Publicado em: 16 de agosto de 2023


Em abril de 2019, o lançamento de um programa educacional, elaborado pelo então governo federal brasileiro, tomou forma de polêmica e perplexidade entre pesquisadores da área de Letras, Linguística e Educação do país. Trata-se da Política Nacional de Alfabetização (PNA), instituída pelo Decreto 9.765/19 e cujo objetivo geral era o de promover a alfabetização de todas as crianças até o 3º ano do ensino fundamental. Em agosto do mesmo ano, o Ministério da Educação (à época comandado por Abraham Weintraub) publicou uma cartilha orientadora destinada aos estados e municípios acerca da implementação da PNA. A polêmica a que nos referimos não reside no teor da nova política nem também na promoção de uma cartilha com orientações – embora pudesse haver espaço aqui para críticas. Chama atenção o fato de que em todos esses documentos a palavra “letramento” fora suprimida e substituída, de forma integral, pelo termo “literacia”.

O centro da polêmica está sedimentado na posição política que se assume quando se dispensa a palavra letramento (e, com ela, óbvio, uma concepção de educação linguística), abraçada por pesquisadores brasileiros desde a década de 1980, e se dá preferência a um termo que ainda não nos foi incorporado do ponto de vista acadêmico, ganhando vestes de sinônimo do anterior, mas que dele se separa em princípios, sobretudo político-pedagógicos.

 Letramento ou literacia?

Como já dito, o termo letramento é empregado no Brasil, principalmente nas pesquisas sobre educação linguística, desde os anos 80. Precisamente em 1985, a professora Mary Kato (Unicamp/SP) escreveu essa palavra pela primeira vez no livro No mundo da escrita (Editora Ática). Sucessivos exemplos não faltam de obras clássicas, escritas por outros importantes autores, em que letramento aparece como um substantivo, um adjetivo, e até mesmo um verbo. 

Aqui dispostos em ordem cronológica, para citar apenas algumas dos escritores mais difundidos dentro do campo, temos Significados do letramento (1995, Mercado das Letras) – Angela Kleiman; Letramento: um tema em três gêneros (2001, Autêntica) – Magda Soares; Letramento literário: teoria e prática (2006, Contexto) – Rildo Cosson; Alfabetização e letramento (2018, Contexto) – Magda Soares; Alfaletrar (2020, Contexto) – Magda Soares.

O significado de letramento, desde seus primeiros usos em pesquisas brasileiras, ultrapassa os sentidos de alfabetização (e correlatos). De acordo com Soares (2001, p. 17-18, itálicos da autora), “do ponto de vista individual, o aprender a ler e a escrever – alfabetizar-se, deixar de ser analfabeto, tornar-se alfabetizado, adquirir a “tecnologia” do ler e do escrever e envolver-se em práticas sociais de leitura e escrita – tem consequências sobre o indivíduo e altera seu estado ou condição em aspectos sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos, linguísticos e até mesmo econômico”. Isso quer dizer que “letramento” é o produto do qual o sujeito se apropria ao ser ensinado a ou ao aprender a ler e a escrever. Noutras palavras, é o estado a que se dirige um grupo social ou um indivíduo que se apropriou da escrita e das suas possibilidades de intervenção no meio. 

Literacia, por sua vez, desde o final do século XX, tem sido a opção feita por Portugal para designar a utilização da competência alfabética. Apesar de, sob essa perspectiva, letramento e literacia assumirem concepções que se estabelecem a partir de contextos e níveis de uso da escrita e da leitura, literacia, no cenário norte-americano e europeu, também pode indicar um significado mais técnico e visto como uma capacidade para executar algo, um conhecimento sobre algo. Dessa forma, diferentemente de letramento, literacia aposta no individual, afastando-se de reflexões sociais e de experiências coletivas mediadas pela leitura e pela escrita. Por exemplo, embora se observe, nesse âmbito, a competência de se escrever um resumo acadêmico, a ênfase não recai sobre o acesso a esses textos, bem como as especificidades e características do gênero e os seus locais de circulação. Importa, em verdade, conferir se se usa a escrita em contextos sociais, mas pouco se debate sobre o referido contexto e as dimensões econômicas, por exemplo, que levam parte da população a atuar no mundo mais significativamente, mediados pela leitura e escrita, e outra parte não. 

