Rhaiana Valois

A desinformação não é um fenômeno atual, remonta a épocas anteriores ao surgimento da própria Internet[1]. Contudo, é possível perceber que com a população da rede mundial de computadores, o problema ganhou maior escalabilidade e amplitude, em virtude da rapidez com que as informações podem ser compartilhadas no ambiente virtual. 

Segundo o relatório do  Grupo de Alto Nível sobre Notícias Falsas e Desinformação Online (High Level Group on Fake News and Online Disinformation), criado pela Comissão Europeia para combater esse problema, a desinformação pode ser definida como “todas as formas de informação falsa, imprecisa ou enganosa, desenhadas, apresentadas e promovidas intencionalmente para causar dano público ou gerar lucro”[2]. Esse fenômeno expressa-se em três diferentes dimensões: 1) informação enganosa (mis-information), que abrange a disseminação de notícias falsas sem a intenção de causar danos; 2) desinformação (disinformation) que, diferente da primeira, refere-se a disseminação de noticiais cuja falsidade é conhecida e com a intenção de gerar dano; e, por fim, 3) má informação (mal-information), ou seja, informações genuinamente verdadeiras que são divulgadas intencionalmente para gerar algum dano. 

Para o Relatório “Internet, Desinformação e Democracia”, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o Grupo de Alto Nível realizou um trabalho importantíssimo ao distinguir esses aspectos do  fenômeno, visto que “já se reconhece a existência de uma cadeia de produção de notícias falsas que demanda ações específicas para o desestímulo e extinção dessa prática em escala industrial”[3] . Essa indústria da desinformação, ainda conforme o relatório, refere-se “ao aumento contínuo da complexidade e tamanho das cadeias produtivas e redes de atores que surgiram estimuladas por altos investimentos financeiros destinados a essas atividades”.

Na era da sociedade informacional, esse problema interfere não só no futuro das democracias de países do mundo inteiro, como também tem um grande potencial de causar danos irreversíveis na vida das pessoas. O fenômeno em questão ganha contornos ainda mais sensíveis quando se analisa o contexto de países, como o Brasil, que fazem parte do chamado Sul Global. Esse conceito abrange localidades que possuem uma história marcada por processo de colonialismo predatório e golpes de Estado, responsáveis por causar profundas cicatrizes na formação de suas democracias e de suas instituições. Além disso, são caracterizados por grandes desigualdades sociais e econômicas, o que afetam diretamente e indiretamente o combate de problemas dessa natureza.

Nesse sentido, é possível notar que, com alastramento da pandemia de COVID-19, acentuaram-se no Brasil a disseminação de as notícias falsas envolvendo desde questões relativas ao isolamento social e à vacinação até o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, o que foi responsável (e ainda é) por colocar em risco a vida de milhares de pessoas e impedir o controle da situação. No contexto brasileiro, a pandemia ainda ganhou contornos mais nefastos em virtude da atuação do Governo Federal para enfrentar o problema.

Em meio aos escândalos envolvendo não só as declarações do Presidente da República, Jair Bolsonaro, como também às atuações que demonstraram total descaso com a vida dos brasileiros, a exemplo da troca desarrazoada de Ministros da Saúde, a defesa da cloroquina e a hidroxicloroquina, remédios sem comprovação científica, como forma de tratamento precoce etc; foi instaurada em 27 de abril de 2021 uma Comissão Parlamentar de Inquérito (que ficou conhecida como “CPI da Covid”) para averiguar possíveis omissões (e ações) do governo diante da situação pandêmica. 

Ao final dos trabalhos, a CPI produziu um relatório[4], de relatoria do Senador Renan Calheiros, divulgado no dia 20 de outubro de 2021, que foi encaminhado ao Procurador da República, bem como para outros órgãos do Estado, responsáveis por tomarem as próximas medidas cabíveis. Esse relatório, atualizado posteriormente em 26 de outubro de 2021, denuncia, entre outros crimes, a formação de uma rede organizada de produção e disseminação de notícias falsas envolvendo, não só o Presidente da República, mas também seus filhos, deputados, senadores e influenciadores digitais (p. 663-884).

