

Soluções tecnológicas para problemas sociais? O que é tecnosolucionismo
Publicado em: 14 de fevereiro de 2025.
A cada aprimoramento tecnológico que se apresenta, uma pergunta se coloca: será que a tecnologia um dia conseguirá nos livrar de nossos principais problemas enquanto sociedade? Será que questões como mobilidade urbana, violência, obesidade, desigualdade, impactos ambientais, entre outros tantos, poderão ser finalmente resolvidos com o auxílio de algum algoritmo ou aplicativo?
As questões parecem mais do que pertinentes. As tecnologias baseadas em inteligência artificial deram um salto de desenvolvimento durante a década de 2020, com o rápido avanço na velocidade de processamento dos computadores, na capacidade de armazenamento de dados, além da evolução dos modelos de aprendizagem profunda (Andrejevic e Selwyn, 2022). Constantemente são apontados planos ambiciosos para que as IAs, com suas capacidades massivas de processar informações, possam prover os mais variados tipos de soluções.
Seguindo essa tendência, hoje é possível acessar por meio de smartphones várias atividades que até então só seriam possíveis por meio de um conjunto de instituições. O Uber realiza o transporte de passageiros que antes era realizado por companhias de táxi; o AirBnb tem absorvido parte da demanda que antes era atendida por hoteis; a Amazon atua como intermediária entre compradores e vendedores. O planejamento urbano e o tráfego são intermediados por ferramentas como o reconhecimento automático de placas de veículos, câmeras de vigilância, rastreadores de GPS, monitorando constantemente a vida dos cidadãos (Morozov, 2018: 57; 80).
Em Recife, alguns sinais dessa tendência mais ampla já podem ser identificados ao observarmos as respostas do poder público a determinados acontecimentos. No dia 1º de fevereiro deste ano, após episódios de violência entre as torcidas organizadas do Sport e do Santa Cruz, o governo do Estado de Pernambuco resolveu adotar um protocolo de cadastramento para acessar os estádios baseado em reconhecimento facial e biometria, além de proibir torcidas nos próximos cinco jogos dos times.
Cidades Inteligentes
Muitas dessas propostas seguem a retórica da “cidade inteligente” ou “smart cities” – termos que têm sido utilizados para se referir a projetos que envolvem a contratação de soluções tecnológicas pelo poder público, com frequência através de parcerias realizadas com o setor privado. A tecnologia é apontada como um meio para otimizar o uso de recursos e melhorar a eficiência nos serviços, modernizá-los (Morozov; Bria, 2019). Com frequência, tem-se aí o pressuposto implícito tecnologias são sinônimo de progresso, portanto qualquer desvio do modelo pelo qual as instituições tradicionais fazem as coisas seria “melhor, mais progressista e mais equitativo” (p. 154).
Essa constelação de significados e atributos associados à tecnologia é alinhada com a epistemologia predominante no Vale do Silício: a de que a maior parte dos problemas podem ser resolvidos através de mais computação (ou códigos) e mais informação (ou dados) – provavelmente uma combinação de ambos. Nessa lógica, os problemas da humanidade podem ser resolvidos como uma espécie de bug, bastando um aplicativo suficientemente inovador (Morozov, 2013).
Os exemplos são muitos. Morozov ilustra a sua discussão ao falar da tentativa de resolver problemas como a obesidade [1] através de um aplicativo que monitora o quanto caminhamos durante o dia, lançando alertas quando damos menos passos do que o ideal; que monitora o que comemos e acompanha a nossa dieta. A suposição, nesse caso, deriva da economia comportamental, segundo a qual tomamos com frequência decisões irracionais, porém se recebermos as informações e orientações adequadas, disponibilizadas através desses aplicativos, poderíamos transpor tal irracionalidade. Parece ótimo, não é?
Neste tipo de resolução, as causas da obesidade parecem se resumir a um único fator: a culpa é do indivíduo e suas escolhas. Ainda que, individualmente, aplicativos como esses possam ser úteis, se considerarmos sob o ponto de vista sociológico – em especial tratando de políticas públicas – a obesidade vai muito além de uma soma de escolhas individuais. Como questão de saúde pública, a obesidade pode ser consequência de múltiplos fatores de natureza social, cultural e econômica, como a alteração nos modos de vida da contemporaneidade, a oferta e ao preço de alimentos, em especial de ultraprocessados; ao acesso a espaços para a realização de atividades físicas; às questões de classe associadas a esses fatores, só para citar alguns (Poulain, 2013). Ou, de modo mais ilustrativo:
Talvez, caso você seja pobre, obrigado a ter vários empregos e não disponha de um carro para comprar alimentos orgânicos em mercados especializados, fazer refeições de baixa qualidade em um McDonald ‘s seja uma decisão perfeitamente racional: você obtém a comida pela qual pode pagar. Qual o sentido de dizer o que você já sabe: que está comendo comida barata e ruim? O problema a ser resolvido nesse caso é o da pobreza – por meio de reformas econômicas -, e não o da carência de informações (Morozov, 2018:40).
