidade de ninguém.
A minha motivação para fazer este texto foi instruir acerca das ferramentas que temos e defender que o uso delas funciona como uma carta coringa. Muitas pessoas só veem o lado negativo das ferramentas e atuam para proibir determinado comportamento. É o que ocorre com as movimentação de deputados querendo criar/alterar a legislação vigente para “barrar jogos de tiro” (PL 1577/2019, da Câmara dos Deputados).
Depois disso vão proibir o anonimato? O sigilo? Afinal, esse é um argumento do senso comum e que pode ser utilizado como atrativo para que criminosos de diversas espécies se comuniquem. Por outro lado, o que se constata, de fato, é que o anonimato na web não é, em si, um problema, visto que se apresenta como principal ferramenta proteção de nossa privacidade e para a possibilidade de denúncia de violação de outros direitos humanos. Entre vários exemplos de ferramentas que possibilitam nossa privacidade, fiquemos com o do buscador DuckDuckGo.
Em conclusão, bem se vê que este tipo de iniciativa, instaurada ao sabor do clamor popular e contra os resultados de pesquisas sérias, em nada auxilia na solução de um problema tão complexo e sensível. Verificamos, também, que há uma “salada de conteúdos” em fóruns que garantem o anonimato. O problema, portanto, não é existir fóruns desse tipo, que tem no anonimato uma política e um princípio, mas, sim, o conteúdo que os usuários compartilham. Na dark web, é, infelizmente, comum acharmos, por exemplo, pornografia ilegal. Vimos também que jogos não afetam caráter algum dos players. De onde vem o perigo? Eu te respondo: de nós mesmos, seres humanos.
Fontes:
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