Isso se concretiza, citando novamente Soares (2001, p. 19), nas palavras de pesquisador português António Nóvoa, ao lamentar que Portugal vai “fechar o século XX com níveis intoleráveis de analfabetismo e como níveis ainda mais baixos de literacia, entendida aqui como a utilização social da competência alfabética”. Dessa forma, enquanto literacia observa a utilização, e com isso assume seu potencial caráter instrumental, letramento passa pela questão do uso e vai além: sobretudo em contexto de Brasil, letramento reflete sobre esses usos e as possibilidades de intervenção social a partir deles. 

Não por acaso, o PNA se apoia nessa concepção redutora acerca das práticas sociais mediada pela leitura e pela escrita. Baseado em indicações e relatórios internacionais, o documento é enfaticamente centrado no desenvolvimento de habilidades voltadas à leitura/escrita e pautado em avaliações externas internacionais. O “estrangeiro”, nesse sentido, no documento, ganha especial denominação, posto que serve como um conceito usado fora do Brasil: “É termo [literacia] usado comumente em Portugal e em outros países lusófonos, equivalente a literacy do inglês e a littératie do francês. A opção por utilizá-lo traz diversas vantagens, pois é uma forma de alinhar-se à terminologia científica consolidada internacionalmente” (BRASIL, 2019, p. 21). 

Note-se que, justamente pela vagueza para se justificar a razão pela qual alinhar-se a uma terminologia dita internacional (leia-se, europeia) é vantajoso, em detrimento de um termo criado e consolidado em solo brasileiro, a opção por literacia, no documento do MEC, aproxima-se de uma lógica colonialista e eurocentrada. Vestida como uma novidade epistemológica e discursiva, a palavra em questão se relaciona a uma habilidade a ser transmitida, mensurada e instrumentalizada. 

Dessa forma, mais do que uma escolha “moderna”, a opção por literacia reflete o escopo político do termo. Não que letramento não seja uma opção também política, claro está que, desde sua concepção, o político-social perpassa esse conceito. No entanto, no contexto brasileiro, o apagamento de letramento mais reflete a intenção de também se apagar políticas e concepções educativas gestadas em governos anteriores. Nesse sentido, as dimensões históricas, sociais e culturais, concebidas pelas práticas pedagógicas, dão espaço às chamadas “ciências cognitivas”, campo supostamente avançado e mais colaborativo com o educar. 

A colonização dos sentidos no mundo tecnológico

O debate sobre a diferença histórica, pedagógica e política dos sentidos específicos da palavra “letramento” e da palavra “literacia” também podem ser endereçados sobre a perspectiva de uma crítica ao “espírito do tempo” do debate tecnológico.

Essa ideologia que permeia este debate pode ser sintetizada em dois conceitos: ideologia californiana e solucionismo tecnológico. A “ideologia californiana”, de Richard Barbrook (2018, p. 12), descrita em livro homônimo, é uma “nova fé emergiu de uma bizarra fusão da boemia cultural de São Francisco com as indústrias de alta tecnologia do Vale do Silício. Promovida em revistas, livros, programas de televisão, páginas da rede, grupos de notícias e conferências via Internet, a Ideologia Californiana promiscuamente combina o espírito desgarrado dos hippies e o zelo empreendedor dos yuppies. Este amálgama de opostos foi atingido através de uma profunda fé no potencial emancipador das novas tecnologias da informação. Na utopia digital, todos vão ser ligados e também ricos”.

