Infiltrados no Congresso: conspiracionismo da extrema-direita no Twitter
Publicado em: 27 de outubro de 2023.
“Os fatos aqui relatados demonstram, exaustivamente, que Jair Messias Bolsonaro, então ocupante do cargo de presidente da República, foi autor, seja intelectual, seja moral, dos ataques perpetrados contra as instituições, que culminou no dia 8 de Janeiro”.
Trecho do relatório final da CPMI do 8 de janeiro, entregue ao Tribunal de Contas da União (TCU) no dia 26 de outubro de 2023.
Brasília, 8 de janeiro de 2023. Grupos de extrema-direita no Brasil protagonizaram um evento inesperado no Distrito Federal, com depredação de bens nos edifícios dos Três Poderes: Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto, como manifestação de revolta e descrença pelo resultado das eleições presidenciais brasileiras de 2022, na qual Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito para a presidência em uma disputa acirrada com o então presidente Jair Bolsonaro.
Os ataques se assemelham à invasão de apoiadores de Donald Trump ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, nos Estados Unidos, que virou um marco na história política norte-americana, após a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais de 2020. Um dos argumentos motrizes de ambos os ataques é a alegação de fraude na contagem de votos na urna, que não foi comprovada em ambos os países.
Por extrema-direita brasileira, considera-se um grupo ultraconservador (MORAIS, 2019), sustentado pelos pilares de Tradição, Família e Propriedade (TFP). No caso dos atos, a atenção está nos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, que surgiu como uma das personalidades representantes da ascensão da extrema-direita brasileira nos últimos anos. Quanto ao processo eleitoral e às instituições envolvidas nas eleições, acusam fraude na contagem de votos da urna eletrônica. Características identificadas no discurso da extrema-direita brasileira na atualidade são:
(i) a compreensão do indivíduo como investimento e como empresa, (ii) a propriedade privada como direito sagrado, (iii) o acúmulo de riqueza como principal índice de liberdade e de progresso individual, social e espiritual, (iv) a família cristã como fiadora dos valores morais, (v) a rigidez corporativa/hierárquica como princípio da organização social, (vi)a (re)aproximação entre Estado e Religião como garantia de hegemonia política dos grupos dominantes e (vii) o uso da violência como condição estruturante da ordem e do progresso. (MORAIS, 2019)
Para apurar os atos, ações e omissões ocorridos na data da invasão nos Três Poderes, foi instalada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro, no dia 25 de maio de 2023. A autoria do requerimento foi do deputado federal André Fernandes (PL-CE). Contou com o apoio de mais de 200 deputados e 30 senadores.
A tensão de disputa dicotômica entre direita x esquerda na Câmara dos Deputados concentrou-se na CPMI do 8 de janeiro no primeiro semestre de 2023. Parlamentares da oposição ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro chegaram a avaliar que essa comissão tinha um potencial maior de atingir o governo Lula do que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre reforma agrária e assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A instalação da CPMI do 8 de janeiro recebeu apoio não só de aliados do governo Lula, como uma oportunidade de investigar organizadores e financiadores envolvidos no ataque e encontrar ligações entre as ações antidemocráticas com o ex-presidente Bolsonaro e seus apoiadores, mas também foi amplamente apoiada por políticos e ativistas da extrema-direita, ainda que esse grupo seja acusado de incitar a violência do ocorrido.
O apoio da extrema-direita à CPMI surgiu principalmente após o depoimento do general Gustavo Henrique Dutra, ex-chefe do Comando Militar do Palácio do Planalto que estava de plantão no dia do acontecimento, na Câmara Legislativa do Distrito Federal sobre os atos do 8 de janeiro. A falsa notícia sobre o general ter confirmado que o presidente Lula teria “armado” os atos começou a ganhar força como argumento para teoria de que infiltrados da esquerda foram responsáveis pela depredação do patrimônio público.
O pássaro está livre: Twitter e Teorias Conspiratórias
Desde que Elon Musk, bilionário fundador da SpaceX e CEO da Tesla Inc., assumiu a direção do Twitter no dia 27 de outubro de 2022, a plataforma tornou-se um espaço ainda mais fértil e possível para a circulação e disseminação de fenômenos como desinformação, discurso de ódio e conspiracionismo, disfarçados de opinião e liberdade de expressão. O primeiro tweet de Elon Musk após a compra sintetiza a forma como o empresário defende a absoluta “liberdade de expressão” na rede, ainda que seja antidemocrática: “O pássaro está livre”.
Diversos ataques à democracia têm sido potencializados no ambiente online a partir da circulação de informações falsas e teorias conspiratórias que estimulam a articulação de ações que ferem o Estado Democrático de Direito, principalmente nas redes sociais. As plataformas digitais se tornaram espaços promissores para desinformação:
É exatamente por meio da comunicação em plataformas e aplicativos digitais que os chamados processos de desinformação vem se dando na atualidade -de propagação de notícias falsas, distorcidas, descontextualizadas e apócrifas que circulam em escala supra-industrial (BENKLERFARIS; ROBERTS, 2018).
