Publicado em: 13 de junho de 2025.


Tecnologia e violência de gênero

E se alguém vigiasse a sua rotina, soubesse onde você esteve, com quem falou e o que escreveu — tudo isso sem sua permissão? Para muitas mulheres, essa vigilância é realidade. À medida que a tecnologia se infiltra em todos os aspectos da vida cotidiana, também se torna ferramenta de controle, assédio e violência. E essa violência tem gênero.

No ambiente digital, práticas como perseguição, vazamento de dados íntimos, invasão de contas, manipulação de imagens e uso de softwares espiões afetam de forma desproporcional meninas e mulheres. São formas de agressão que escapam dos olhos do público, mas deixam marcas profundas. 

O contexto brasileiro é particularmente preocupante: Em 2022, o número de casos de perseguição (stalking) aumentou quase 80% em relação ao ano anterior, passando de 31.389 para 56.560 registros. Apesar do país ter tipificado o crime de stalking em 2021, ainda há uma imensa lacuna entre o que está previsto na legislação e as formas como a tecnologia tem sido usada para viabilizar esse tipo de violência. 

O uso dessas tecnologias raramente exige conhecimentos técnicos avançados, o que os agressores mais usam é o acesso emocional, a confiança construída nas relações íntimas e a manipulação afetiva. Falar sobre esse assunto é, portanto, reconhecer que a segurança digital não pode ser pensada apenas como proteção contra hackers ou vazamentos, mas também — e sobretudo — como defesa contra a violência doméstica, o assédio e a vigilância invasiva.

Afinal, o que é Stalkerware?

Se o controle sobre a vida digital das mulheres se tornou uma extensão da violência de gênero, o stalkerware é hoje uma das armas mais eficazes dessa lógica de dominação. Para compreender a gravidade desse fenômeno, é preciso ir além entender o que são essas ferramentas, como funcionam e por que representam um risco tão alarmante.

O termo stalkerware refere-se a um tipo de software espião (spyware) instalado, na maioria das vezes, sem o conhecimento da vítima, com o objetivo de monitorar suas atividades digitais em tempo real. Esses aplicativos são capazes de registrar mensagens, chamadas, localização via GPS, histórico de navegação, fotos, vídeos e até mesmo ativar remotamente microfones e câmeras — tudo isso operando de forma invisível, sem ícones ou notificações no sistema do dispositivo. O stalkerware transforma o celular em uma ferramenta de vigilância pessoal, permitindo que o agressor acompanhe, em detalhe, a vida da vítima à distância.

Como demonstrado no relatório The Predator in Your Pocket, produzido pelo Citizen Lab, o uso dessas tecnologias está profundamente enraizado em dinâmicas de intimidade e poder. Não se trata de um ataque hacker sofisticado, em geral quem instala o stalkerware é alguém próximo — um parceiro atual ou ex, um familiar, alguém que conhece as rotinas da vítima, seus padrões de desbloqueio, suas senhas. Apesar da aparência técnica, o uso do software de stalkerware, por si só, não exige conhecimentos avançados, e é justamente essa combinação de facilidade técnica e dano psicológico profundo que faz do stalkerware uma ameaça tão preocupante.

Mais preocupante ainda é o fato de muitos desses programas serem vendidos como ferramentas “legítimas”, entrando na categoria dos chamados “softwares de uso dual” — isto é, são aplicativos que se apresentam, por exemplo, como recursos para controle parental, segurança corporativa ou proteção antirroubo, mas que podem ser facilmente utilizados para a vigilância íntima e abusiva. Algumas empresas do setor, como aponta o estudo do Citizen Lab, não apenas permitem esse uso, como o incentivam — usando táticas de otimização de busca (SEO) para direcionar suas páginas a pessoas que procuram “como espionar o celular do parceiro”. 

Esse cenário cria uma zona cinzenta legal, onde a responsabilidade é frequentemente diluída. As empresas se escoram na ambiguidade da finalidade de uso, enquanto os agressores se beneficiam da ausência de regulação específica ou fiscalização eficaz. Muitas dessas plataformas não oferecem qualquer proteção à pessoa monitorada: não há notificação, não há consentimento, e os dados coletados podem inclusive ser compartilhados com terceiros ou expostos em violações de segurança. Na prática, o resultado é que milhares de pessoas, especialmente mulheres, têm sua privacidade invadida diariamente com ferramentas disponíveis a poucos cliques.

Stalkerware como facilitador da violência de gênero

Essas ferramentas não apenas violam direitos individuais, mas operam como extensões tecnológicas de uma violência estrutural que se perpetua nas relações íntimas. É nesse contexto que o stalkerware se revela não apenas como uma ferramenta de vigilância, mas como um facilitador direto da violência de gênero.

