O futuro da tecnologia e o reflexo na escuridão para o Direito (parte 1)
Das Unheimliche
Unheimliche, do alemão, sem uma transposição exata, é comumente traduzida como “estranhamento”. Porém pode ser aplicada tanto para algo desconhecido, não familiar, como para coisas familiares e comuns. Em “O Inquietante” (Das Unheimliche), Freud trata da questão do estranhamento partindo da premissa do familiar que retorna irreconhecível, do estranho como algo que só existe a partir do conhecido. O terror que emana da incapacidade de explicar aquilo que é estranhamente familiar — e para isso faz uso de uma dinâmica própria típica das investigações de evolução dos conceitos, do campo da semântica e da pragmática (diacronia histórica), no uso dos termos em alemão e sua equivalência (ou não), em outras línguas.
Em português, inclusive, a tradução como “inquietante” ostenta a classificação de uma paráfrase, o que, de certa forma, diz muito sobre a necessidade de “dizer algo mais e de outra forma” sobre um sentimento que não é bem compreendido, no momento em que se vive. Digo algo de outra forma, quando, apesar de conhecer (familiaridade), desconheço (estranhamento): a angústia do unheimliche aparece como resultado da associação cognitiva de uma antinomia insustentável: afinal, como podemos nos incomodar com aquilo que nos parece conhecido?
O medo é um elemento sociopsicológico que constitui não apenas o agir humano, individual, mas a compleição das estruturas coletivas — no direito, especificamente, o medo é a gênese e fundamento psicológico da sanção (o medo de ser punido).
Contudo, num âmbito mais genérico, a tecnologia releva para as pessoas e para a sociedade tal associação insustentável (e inquietante) ao “parafrasear” as funções de trabalho e habilidades humanas. Medo de máquinas, medo de computadores, medo da Internet…. medo de inteligências artificiais.
Como qualquer tecnologia ainda em implementação, e não amplamente distribuída, o sentimento de inquietação se apresenta em parte da sociedade. Se por um lado Freud aponta [1], ao menos parcialmente, que o conhecimento de algo desfaria o potencial de surgimento da angústia típica do unheimlich, por outro, é possível perceber que o conceito apresenta um retorno sincrônico ao se comparar o estranhamento e o processo de automação às possibilidades de continuidade da vida e aperfeiçoamento do próprio humano: o autômato, e a automação como fenômeno, é o semelhante-desconhecido tal qual o duplo (der Doppelgänger) que se antes servia como garantia para a continuidade do humano, passou a representar a faceta fantasmagórica do roubo da identidade, da univocidade do Eu.
O fenômeno não é novo e não envolve apenas as tecnologias da informação. Recentemente, fomos acostumados a ver o desenvolvimento dos robôs (Atlas, Big Dog) da empresa americana Boston Dynamics, antigo desdobramento da Google para a área de automação e robótica. No campo da língua, que se desdobra em comportamentos denunciados pela crítica/depuração da linguagem, é possível extrair o estranhamento: comentários sobre comparação com filmes e a dominação de robôs, a possibilidade do robô (em vídeo promocional da empresa) se irritar quando tem um pacote derrubado de suas mãos, entre outros vários casos.
A associação da automação, não apenas na figura do robô, mas do processo de revisão de dinâmicas envolvendo o trabalho humano (trabalho reprodutivo, físico, criativo) também está intimamente ligada à tentativa de parafrasear aquilo que não se conhece — se entende os pressupostos e o resultado, entretanto a dinâmica da alta tecnologia se apresenta como uma caixa preta (black box) intensificando o processo daquilo que eu reconheço, mas desconheço. De outra forma: compreendo as pontas do processo, não entendo o seu transcurso e desenrolar.
O estranhamento, a inquietação e a angústia da automação, quando analisadas em confronto com o prisma do trabalho jurídico, ganham contornos dramáticos. Todos os elementos que constituem o estado psicossocial (e assim vamos tratar a questão aqui, em dupla esfera ou nível) do unheimliche estão presentes na relação dos juristas com a automação de qualquer das linhas do seu labor, agravado pelo falseamento da naturalização da atividade que desempenham.
Juristas são artefatos obsoletos
Em meio a essa discussão, as tecnologias são desenvolvidas e dados são gerados e coletados com relativa rapidez por institutos de pesquisa por todo o mundo. O “direito” — aqui colocado como uma hipóstase de tudo aquilo que envolve esse ambiente instituído pelo humano que trabalha com o direito — se revolve com perguntas vitais: quais são as implicações da nova onda de automação possível com o uso de inteligência artificial, especialmente para o segmento jurídico? O que vai sobrar de trabalho para um advogado médio? Para quais atividades é imprescindível ser gente? Ao desconhecimento, a inquietação.
Na década de 90 do século passado, Richard Posner alertava, de forma virulenta, para o viés cartelizado pelo qual a profissão jurídica se organizava nos Estados Unidos — e ao diagnosticar a América do Norte, fazia relato do mundo ocidental como um todo: “[…] um cartel que, através de regulamentações estatais projetadas para dificultar a entrada de novos membros e para protegê-lo da concorrência externa, bem como de pressões competitivas desagregadoras em seu próprio interior, conservava-se unido contra os perigos rondantes que normalmente destruiriam um cartel de muitos membros. A estrutura cartelizada da profissão gerou, como subproduto, uma certa visão do “direito” como entidade enigmática, mas essencialmente cognoscível. Esta, ao restringir o comportamento dos advogados e juízes, justifica a autonomia da profissão em relação às leis da política e do mercado” [2].