Em muitos desses casos, mais do que a própria solução, o diagnóstico do problema é a parte mais contenciosa envolvida. É o que Morozov aponta como “encerramento do problema” – quando um problema é mais presumido do que efetivamente investigado, e assim, as respostas a ele são desenvolvidas antes que as perguntas adequadas tenham sido feitas. Dessa forma, as causas e consequências identificadas são demasiadamente simplistas, reduzindo também o escopo de alternativas possíveis para a sua resolução. Se os formuladores de políticas, inspirados pela retórica do Vale do Silício, redefinem os problemas como mera insuficiência de informações, talvez baste o acesso a aplicativos [2] para considerar o problema como resolvido, oferecendo uma explicação monocausal. O problema é despido de suas dimensões materiais e políticas, resultando num processo de individualização da política (Morozov, 2013; 2018). Mas será que é possível resolver problemas complexos, como a pobreza e a desigualdade social, através de um aplicativo?
É dentro desse contexto que Evgeny Morozov (2013: 6) define o solucionismo tecnológico – ou tecnosolucionismo: uma “busca doentia por soluções atraentes, monumentais e de curto prazo – o tipo de coisa que empolga o público em eventos como TED Conferences – para questões extremamente complexas, fluidas e controversas” (Marx, 2024: 85). Ainda que pareçam bem intencionadas, essas soluções não existem num vácuo político – ao propor resultados mais imediatos, baratos, simples de implementar e aprazíveis para os cidadãos (e potenciais eleitores), podem contribuir para minar o apoio a reformas mais profundas (idem; Lenhardt e Owens, 2020).
O solucionismo tecnológico, aliás, floresce muito bem num contexto de descrença nas instituições. Por que, afinal, perder tempo com instituições lentas, burocráticas e ineficazes quando podemos recorrer a soluções mais modernas? – Nesse entendimento, é deixada de fora toda a complexidade dos processos políticos e deliberativos que compõem a democracia, assim como a busca coletiva por um projeto de sociedade baseado no interesse comum e na solidariedade. A mentalidade do cidadão é transformada em mentalidade de consumidor (Morozov, 2013).
No entanto, serviços prestados por empresas não têm como premissa os mesmos princípios dos serviços públicos, que são baseados no interesse público. Ainda que na prática, as instituições do Estado revelem diversas falhas em operacionalizar esse princípio, isso somente reforça a necessidade de aprimorar seus mecanismos. Por sua vez, ainda que efeitos sociais positivos possam ocorrer a partir das atividades de empresas, estas são inexoravelmente norteadas pelo lucro.
Ainda que esse debate tenha sido trazido por Morozov de forma bastante original, é possível inseri-lo dentro de um debate mais amplo sobre os processos típicos do neoliberalismo. De acordo com Wendy Brown (2006: 704), esse seria o caso da despolitização dos problemas sociais: todo problema político ou social seria convertido nos termos do mercado, enquanto problemas individuais que podem ser resolvidos através da oferta de um serviço ou produto de consumo (ou um aplicativo). Essa conversão despolitiza tudo o que é produzido historicamente, inclusive o capitalismo em si. Para cada problema socialmente produzido, seria oferecida uma solução pessoal, e assim, a privatização, como valor e prática, penetra profundamente na cultura e no cidadão-sujeito.
Com este debate em mente, retomemos para um exemplo local.
As respostas à violência entre as torcidas organizadas
O uso de reconhecimento facial em políticas de segurança pública é um exemplo clássico de seara na qual o paradigma do tecnosolucionismo se faz presente, enquanto pouquíssimas evidências que o justifiquem são apresentadas. O exemplo mais recente é o que ocorreu no dia 1º de fevereiro deste ano em Recife, algumas horas antes do jogo de futebol entre o Sport e Santa Cruz. Estima-se que cerca de 150 torcedores do primeiro time entraram em confronto com 700 a 1000 torcedores do segundo nas ruas da cidade, de acordo com a Polícia de Pernambuco.
Ao menos 12 pessoas ficaram feridas e quatro foram internadas; 14 pessoas foram detidas. Uma imagem chocou o país: o presidente da Torcida Jovem do Sport, João Victor, desacordado e seu roupas, foi espancado por mais de 10 homens, o que culminou com um ato de violência sexual no meio da rua. O jogo entre os times que estava marcado para algumas horas mais tarde não foi cancelado, e ocorreu normalmente, sem registros de confusões dentro do estádio.