Em um estudo intitulado The tools and tactics used in intimate partner surveillance, produzido a partir de uma análise realizada em  fóruns online que discutem o monitoramento de celulares e outros meios de vigilância por parceiros íntimos, constatou-se que a infidelidade é frequentemente utilizada como uma das justificativas dadas pelos usuários para legitimar a vigilância e a violação de privacidade dos seus parceiros. 

Foi observado também que, além da busca por apoio emocional e conselhos técnicos sobre ferramentas de vigilância, esses fóruns também são usados por empresas para divulgar spywares, por meio práticas de spam e estratégias de SEO, permitindo o acesso facilitado a esse tipo de produto a partir de simples buscas no navegador. Embora existam iniciativas de dissuasão, pessoas emocionalmente vulneráveis e agressores encontram nesses espaços orientações e incentivos que intensificam práticas abusivas, incluindo violência psicológica, patrimonial e sexual. 

Apesar de nem todos os softwares de stalkerware terem as mesmas capacidades técnicas, a maioria desses programas consegue monitorar mensagens de SMS, aplicativos de bate-papo, arquivos de mídia armazenadas como fotos e vídeos, registro de chamadas, tráfego da web e a localização via GPS. Nesse cenário, as vítimas têm seus direitos violados não só pelos agressores que instalam os stalkerware, mas também pelas empresas responsáveis por esses aplicativos, que acessam seus dados pessoais, muitos deles sensíveis, sem o consentimento da vítima e sem garantir a segurança dessas informações. Muitas empresas chegam a basear as suas políticas de privacidade apenas nos direitos dos controladores do software, deixando as vítimas vulneráveis e sem proteções adequadas. Em alguns casos, esses dados podem, inclusive, ser explorados comercialmente, sem que a vítima sequer tenha conhecimento disso.

Abusabilidade: segurança digital sob uma perspectiva de gênero 

Tanto as empresas que desenvolvem stalkerware quanto aquelas responsáveis por softwares de uso dual frequentemente não reconhecem como suas tecnologias podem ser usadas para práticas abusivas, especialmente contra mulheres e meninas. Nesse sentido, Angelika Strohmayer, Rosanna Bellin e Julia Slupska, a partir de abordagem epistemológica feminista, defendem que a forma como entedemos a segurança das pessoas em dispositivos tecnológicos deve ser repensada, uma vez que apenas a preocupação contra ameaças externas, como ataques, falhas, invasões, vazamentos de dados ou roubo de informações não é suficiente para garantir proteção das pessoas. 

Elas defendem, portanto, a ampliação do conceito de segurança, de modo que esta considere também os impactos das tecnologias no bem-estar físico, emocional e social das pessoas, em especial a de mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQIA+, imigrantes e pessoas com deficiência, que são, em geral, as principais vítimas dos danos causados pelo mal uso das tecnologias. 

Como forma de enfrentar esse problema, propõe-se a ampliação da noção tradicional de usabilidade — que foca em tornar o uso de sistemas mais fácil e eficiente — para incluir o que chamam de “abusabilidade”. Esse conceito considera como o design e as funcionalidades de uma determinada tecnologia podem ser utilizados de maneira prejudicial e maliciosa, especialmente contra grupos vulneráveis.

O uso desse conceito é fundamental na análise de tecnologias que facilitam a violência de gênero, como os spywares. A partir dessa perspectiva, busca-se refletir sobre como softwares, mesmo que desenvolvidos para finalidades aparentemente legítimas, podem ser apropriados para práticas de exploração e abuso, sobretudo em contextos de relações íntimas. Incorporar a análise da abusabilidade desde as etapas iniciais de desenvolvimento de programas, aplicativos e sistemas  permitiria antecipar e mitigar riscos associados à sua disponibilização no mercado, promovendo uma abordagem mais ética e responsável.

Panorama brasileiro: desafios e lacunas

Até antes da lei 14.132/2021 que versa sobre o crime de perseguição (stalking), o Brasil não utilizava uma nomenclatura padrão para falar da perspectiva tecnológica, nem da particularidade do crime acontecido no âmbito do relacionamento. Tradicionalmente, a compreensão mais próxima do stalkerware vinha do contexto de cyberstalking em redes sociais, jogos online e fóruns, sem considerar a “espionagem” direta em aparelhos por meio de aplicativos de uso dual. 

Durante a pandemia, em 2020, o tema ganhou atenção pelos altos números de denúncias de violência de gênero praticada por companheiros das vítimas. Enquanto fora do país já se tratava do tema apontando a urgência e até perspectivas de resolução e alerta, o Brasil ainda caminhava a passos lentos, mesmo que relatórios de organizações especializadas no assunto já apontassem que o país estava em segundo lugar no uso de stalkerware.