Além do detalhamento da estrutura de elaboração e divulgação de notícias falsas sobre a pandemia e do modus operandi dessa organização, a CPI da Covid apresentou dois projetos de lei que visam o combate da desinformação no ambiente virtual que, segundo o texto, têm como objetivo reduzir a propagação de notícias falsas, bem como punir aqueles que empreendem esse tipo de conduta. O primeiro altera o Código Penal e o Código de Processo Penal, com o intuito de “criminalizar a criação e divulgação de notícias falsas (fake news), notadamente em casos envolvendo a saúde pública” (Senado Federal, p. 1085). Enquanto o segundo busca “coibir a criação e a disseminação de notícias falsas por meio da internet” (Senado Federal, p.1087) promovendo alterações nas Leis nº 12.965 (Marco Civil da Internet) e nº 9.613 (Lei de Lavagem de Dinheiro).

Entre os pontos críticos presentes no primeiro projeto deve-se destacar: 

1. O art. 1º altera o art. 288-B para tipificar como crime criação ou divulgação de notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante. Esse artigo foca na ação dos usuários que divulgam notícias falsas na internet e não combate a rede organizada de atores que instrumentaliza a desinformação e manipula do comportamento das pessoas por meio das plataformas digitais. Flávia Lefèvre, integrante do coletivo Intervozes, salienta ainda que: “Milhões têm esses planos pré-pagos de franquias baixíssimas em que praticamente só têm acesso ao WhatsApp e Facebook e não conseguem checar se uma notícia é falsa ou não”[5]. Conforme explica o relatório do CGI.br:

Essa prática, conhecida como zero-rating, é estabelecida a partir da parceria entre empresas – como Facebook, Whatsapp e Twitter – e provedores de serviços Internet. Os aplicativos dessas empresas acabam se tornando o principal meio de informação e comunicação para essa parcela da população. Dentro deste cenário, a disseminação massiva de conteúdo enganoso pode ser favorecida pela ampla utilização deste tipo de aplicativo, como ocorreu em 2018 com o Whatsapp, que tinha seu acesso permitido mesmo após o consumo integral do plano de acesso à Internet.

Da forma como está disposto, o artigo não combate a atuação dessa indústria da desinformação e das milícias digitais, principais responsáveis pela divulgação direcionada de notícias falsas e discurso de ódio nas redes e pode acabar, portanto, penalizando indivíduos que acidentalmente caem nessa cadeia disseminação de desinformação.

2. O § 2º desse artigo tenta estabelecer um conceito jurídico para a chamada “notícia falsa”, que segundo a lei abrange todo o texto, áudio, vídeo ou imagem não ficcional que, de modo intencional e deliberado, consideradas a forma e as características da sua veiculação, tenha o potencial de ludibriar o receptor quanto à veracidade do fato. Estariam excluídas dessa previsão: a manifestação de opinião, de expressão artística ou literária, ou de conteúdo humorístico (§ 3º). A definição, no entanto, não é suficientemente precisa para abarcar esse fenômeno complexo que, como dito anteriormente, assume outras nuances, e cujo enfrentamento não perpassa caminhos meramente regulatórios. A utilização de conceitos vagos acabam abrindo brechas para arbitrariedades e pode gerar um cenário de insegurança jurídica tanto para as plataformas quanto para os usuários.

Já em relação ao segundo projeto de lei apresentado pelo Relatório da Covid, é possível identificar problemas nos seguintes pontos:

1. O art. 5º, IX, define como  mensagem toda informação publicada em rede social, na forma de postagem, compartilhamento ou comentário, usando para tanto recursos de texto, imagens e sons. Esse conceito, além de vago e impreciso, foca apenas nas mensagens trocadas nas chamadas redes sociais; deixando de fora aplicativos como Whatsapp, apontados como um dos principais canais utilizados pelas milícias digitais na divulgação de inverdades, como bem lembrou Flávia Lefèvre. Além disso, o inciso X, desse dispositivo, estabelece uma definição para as redes sociais, que passariam a ser entendidas como aplicações de internet, provida por pessoa jurídica que exerça a atividade com fins econômicos e de forma organizada, que serve para permitir a publicação e a divulgação de mensagens para seus usuários, conectados entre si por meio de vínculos de relacionamento. Esse termo também é criticado por pesquisadores da área, como Carlos Affonso Souza, diretor do ITS, pela atecnia em definir esses intermediários. Mais uma vez, a vagueza dos conceitos gera riscos a efetividade dos objetivos almejados com a elaboração dos projetos.