A ação da classe jurídica forjou para si, antes de pensar o mundo, uma imagem do que é o jurídico, do conhecimento sobre esse objeto e a forma de acessar esse conhecimento — e páginas e páginas dão conta dos dualismos nas ideias jurídicas, da ausência de consensos e do alheamento da ciência do direito para com dados de fato (para que não faltem exemplos: jusnaturalismo x juspositivismo, ativismo x legalismo, sociologismo x normativismo, legal x legítimo etc).
Toda essa estrutura artificial, como tecnologia social de controle, teve grande importância na conformação da sociedade ocidental — construindo o que, por vezes, é chamado “projeto de modernidade”, ou seja, uma estrutura sofisticada de normas, costumes sociais e “poder legitimado pelo próprio poder” para conduzir comportamentos, fluxos financeiros, bens, a vida como um todo.
Não obstante, a própria modernidade, enquanto projeto, não tomava o direito como seu núcleo central de codificação, mas apenas um de seus processos — o que, sob a visada da história, é possível analisar criticamente: a classe jurídica confundiu ‘prevalência’ com ‘natureza ontológica’, concorrência causal (função) com causa definidora. Eis que a diversificação do processo social ordenador voltada para (e pela) a linguagem econômica retirou do direito a força ordenadora, pondo-o, se não em local incipiente, ao menos em papel “secundário”, igualizado aos demais.
A emergência da economia está intimamente atrelada aos processos de automação do trabalho das revoluções industriais, especialmente com a expansão do controle financeiro de bens e serviços, pela lógica do controle de variáveis em câmbio (sistema que foi completamente automatizado nos últimos vinte anos). As sofisticadas tramas de uma classe de trabalho que conforma a realidade social por possuir um locus privilegiado de poder, vem sendo dobrada pela “vontade da técnica”.
Níveis diversos de automação
A automação aparece, como dito, num imaginário mítico e fantástico cujo repertório normalmente aponta para um senso comum, criado a partir de outro processo social vital (e também fruto da automação do trabalho), que é a ampliação do alcance da mídia mundial. No ponto, sempre importa lembrar a imagem da Galáxia de McLuhan que disrompeu com o paradigma da Galáxia de Gutemberg — guardemos esse dado.
Os exemplos são variados: e-mail, bancos de dados em excel e ferramentas primitivas, aquela mala direta no word feita aos trancos e barrancos nos órgãos públicos, Processo Judicial Eletrônico (PJe), assinatura eletrônica, análise, desenho e controle do fluxo de dados (sistemas Seven e Merídio, por exemplo), tudo isso, sob certo aspecto pode ser interpretado como automação de trabalho [jurídico].
Este entendimento se apresenta se levarmos em conta que a automação é a retirada do elemento humano da cadeia ou de processos da cadeia produtiva, numa dinâmica escalável que envolve outras variáveis (abordadas posteriormente), como a coleta de dados, questões de segurança de sistemas e informação, convergência de padrões e, atente-se, reflexos político-legais e democráticos.
Toda espécie de padronização e repetibilidade de rotina concorre para a inflexão de um paradigma estabelecido, ou seja, para a disrupção de um modelo — a ser rastreada pelas variáveis de outros processos além do jurídico, especialmente o econômico. Eis o âmbito da vontade da técnica, que, em verdade, é a manifestação do exercício da política na tecnologia. Mais uma vez o pensamento complexo e a interdisciplinaridade batem na porta do direito, chamando-o à razão. Até agora a porta não abriu.
Não é coincidência que as tecnologias de processamento de dados apontadas acima tenham sido direcionadas para áreas cuja monetização seja patente e equacionável. Consultemos as “jurisprudências reativas”, aquelas que tentam obstar o conhecimento ou cuja análise do discurso identifica uma linhagem comum diante do que foi apresentado nas peças dos advogados — sejam iniciais, sejam recursos: matérias como “DPVAT” ou “Sistema Financeiro Habitacional” aparecem como campeãs na ordenação dos fluxos processuais, mapeamento das decisões e criação de programas para modelização e roteirização dos atos. Traduzindo: existem programas de computador para criar as petições que assessores e magistrados leem todos os dias, aos borbotões, nos tribunais.
Elas não são as únicas. Diversos nichos da atividade decisória podem ser reduzidos a um jurisprudencialismo cuja reconstrução em modelos não só é possível, como já existe. Por outro lado, a digitalização de processos, oferecida via PJe, amplia o potencial de coleta e processamento de dados por parte de robôs, numa dinâmica que só envolve o analista humano no fim da cadeia, quando então temos a crítica e montagem final dos fluxos de trabalho — ou seja, o design do programa para automação de um processo dentro de uma estrutura de trabalho.
Esse são os processos “imediatos”, mas a discussão pode ser aprofundada? Quais as dimensões possíveis, ao menos num diálogo superficial da automação, robótica e áreas colaterais que implicam no solapamento do projeto de trabalho jurídico unicamente humano? E, ainda mais, é possível rastrear uma “mentalidade”, num sentido historiográfico e filosófico, do direito e “sua gente” com esse fenômeno da modernidade recente? É o que tentaremos discutir na segunda parte desse texto.
Notas:
[1] FREUD, Sigmund. O Inquietante. In: Obras Completas, Vol. 14, Editora Companhia das Letras.
[2] POSNER, Richard. Para além do direito. Tradução de Evandro Ferreira da Silva. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
André Fernandes
Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.