O retorno dos debates sobre a neutralidade de rede: o que está em jogo para o Brasil
Nos últimos dias, tem sido divulgada uma notícia de que as empresas brasileiras que fornecem acesso à Internet aguardam a aprovação do fim da neutralidade de rede nos Estados Unidos, em plano proposto pelo Presidente da FCC, Ajit Pai, para pressionar o governo pelo fim da neutralidade aqui no Brasil. Esse tema já foi alvo de forte atuação do lobby das teles, quando da discussão, no Congresso Nacional, do Marco Civil da Internet. Agora, tomadas de nova força diante do posicionamento norte-americano, farão nova tentativa nesse sentido. Entretanto, não há qualquer justificativa minimamente plausível para a nova tentativa de pressão das teles no sentido de modificar a regra de neutralidade no Brasil.
O termo neutralidade de rede foi mencionado pela primeira vez em um artigo escrito pelo professor de Direito, hoje na Columbia Law School, Tim Wu em 2003, em que ele afirma que uma rede que se pretenda útil deve tratar igualmente todos os conteúdos, sites e plataformas que por ali trafegam, sugerindo ainda que as redes de informação são mais valiosas quando se mostram menos especializadas, ou seja, quando seu uso é diversificado.
No Brasil, o Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965, trata da neutralidade de rede como fundamento para o uso da Internet no Brasil no art. 2º e, no art. 9º, trata de conceituar o princípio, assegurando que os provedores de acesso à Internet devem tratar os pacotes de dados sem distinção por conteúdo, origem, destino, terminal ou aplicação.
Isso significa que, ressalvadas as hipóteses previstas em caráter de exceção, constantes dos parágrafos do artigo acima, no Brasil não será aceita qualquer discriminação de pacotes de dados realizada pelo provedor de acesso à Internet sem que esteja justificada nas referidas exceções. Todos os pacotes de dados, isto é, todos os tipos de conexão, devem passar pelos cabos da rede de forma isonômica.
Para complementar o disposto no Marco Civil, o Decreto nº 8771, que o regulamenta, detalha as hipóteses admitidas de discriminação de pacotes de dados na internet e de degradação de tráfego pelos administradores de rede, afirmando categoricamente que tais situações são medidas excepcionais e que só devem ocorrer nos casos descritos na referida norma. Entre as práticas vedadas pelo regulamento do MCI está o “zero rating”, quando os provedores de conexão não cobram pelo acesso a determinadas aplicações, por exemplo as que oferecem Facebook ou Whatsapp gratuitos. Sobre o assunto, está em curso um processo junto ao CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), no qual uma decisão em setembro de 2017 determinou que a prática não viola a livre concorrência. Porém, entidades da sociedade civil interpuseram recurso, que está agora pendente de julgamento.
Além disso, a neutralidade da rede já constava do chamado Decálogo do Comitê Gestor da Internet — CGI.br, publicado através da resolução CGI.br/RES/2009/003/P, que expõe os Princípios Para a Governança e o Uso da Internet no Brasil. A neutralidade de rede é o princípio nº 6 desta lista, e expressa que não deve haver qualquer tipo de discriminação de tráfego por “motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento”.
Portanto, pode-se dizer que, no Brasil, a neutralidade da rede é um requisito caríssimo que deve ser respeitado por todos os prestadores de serviço envolvidos na cadeia da Internet. Trata-se de colocar em pé de igualdade as grandes corporações e as pequenas iniciativas, ou startups, que trabalham para, quem sabe um dia, unirem-se às já gigantes do mercado. Afinal de contas, as que hoje são gigantes se aproveitaram justamente dessa abertura, dessa igualdade de forças, para se lançarem no mercado. Assim, quem quer que tenha uma ideia inovadora simplesmente lança sua plataforma na rede, como um dia o fizeram Youtube, Facebook e Google. Se a ideia for boa, ganhará muitos usuários e se tornará popular e, consequentemente, valiosa em termos de mercado, sem a necessidade de solicitar autorização de qualquer outro ente ou mesmo de fazer alianças ou acordos comerciais.
E essa é a forma como a Internet foi projetada para ser. Ao nível de design mais básico, a Internet foi projetada utilizando como princípio a arquitetura fim-a-fim, o que significa que não há um ponto central de comando do conteúdo que trafega pela rede. Tecnicamente falando, as operações do protocolo de comunicação devem ser definidas para ocorrer nos pontos finais do sistema de comunicação, ou seja, funcionando como uma grande rede distribuída em que as pontas são completamente independentes. Nesse caso, então, os usuários definem o que fazer com a conexão de Internet que possuem, o que lhes dá plena liberdade de acesso e uso, inclusive para a criação de novas plataformas conectadas à rede, sem sofrer qualquer tipo de restrição por parte da empresa contratada para fornecimento da sua conexão de Internet. Sem a garantia da neutralidade, o usuário estaria restrito às regras determinadas pelo provedor de acesso. Além disso, o custo para acesso à Internet poderia aumentar, levando muita gente a um cenário de exclusão digital.