A compreensão de que estamos atravessando uma crise estrutural de sentido (BERGER; LUCKMAN, 2004), na qual experienciamos uma fragmentação nos valores comuns e interpretações compartilhadas para justificar acontecimentos e legitimar crenças, ainda que contrárias a argumentos lógicos, colabora com a percepção de comunidades que se tornam quase autônomas na produção de sentidos na busca por respostas à realidade que vivem. Essa conjuntura reverberada nas instâncias de comunicação mediadas por plataformas digitais corrobora cada vez mais com o distanciamento de um horizonte comum de sentidos:
Esse processo guarda uma relação direta com nosso desenvolvimento tecnológico no campo da comunicação digital na medida em que, para além das segregações grupais e adensamento de comunidades restritas de indivíduos nas redes digitais, assistimos ao crescimento da perda de capacidade coletiva em consentir sobre um denominador comum acerca do que é real em relação ao que é falso, falacioso, inverídico […]. (AGGIO, 2021, pág.76)
A tendência de clima de opinião, observada por Noelle-Neuman (2018), também é uma óptica possível para refletir o efeito dominó que acontece quando determinado grupo expressa convicção sobre um fato e estimula a manifestação de outras pessoas a compartilhar e concordar com esse mesmo sentido, conferindo a impressão de coerência nessas assimilações da realidade.
Em uma sociedade conectada por redes digitais, essa dinâmica é favorecida ainda mais pela infodemia, definida por Araújo (2021) como uma “patologia da dimensão informacional” devido ao amplo alcance e rápida disseminação de informações falsas que se tornaram mais influentes na tomada de decisões do que as informações de qualidade. A lógica de sociabilidade de plataformas como o Twitter conecta e permite a interação de usuários de forma que fortalece sentidos de pertencimento e identificação, ainda que seja por falsas informações e teorias conspiracionistas.
Nesse contexto, teorias conspiratórias ganham solo fértil na busca pela verdade dos acontecimentos na sociedade. A crença sobre motivações ocultas que não são expostas ao público e a existência de agentes empenhados em esconder essa revelação se torna uma fissura na realidade que é apresentada pelas instituições para escapar da crise de sentido.
As conspirações se sustentam pela refutação dessas instituições que costumavam compartilhar valores comuns na sociedade. A busca pela revelação da “verdade” não existe com o propósito de encontrá-la, pois qualquer evidência ou fato contrários à crença conspiracionista são invalidados pelos seus apoiadores. Toda a trama construída precisa do fator obscuro para permanecer como válida, logo, a “verdade” nunca vem à tona.
Não importa, assim, a veracidade da crença. A resposta para a conspiração não são evidências e raciocínio lógico, mas sim a brecha para a dúvida na convicção da crença. Na perspectiva peirceana, esse mecanismo de fixação da crença é denominado como método da tenacidade, no qual a pessoa evita dúvidas e absorve apenas as informações que colaboram com as suas suposições:
A dúvida é um estado de desconforto e insatisfação do qual lutamos para nos libertar e passar ao estado de crença; enquanto este último é um estado calmo e satisfatório que não desejamos evitar, ou alterar por uma crença noutra coisa qualquer. Pelo contrário, agarramo-nos tenazmente, não meramente à crença, mas a acreditar exactamente naquilo em que acreditamos. (PEIRCE, 1877)
Porém, essa movimentação, apesar de intensificada, não é tão recente assim. A construção não só da campanha eleitoral mas do governo Bolsonaro teve como base o estímulo a teorias conspiratórias e informações falsas:
[…] Jair Messias Bolsonaro lidera um movimento social e preside seu país com base em decisões, implementações de políticas e discursos e pronunciamentos dirigidos à população cujos pilares fundamentais se assentam e justificam com base em teorias conspiratórias. (AGGIO, 2021, pág. 65)
O impulso a teorias conspiratórias como campanha política e forma de governo é uma tendência já observada no cenário político dos Estados Unidos. Jair Bolsonaro declarou diversas vezes à imprensa a sua inspiração no país, afirmando que “lá é o Estado Brasileiro que deu certo”. Em paralelo, na época em que ocorreu a invasão à Capitólio, citada anteriormente, a conta de Donald Trump foi suspensa permanentemente do Twitter e o político foi proibido de criar novos perfis na plataforma devido ao risco de incitar mais violência.