2. O § 5º do art. 10, por sua vez, apresenta outro grave problema. Isso porque exige que os provedores mantenham sob a guarda a qualificação pessoal, que menciona o § 3º, o nome completo, a data de nascimento e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Economia, se pessoa física, e a razão social e o número de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Economia, se pessoa jurídica, nos termos da regulamentação. Alinhado a esse dispositivo, o § 4º estabelece a obrigatoriedade dos usuários concederem esses dados pessoais às plataformas e o § 6º concede o acesso das plataformas ao banco de dados da Receita Federal; podendo, inclusive, fazer uso de certificado digital e de dados biométricos do usuário para validar a identificação prevista nos I e II do § 1º do art. 11-A, conforme prevê o § 2º desse dispositivo.

Além de ir contra os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que restringe a coleta de dados ao estritamente necessário ao exercício das atividades, esses artigos expõem ainda mais a privacidade dos dados dos cidadãos, inclusive com a possibilidade de acesso a dados sensíveis, indo na contramão das políticas desenvolvidas por outros países. É importante notar ainda, conforme pontuam Clara Keller e Danilo Donella, que existem “outras alternativas investigação de atividades ligadas à desinformação e fake news que não implicam na utilização massiva de dados pessoais e no cadastro prévio”[6]; sendo possível o cruzamento de dados para rastrear e identificar pessoas na internet, o que já é regulamentado pelo marco civil.

3. Os § 1º, § 2º, § 4º da art. 18-A também têm potencial de gerar efeitos negativos no ambiente virtual, porque estabelecem obrigações adicionais às plataformas, de modo que elas se responsabilizem pelo monitoramento de conteúdo postados por terceiros. Isso pode gerar o chamado “chilling effect”, que pode prejudicar o exercício de direitos fundamentais como a liberdade de expressão. Conforme já apontado pelo Nota Técnica do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) sobre Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (PL nº 2.927/2020 e PL nº2.630/2020) [7], obrigações desse tipo, semelhantes às das propostas analisadas no documento, representam um retrocesso à posição de neutralidade dos intermediários, especialmente em relação aos conteúdos criados por seus usuários, uma vez que:

Na prática, é possível imaginar que partes interessadas passem a cumular ações cíveis de remoção de conteúdo ilícito com pedidos de responsabilização sancionatória de plataformas pelo suposto descumprimento dos protocolos da lei pretendida em relação ao tratamento de desinformação – o que, para todos os efeitos, pode implicar no apequenamento do regime de responsabilidade civil previsto no art. 19 do MCI e, por consequência, num retrocesso em termos de neutralidade dos intermediários em relação ao conteúdo produzido por seus usuários.

Ademais, o § 3º desse artigo parece ignorar que o anonimato nas redes pode funcionar como um importante mecanismo de denúncia, bem como de proteção para ativistas e jornalistas. 

4. É possível identificar problemas também no  § 5º do art. Art. 18-A, uma vez que a previsão de ajuizamento de ações contra atividades consideradas indevidas pelos usuários pode sobrecarregar ainda mais o sistema judiciário brasileiro. Já o  § 7°, ao não permitir o uso de contas automatizadas para simular comportamentos humanos nas redes sociais, tais como escrever, publicar ou compartilhar mensagens e interagir com usuários, pode barrar o uso desse tipo de ferramentas em situações que em nada contribuem com o fenômeno da desinformação. Segundo o relatório da CEPI:

[…] faz mais sentido buscar o conceito de uso malicioso de bot social—de forma que a tecnologia imita e falseia o comportamento de um usuário comum—do que um conceito geral de disseminador artificial, já que há diversos bots que disseminam informações legítimas, se identificam como contas automatizadas, e são usos legítimos de uma tecnologia relevante para a inovação e para o ambiente informacional.

5. O § 8º desse artigo também é problemático, uma vez que tem o condão de gerar prejuízos a novas modalidades de emprego surgidas a partir da intensificação da internet como ferramenta de trabalho, devido aos termos vagos e imprecisos utilizados na redação do parágrafo. Além disso, o dispositivo não explica, de forma clara, como vai funcionar a destinação das verbas arrecadadas em virtude de infrações cometidas para o fundo educativo de combate à disseminação de notícias falsas e ao uso de perfis fraudulentos.

6. Por fim, o art. 4º prevê que a lei entrará em vigor no prazo de 90 dias contados da data de publicação; tempo este que pode ser insuficiente para que os provedores realizem as alterações previstas na lei. Em suma, apesar da intenção de sugerir soluções para enfrentar o problema, os textos das duas propostas apresentam graves problemas, pois não atacam as estruturas de desinformação, como a que foi apontada pelo próprio relatório; mas, ao contrário, criminalizam a ponta do processo de comunicação online, que são os usuários, os quais muitas vezes não têm nem noção que o conteúdo que compartilham é falso. Os projetos ainda têm o potencial de criar um ambiente antidemocrático, vigilantista e inconstitucional, além de atropelar o debate que já estava sendo desenvolvido em torno de outros projetos como os PL ‘s 2927/2020 e 2630/2020.

