Esse texto nasce de reflexões constantes por parte de aplicadores da lei e advogados sobre dois conceitos centrais na efetivação da incidência do Marco Civil da Internet. Cotidianamente, surgem confusões acerca do sentido de “provedores de aplicação” e “provedores de conexão” nos artigos, opiniões e minutas propostas de todos os lados da atividade judiciária. Mais precisamente, esse texto busca desvelar a previsão normativa antecedente e o suporte fático dos casos possíveis (MIRANDA, 1954), através de um entendimento simples e direto proposto pelo Marco Civil da Internet. Por fim, far-se-á uma breve crítica ao modelo, sem contudo pretender sua alteração total.

 

DIFERENÇAS-BASE

O que é, afinal, provedor de conexão? Provedor de conexão é, tautologicamente, o provedor (ator) na trama da Internet que provê conexão. O art. 5º, V, do MCI diz expressamente que conexão é “a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço”. Essa é, por definição, a atividade do provedor de conexão. É da atividade que se extrai o conceito do ente. Assim sendo, atores (setor empresarial, por excelência) proveem conexão mediante a possibilidade de troca de pacotes pela rede mundial de computadores. Eles podem ser grandes operadores (as chamadas Teles) ou pequenos provedores locais. Há uma cadeia derivada de acesso que vai dos backbones, cabos ópticos submarinos e cabos ao modem dos usuários (pessoas físicas e jurídicas) em associação com definições logísticas dos servidores raiz, NATs, registries e registrars (KUBALIJA, ANO, p. 57 , passim). 

E o provedor de aplicação? Aplicação é um conceito derivado da classificação das redes, uma classificação técnica. Normalmente temos duas classificações sobre o tema (OSI e TCP/IP) com motivos para adoção de uma ou de outra. 

Disponível em: “Introdução à Arquitetura TCP/IP da Internet

Como se vê, a camada de aplicação é sempre aquela que “roda sobre as demais”, é a camada onde temos o desenvolvimento das atividades empresariais que o “usuário vê e usa”. É na camada de aplicação que roda, por exemplo, a “aplicação web” (muitas vezes confundida, e sem possibilidade de se pensar em uma absorção por antonomásia, com a própria Internet). O Marco Civil da Internet, portanto, define aplicação como “o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”.

 

REGRAMENTO LEGAL GERAL E EXCEPCIONAL

Diferenciadas as camadas e os provedores que atuam sobre elas, evidente que há diferença quanto ao tratamento jurídico destes últimos. Assim, detidamente, o MCI definiu, no art. 18, uma regra geral de não responsabilização dos provedores de conexão perante conteúdos gerados por terceiros. Expressamente: “O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”.

E qual a razão base disso? Os provedores de conexão cuidam, em sua atividade primária, do fluxo de pacotes desde sua dimensão física até o controle dos dados em cabos e wi-fi. Eles não cuidam, portanto, de eventual conteúdo gerado na camada de transporte (ex. FTP) ou de aplicação, que é o uso mais evidente, candente, da rede.

Importante ressaltar que essas responsabilidades, tratando de outro agente que gere conteúdo, trata de atividade de upload (envio de pacote de dados para a rede) que faça referência à conteúdo lato sensu. Mas não trata de responsabilidade por ato próprio: exemplo do próprio MCI é a degradação não autorizada do fluxo de pacotes, fora das hipóteses autorizadas, ferindo o princípio geral da neutralidade da rede.

Tomada a conexão como base e atividade restrita, o legislador do Marco Civil da Internet dispôs, acertadamente, de uma regra para a camada de aplicação, excepcional como é a própria camada. Diz o art. 19, do MCI, que “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário“. A exceção é o art. 21 nos chamados casos de “violação da intimidade”.

 

O PROBLEMA DA INCIDÊNCIA E DOS CONCEITOS

 

Incidência da regra jurídica é a autorização dada a elementos do mundo dos fatos para que ingressem no mundo jurídico (mundo dos pensamentos, ideal) com a carga específica da juridicização – é processo cultural-histórico de seleção dos fatos tidos como relevantes para o direito. Nas palavras de Pontes de Miranda (1954, p. 11) através da incidência, o cair da regra de uma dimensão das outras, “certos fatos-conteúdo [ocorridos], ou suportes fácticos, que têm de ser regrados, a regra jurídica incide. A sua incidência é como a da “plancha da máquina de impressão, deixando sua imagem colorida em cada folha”.