Após a promulgação da Lei nº 14.132/2021, o debate passou a ganhar espaço nos meios acadêmicos e na sociedade civil, deixando o termo genérico “perseguição digital ou eletrônica” no contexto do cyberstalking para o uso do nome stalkerware. Essa evolução não apenas ampliou a discussão pública sobre os perigos dessas ferramentas, mas também fomentou publicações acadêmicas multidisciplinares, envolvendo direito, tecnologia, serviços sociais e guias orientativos produzidos pela sociedade civil.

O país ainda tem muito a avançar no assunto, como por exemplo na adoção de responsabilização mais severa para circulação do aplicativo e empresas desenvolvedoras. Contudo, o fato da discussão se tornar mais popular, sobretudo em uma era da imersão virtual que estamos vivendo e diante do surgimento de novos contextos de violência, nos faz vislumbrar boas oportunidades de mudança, tanto na perspectiva atenta da sociedade para os cuidados, quanto na atenção de parlamentares para a contínua urgência do assunto. 

Projeto Expondo Stalker(ware):  contribuições e objetivos

Diante deste cenário, o IP.rec, com apoio da Embaixada do Reino Unido no Brasil, lança o projeto Expondo Stalker(ware) com o objetivo de compreender de forma aprofundada como softwares e aplicativos, muitas vezes disfarçados de ferramentas de proteção, têm sido utilizados para monitorar e controlar mulheres. Por meio de uma metodologia multidisciplinar, este fenômeno será analisado a partir de três frentes principais que incluem pesquisa teórica, levantamento empírico e ações de conscientização. 

É importante salientar que esse enfrentamento só será possível por meio de uma abordagem interseccional e colaborativa, que reconheça como diferentes formas de opressão (gênero, raça, classe, sexualidade) se entrelaçam e impactam desproporcionalmente determinados grupos. Mulheres negras, indígenas, LGBTQIA+ e pessoas em situação de vulnerabilidade social são frequentemente as mais afetadas por tecnologias de vigilância e controle, seja pela exposição pública, pela ausência de respostas institucionais adequadas ou pela falta de acesso a mecanismos de denúncia e proteção. 

Nesse sentido, o projeto Expondo Stalker(ware) pretende contribuir com a produção de conhecimento científico sobre o tema, a partir do nordeste do Brasil, já que boa parte da produção acadêmica de referência sobre o tema é produzida no norte global e está disponível apenas em inglês. O projeto se compromete com a produção de conhecimento localizado e sensível às desigualdades sociais, ouvindo e envolvendo esses grupos na construção de soluções. Ao incorporar essas perspectivas desde o início da pesquisa, busca-se não apenas diagnosticar o problema, mas também fortalecer redes de apoio, promover justiça digital e garantir que ninguém seja deixado para trás na luta por direitos e segurança no ambiente virtual.

Mariana Canto

Diretora e Secretária Geral do IP.rec. Doutoranda em Direito (parte do cluster interdisciplinar Direitos Humanos, Democracia e Advocacy na Era Digital) pela Universidade de Stirling no Reino Unido. Mestra e Chevening Scholar 2021/22 em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) pela Universidade de Edimburgo, no Reino Unido. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, tendo estudado parte do seu curso na Universidade de Hamburgo, na Alemanha. Foi pesquisadora visitante e German Chancellor Fellow 2022/23 no Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB), na Alemanha. É mentora do programa Internet of Rights na ONG Article 19, no Reino Unido. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2018), trabalhou junto ao Secretariado do Internet Governance Forum na ONU. No IP.rec, participa de projetos nas áreas de “Privacidade e Vigilância” e “Multissetorialismo e Participação Popular”. Também tem interesse pelo estudo da regulação de algoritmos, assim como sua influência em relações assimétricas de poder.


Anicely Santos

Mestranda no Programa de Pós-graduação em Engenharia de Computação pela Universidade de Pernambuco (UPE). Formada em Análise e Desenvolvimento de Sistemas com especialização em Ciência de Dados e Analytics. Presidenta da Associação Python Brasil (2024-2025).


Carolina Branco

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). No IP.rec, atua nas áreas de Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada e Inteligência Artificial.


Luana Batista

Graduada em Engenharia da Computação pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e pesquisadora nas áreas de telecomunicações e inteligência artificial. No IP.Rec, atua na área de Algoritmos e Inteligência Artificial e no Observatório da Criptografia (ObCrypto).


Raquel Saraiva

Presidenta e fundadora do IP.rec, é também graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestra e doutoranda em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2017). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Algoritmos e Inteligência Artificial, Privacidade e Vigilância e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada, mas também se interessa pelas discussões sobre gênero e tecnologia.


Rhaiana Valois

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); participante do 41° Programa de Intercâmbio do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (PinCade); ex-integrante do Laboratório de Design Jurídico da USP e da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação (CDTI) da OAB/PE. No IP.rec, atua na área de Regulação de Plataformas Digitais.

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