Acabar com isso faria com que as startups estivessem ainda menores em relação àquelas que já tem poder de barganha para efetuar grandes acordos corporativos que garantam a estabilidade e o acesso aos seus serviços, além de deixar os usuários nas mãos dos provedores de acesso.
É importante destacar que um levantamento feito pela Global Net Neutrality Coalition mostra que a neutralidade de rede é protegida por quase todos os países das Américas, bem como na Europa e alguns países da Ásia.
Nos Estados Unidos, o debate retornou no início de 2017, quando Ajit Pai anunciou que submeteria um plano que, segundo ele, retorna ao estágio anterior a 2015, quando foram aprovadas as regras de neutralidade da rede no governo Obama. Esse plano foi anunciado no dia 21 de novembro de 2017 e vem causando grande alarde nos debates sobre o assunto, inclusive no Brasil, pois é sabido que as empresas de telefonia agora pressionarão por mudanças no regime brasileiro.
Durante das discussões do Marco Civil da Internet no Congresso Nacional, houve um lobby muito grande das empresas de telefonia, contrárias ao princípio. Apesar disso, a pressão da sociedade civil foi maior e as regras sobre neutralidade foram incluídas na lei. Agora, aparentemente, essas discussões serão retomadas. Porém, é importante destacar alguns detalhes sobre a mudança de regime que desejam as teles.
Quando mencionam as desejadas alterações no Decreto nº 8771, é importante mencionar que alterar o decreto presidencial não significa extinguir a neutralidade de rede no Brasil. Como a neutralidade é um princípio constante do MCI, apenas poderá ser extinto por meio de uma nova lei que revogue os dispositivos que mencionam a neutralidade.
Além disso, o discurso sobre Internet das Coisas como justificativa para a quebra de neutralidade não encontra qualquer tipo de nexo. O próprio Marco Civil já prevê no art. 9º, incisos I e II, as exceções à neutralidade. O inciso II fala em “priorização dos serviços de emergência”, em que se enquadraria a hipótese de prestação de serviços de saúde, por exemplo.
As plataformas de conteúdo, como Google e Netflix, já declararam anteriormente que são favoráveis às regras de neutralidade, por considerarem que, caso as regras não existam, os provedores de acesso poderão privilegiar seus próprios conteúdos, criar pacotes com acesso restrito a determinados aplicativos ou sites, ou mesmo degradar o acesso às plataformas de forma proposital, com o fim de extrair dinheiro das empresas do setor, criando, portanto, práticas prejudiciais à competitividade e à livre iniciativa. Por isso não é uma surpresa essa movimentação no sentido de suprimir as regras da neutralidade, tanto nos EUA quanto sua repercussão no Brasil.
E, na verdade, é isso que deve ocorrer, caso a neutralidade da rede seja extinta, ou mesmo flexibilizada para padrões inferiores aos atuais. É possível que um dos efeitos imediatos seja a criação, por parte dos provedores de acesso, de planos que restringem conteúdo, como por exemplo um mais barato que contemple apenas redes sociais e acesso a e-mail, ou outros bem mais caros que abranjam serviços de streaming. Em havendo essa segregação da rede, haverá, como consequência direta, a segregação do próprio acesso à Internet, em que apenas os mais socialmente privilegiados terão acesso ao conteúdo “completo” da rede. O certo é que quem controla os cabos não deve, em hipótese alguma, interferir no seu tráfego, sob pena de atitudes anticoncorrenciais e severamente prejudiciais ao consumidor.
Dessa forma, não se vislumbra, no discurso das teles, qualquer justificativa plausível para a quebra da neutralidade de rede no Brasil além da necessidade, por parte delas, de uma nova incursão mercadológica, supostamente apoiada num discurso sobre segurança. Assim sendo, cabe à sociedade civil ficar de olho e se mobilizar frente à ameaça de modificação do regime de neutralidade da rede no Brasil. Só assim será garantido o acesso à Internet sem discriminação.
Raquel Saraiva
Presidenta e fundadora do IP.rec, é também graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestra e doutoranda em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2017). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Algoritmos e Inteligência Artificial, Privacidade e Vigilância e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada, mas também se interessa pelas discussões sobre gênero e tecnologia.