Historicamente, a narrativa de infiltrados políticos já foi bastante visitada em argumentos da esquerda revolucionária, principalmente em momentos críticos de repressão. Ranciére (2011) identificou a existência de uma “inversão ideológica” na qual grupos conservadores apropriam-se de discursos e crenças construídos pela experiência revolucionária e marxista, como é o caso de informantes e espiões.
A ‘verdade’ será revelada
A busca pela revelação da verdade e a suspeita de que articulações ocultas estão enganando a população ganhou amplo espaço no discurso da extrema-direita brasileira que apoia o ex-presidente Jair Bolsonaro no Twitter quando se trata dos atos do 8 de janeiro e a condução da CPMI sobre o caso.
Existe uma narrativa de que aliados do atual governo estão escondendo “a verdade”, enquanto os opositores estão atuando de forma imparcial e heroica para que sejam revelados os verdadeiros acontecimentos para a população. Defendem que houve uma manifestação pacífica por parte dos apoiadores do Bolsonaro, enquanto infiltrados da “esquerda”, normalmente sendo rotulados como filiados do PT, PSOL ou integrantes do MST, depredaram o patrimônio público durante uma manifestação legítima para desmoralizar um protesto justo contra o resultado das eleições presidenciais de 2022.
Circulou em diversos canais de comunicação da extrema-direita no Twitter uma matéria da Revista Oeste, veículo de direita que está alinhado ao “pensamento liberal-conservador”, como afirmam em seu portal online, sobre uma das suspeitas presas por organizar os atos do 8 de janeiro, conhecida como Ana Priscila Silva de Azevedo, querer ser convocada na CPMI para contar a “verdade”.
É dito na matéria que o advogado de Ana Priscila “reclama que o STF é um ‘mistério’ e não segue o rito processual”, demonstrando desconfiança quanto à atuação da instituição no caso. Alguns comentários de usuários afirmam que Ana Priscila seria uma das agentes infiltradas para incitar o vandalismo não só nos atos, mas também no grupo do Telegram, do qual ela fazia parte.
Outra matéria da Revista Oeste publicada em junho e compartilhada no twitter trata sobre a revelação de documentos antigos de infiltrados nos atos que comprovam filiação em partidos de esquerda. No texto, a revista destaca que “veículos de comunicação da grande imprensa e o próprio PT descartam a tese segundo a qual havia infiltrados no 8 de janeiro, mesmo com vídeos registrados pelos próprios manifestantes”.
Uma matéria do Jornal da Cidade Online trata sobre o surgimento da campanha “8 de Janeiro, Eu Sei a Verdade”, para “desmoralizar a esquerda”. No texto da notícia, que é um informe publicitário, é dito que “a comissão vai desmascarar muitos acontecimentos estranhos do fatídico dia 8 de janeiro”.
Notícias sobre Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do DF, também apareceram nas publicações do Twitter em junho por ter afirmado que “a verdade será revelada” em sua participação na CPMI. Seu advogado também ressaltou na matéria que a participação de Anderson na comissão “será importante para a expor a verdade”.
Não é a primeira vez que são registradas teorias sobre infiltração de agentes de “esquerda” em algum contexto. O conspiracionismo sobre Marxismo cultural no Brasil, conceito amplamente difundido por conservadores nos Estados Unidos, foi uma das concepções importadas da região norte-americana por Bolsonaro e seus apoiadores, principalmente Olavo de Carvalho. A ideia principal é a de que a “esquerda” se infiltrou e se apropriou da cultura, das instituições, como universidades públicas e escolas, e imprensa para manipular a população e corromper a família tradicional e, por isso, era preciso fazer um resgate do patriotismo e dos bons costumes pelo bem da nação.
Assim, não existe um consenso entre usuários da extrema-direita no Twitter quando se trata da eficácia da CPMI em “revelar a verdade”, mas é compartilhado o sentido de descrença e desconfiança quanto ao funcionamento das instituições públicas, que estão “corrompidas pela esquerda”, e a teoria de que infiltrados da esquerda estavam presentes nos atos de vandalismo no dia 8 de janeiro. Ou seja, mesmo com um relatório final da CPMI com mais de três mil páginas acusando Jair Bolsonaro como principal catalisador dos atos, a verdade que a extrema-direita procura nunca será revelada, porque ela foi supostamente usurpada pelas entranhas institucionais.
Referências
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USCINSKI, Joseph E. Conspiracy Theories: A Primer. Nova Iorque: Rowman & Littlefield, 2020.
Aline Melo
(ela/dela) Mestranda em comunicação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisadora do grupo IPÊ – Instituições, Públicos e Experiências Coletivas, ligado ao Departamento de Comunicação Social da FAFICH, UFMG. Atua principalmente nas áreas de Jornalismo sobre Ciência e Meio Ambiente, Divulgação Científica, Tecnologia, Política e Movimentos Sociais. No IP.rec, é coordenadora de comunicação e assessora de imprensa.