O solucionismo tecnológico, descrito na obra de Eugeny Morozov, é a ideia de que problemas podem ser solucionados tecnologicamente, bastando manejar os algoritmos corretos. Para Morozov (2013, p. 5, em tradução livre) “Chamo a ideologia que legitima e sanciona tais aspirações de “Solucionismo”. […] O solucionismo, portanto, não é apenas uma forma chique de dizer que ‘para quem tem martelo tudo parece prego’ […]. Não é só que muitos problemas não são adequados para o “kit de ferramentas do solucionador” rápido e fácil. É também que o que muitos solucionistas presumem ser “problemas” que precisam ser resolvidos não são problemas de forma alguma; uma investigação mais profunda sobre a própria natureza desses “problemas” revelaria que a ineficiência, a ambiguidade e a opacidade – seja na política ou na vida cotidiana – contra as quais os geeks e solucionistas recém-empoderados estão lutando não são, de forma alguma, problemáticas”. 

A descrição casada dos termos parece muito se adequar ao expediente de substituição de uma história refletida do uso de letramento, dentro da ciência brasileira, para sua conversão colonial como “literacia”. Interessante notar como a dimensão de um “estado coletivo” letrado, se converte num conjunto individualista de méritos pelas habilidades da “literacia”.

Mesmo entidades de defesa de direitos humanos digitais, pertencentes à sociedade civil, reproduzem a lógica da literacia como um facilitador de diálogo com o centro, reconhecendo um local de periferia domesticada. O tema, portanto, não é apenas algo ínsito ao semanticISMO, mas uma discussão específica sobre o problema de não apontar a gramática-e-semântica comum construída por contextos sociais diversos.

Pela confusão dos termos e apagamento de uma história conceitual e de ação social, o que se dá é na verdade a importação de uma orientação central, que instaura uma dominação com a periferia e se apaga as insurgências de uma “maioria do mundo” (AMRUTE et al, 2022). Este debate é a configuração anterior da dialética entre quem vigia e quem é vigiado, de quem lucra e quem trabalha para que alguém lucre, quem extrai e quem tem suas riquezas extraídas. 

Sob a justificativa de “literacia” como diálogo com o global, o que aparece é o domínio sobre os sentidos do fazer e inovar na tecnologia e o controle sobre a narrativa dos riscos, dos danos e dos ganhos. Colonizados os sentidos envolvendo o fazer educativo, ficará colonizado, de forma antecipada e garantida, os sentidos sobre a produção e os destinos da tecnologia. Um debate do tipo, portanto, não estará aberto às demandas periféricas de toda ordem – de gênero, raça, regionalidade, sexualidade – mas aceitará, apenas, a inclusão que segue a cartilha e reproduz a “ordem mecânica das coisas”, numa espécie de destino inescapável.


Referências

BRASIL. PNA: Política Nacional de Alfabetização. Ministério da Educação, Secretaria de Alfabetização. Brasília: MEC, SEALF, 2019. 

______. Decreto n. 9.765/2019, institui a Política Nacional de Alfabetização. Presidência da República, Casa Civil. 11/04/2019.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2001. 

MOROZOV, Eugeny. To save everything, click here. The folly of technological solutionism. New York: PublicAffairs, 2013.

BARBROOK, Richard; CAMERON, Andy. A Ideologia Californiana. The Californian Ideology, por Richard Barbrook e Andy Cameron, publicado na revista Mute, Vol 1, Nº3 em 1º de Setembro de 1995. Traduzido por Marcelo Träsel (trasel.com.br). Disponível em: <http://cibercultura.fortunecity.ws/vol2/idcal.html>.

AMRUTE, Sareeta; SINGH, Ranjit; GUZMÁN, Rigoberto Lara. A Primer on AI in/from the Majority World: An Empirical Site and a Standpoint (September 14, 2022). Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=4199467>.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.


Diego Alexandre

Diego Alexandre é mestre em educação e doutor em linguística. Têm experiência em ensino de português e espanhol e hoje atua como professor do centro de educação da UFRN, Departamento de Práticas Educacionais e Currículo.

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