Suporte fático, por seu turno, é o substrato real-social que é introduzido no mundo jurídico para que passe a ter eficácia jurídica, ou seja, se transforma em fato jurídico (fato, ato-fato, ato stricto sensu e negócio).

Donde se vê que os atos-fatos (aqueles que apesar de terem vontade, como fenômeno, na sua composição, a regra jurídica rebaixa-a, considerando o evento do mundo como mero fato) e os atos jurídicos (em que a vontade, declarada ou manifestada, se impõe como elemento principal) relativos à atividade dos provedores de conexão e conteúdo não podem ter sua incidência de base equiparada. 

Os negócios jurídicos entre registries e registrars, por exemplo, em que são definidas as distribuições de pacotes IP, através da IANA (Internet Assigned Number Authority)/ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), e que são atividades classificáveis como “de conexão” por óbvio não se submetem ao regime das aplicações, como não contam, muitas vezes, com foro nacional (sendo matéria de direito internacional privado).

Os negócios jurídicos e atos-fatos gerados da atividade econômica de aplicações, como as plataformas (Facebook, Twitter, Instagram etc.), se notabilizam, por outro lado, pelo elemento vontade flagrante em relação com os produtores de conteúdo que ali expressam algo (seja essa vontade desconsiderada pela lei, manifestada ou declarada). Por essa razão, a regra geral do art. 18 é uma regra de “tudo fora”, enquanto a regra do art. 19 é de possível responsabilização, apenas quando não cumprida ordem de remoção emanada do Poder Judiciário. 

O tema já foi bem abordado aqui e acolá: a falta de decisão expressa e fundamentada do Judiciário ao tempo em que amplia o ônus de moderação e responsabilidade desses entes (privados ou públicos, pois nem toda aplicação é necessariamente de natureza privada), obstando o seu desenvolvimento, também abre brecha para uma filtragem privada de temas que devem ser socialmente discutidos, através de agente estatal autorizado (o juiz).

Como se vê, portanto, fora dos casos de conexão, o MCI busca aglutinar os provedores em “de aplicação”. Ocorre que nem toda plataforma exerce atividade equiparável entre si e nem toda aplicação é pragmaticamente análoga. O conceito de “provedor de aplicação”, ao tratar de qualquer conjunto de funcionalidade que rode na camada mais superficial da rede, incorre no problema geral semântico de que “o que tudo diz, nada diz”. 

A solução envolveria a criação de novos tipos para demarcação de novos suportes fáticos? Não. 

O sistema de responsabilidades do Marco Civil da Internet é de lei especial, não eximindo os atos próprios das mais diversas atividades dos proclamas do Código Civil – julga-se conforme os princípios (da teoria geral do direito). Da mesma forma, a dinâmica de subclassificação dos provedores de aplicação (vide, por exemplo, classificação granular de Marcel Leonardi, 2005, p. 19-32), como impõe a boa técnica, pode se dar por construção doutrinária e jurisprudencial – a razão para tanto é que a função da doutrina e da jurisprudência é dar cabo do aspecto dinâmico da realidade que a lei, fenômeno estático, não esgota, nem contém. 

 

 

REFERÊNCIAS

 

Kurbalija, Jovan. Uma introdução à governança da internet [livro eletrônico] / Jovan Kurbalija ; [Zoran Marcetic -Marca & Vladimir Veljasevic ; tradução Carolina Carvalho]. — São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016.

 

LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de Internet. SL, Editora Juarez de Oliveira, 2005.

 

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. T. I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954.

 

Esse texto faz parte das pesquisas relativas ao projeto “Responsabilidade Civil de Intermediários Tecnológicos”, realizado pelo IP.rec em 2021-2022. Para mais informações, busque a nossa página ou entre em contato por e-mail.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.

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