No artigo “Why you keep a dog and bark yourself? From intermediary liability to Responsibility”, Giancarlo Frosio alerta que essa tendência de pressionar os provedores para que eles se responsabilizem pela segurança no ambiente digital pode trazer efeitos deletérios para o exercício de direitos fundamentais. Segundo o autor:

A fiscalização pública, sem conhecimento técnico e recursos para enfrentar um desafio sem precedentes em termos de comportamento semiótico humano global, terceirizaria coativamente a fiscalização online para entidades privadas. A aplicação por meio de ToS privados retira a adjudicação de conteúdo legal e ilegal de uma supervisão pública. Esse processo pode estar empurrando uma noção amorfa de responsabilidade que incentiva a auto intervenção dos intermediários para policiar atividades supostamente infratores na Internet. Além disso, a aplicação estaria procurando mais uma vez por uma ‘resposta para a máquina na máquina’. Ao alistar intermediários online como vigilantes, os governos de fato delegam a aplicação online a ferramentas algorítmicas – que possuem responsabilidade limitada ou nenhuma responsabilidade. O devido processo legal e as garantias fundamentais são prejudicados pela aplicação da tecnologia, restringindo o uso justo de conteúdo online e silenciando o discurso de acordo com o discurso ético dominante (tradução livre).[8]

O combate à disseminação de notícias falsas, especialmente promovida por redes de atores em escala industrial,  não encontrará, portanto, respostas rápidas. Isso porque o caminho para enfrentar o problema passa por amplo debate, que deve ser travado entre os vários setores da sociedade e deve focalizar no respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, bem como no incentivo a uma maior transparência por parte dos provedores. Isso tudo com o objetivo estimular o desenvolvimento de soluções mais democráticas e de boas práticas nas redes.

Este conteúdo foi produzido como parte do projeto “Defesa do regime brasileiro de direitos digitais”, que tem o apoio da Fundação Heinrich Böll.

 

[1] Campanhas publicitárias na época do nazismo alemão, por exemplo, veiculavam opiniões dadas por um único especialista em um assunto, induzindo a população a receber os fatos e acontecimentos sob um único prisma. É por isso que os pesquisadores da ciência da História e da Literatura, como Schlegel (1772 – 1829), já previam e alertavam sobre os perigos da crença em uma verdade universal. Na busca por uma ciência da história propriamente dita, Schlegel orientou historiadores a abertamente exporem os seus pontos de vista e julgamentos – ou seja, que os historiadores tornassem públicos os “partidos” nos quais estão inseridos. https://ip.rec.br/2021/05/04/fake-news-e-fonte-historica-os-processos-de-desinformacao-sob-o-aspecto-do-estudo-e-da-checagem-das-fontes/ 

[2] “False, inaccurate, or misleading information designed, presented and promoted to intentionally cause public harm or for profit. The risk of harm includes threats to democratic political process and values, which can specifically target a variety of sectors, such as health, science, education, finance and more”. (High Level Group on Fake News and Online Disinformation (2018) A multi-dimensional approach to disinformation. Luxemburg: Publications Office of the European Union, p. 10). Disponível em: https://ec.europa.eu/newsroom/dae/document.cfm?doc_id=50271 

[3] Relatório CGI. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/publicacoes/4/20200327181716/relatorio_internet_desinformacao_e_democracia.pdf

[4] Relatório CPI. Disponível em: http://estaticog1.globo.com/2021/10/26/relatorio_final_26102021_12h40.pdf?_ga=2.196646060.1015439082.1635441609-984834330.1635441608 

[5] Veja mais em: https://www.nic.br/noticia/na-midia/especialistas-criticam-medidas-contra-desinformacao-do-relatorio-da-cpi-da-covid/

[6] Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/mirando-em-fake-news-e-acertando-em-vigilancia-24062020 

[7] Disponível em: https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/nota_tecnica_-_pl_desinformacao.pdf 

[8] FROSIO, Giancarlo. Why Keep a Dog and Bark Yourself? From Intermediary Liability to Responsibility. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2976023 

 

Rhaiana Valois

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), integrante do laboratório de Design Jurídico da USP e colaboradora, nos anos de 2019 a 2021, da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da OAB/PE. No IP.rec, atua na área de Responsabilidade Civil de Intermediários.

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