A resposta imediata do governo do Estado diante do episódio foi proibir a presença de torcidas nos próximos cinco jogos dos times e exigir a implementação de reconhecimento facial e biometria para o acesso aos estádios. As medidas parecem desconsiderar toda a dinâmica que tornou possível o episódio, que ocorreu horas antes e do lado de fora do estádio, em diversos pontos de Recife e de cidades vizinhas. O acirramento entre as torcidas se deu dias antes do jogo e pôde ser acompanhado inclusive através de redes sociais. O relatório da Delegacia de Polícia de Repressão à Intolerância Esportiva (DPRIE), responsável por reprimir crimes relacionados aos jogos de futebol, revela que as forças de segurança tinham conhecimento prévio do planejamento dos confrontos, mas não foram eficazes em posicionar o policiamento em áreas estratégicas.
Além disso, é preciso considerar, no enquadramento do problema, que a violência que ocorre entre torcidas organizadas segue um modus operandi. Torcidas organizadas são também espaço de sociabilidade, lazer e pertencimento, de rivalidade e demonstração de poder em relação a outros grupos, além de trazer questões associadas à classe social e ao ethos da masculinidade, só para citar alguns. Trata-se de futebol, mas não somente. Pode resultar em episódios graves de violência, mas não se restringe a isso. Para um observador externo pode parecer anomia, mas há códigos de conduta e moralidade internos. E somente tomando em consideração essa complexidade é que pode-se compreender não somente a adesão ao grupo como a comportamentos mais radicais dentro dele, delimitando adequadamente o problema que se visa responder.
A medida tomada pela Governadora Raquel Lyra, portanto, parece desconectada de toda a dinâmica que pode ter dado origem ao confronto – mas segue na linha de uma tendência nacional de adotar a vigilância intensiva através de aparatos tecnológicos como medida de segurança pública. A Lei Geral do Esporte (Lei n.º 14.597/2023) obriga aos estádios com capacidade maior de 20 mil torcedores a instalarem câmeras de reconhecimento facial para controle de acesso, sob argumento de aumentar a segurança para torcedores, identificando aqueles que tenham sido banidos dos estádios ou procurados pela justiça, além de supostamente agilizar o acesso – o que até agora não ocorreu na prática.
Por outro lado, essa adoção massiva levanta questões significativas sobre privacidade, consentimento e discriminação potencial. Isso porque os recorrentes casos de falsos positivos e outros erros técnicos têm causado constrangimento e criminalização de comunidades que já são vulneráveis. Sai prejudicada não somente a cultura esportiva como o acesso de torcedores de camadas mais populares aos estádios (Sousa, et al, 2024). Em outras palavras, trata-se de uma medida de segurança que não encontra respaldo nas evidências disponíveis, sendo mais um caso de implementação tecnológica como um fim em si mesmo. As causas da violência seguem intocadas, muito dinheiro é desperdiçado, e as medidas de segurança retornam à mesma condição de sempre: enxugar gelo.
A tecnologia não pode ser uma aliada?
Ainda que tenhamos questionado o sentido de diversas implementações tecnológicas para a resolução de determinados problemas, é importante reforçar que rejeitar o solucionismo tecnológico não significa rejeitar a tecnologia. A tecnologia pode e deve fazer parte de um projeto de sociedade melhor, contribuindo para lidar com vários de nossos problemas mais relevantes.
O importante é não perder de vista que o uso de tecnologia não deve ser visto como um fim em si mesmo ou como substituição das decisões políticas necessárias para lidar com um problema público. Ainda que experienciemos individualmente vários desses problemas, há uma multiplicidade de fatores que integram as causas e as possíveis resoluções para um dado problema social. Há tecnologias que podem contribuir para resolver uma pequena e importante fração de um problema mais amplo. E há tecnologias que sequer devem ser implementadas.
Notas de rodapé
[1] É importante destacar que aqui não pretende-se endossar qualquer discurso de gordofobia ou estigmatização da obesidade. O foco aqui adotado diz respeito à perda de saúde e bem-estar no contexto do aumento da taxa mundial de obesidade que tem sido identificado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
[2] Poderíamos ainda falar sobre quem tem acesso a internet de qualidade e a um smartphone para acessar tais aplicativos num país com o nível de desigualdade do Brasil, por exemplo.
Referências
ANDREJEVIC, Mark; SELWYN, Neil. Facial recognition. John Wiley & Sons, 2022.
BROWN, Wendy. American nightmare: Neoliberalism, neoconservatism, and de-democratization. Political theory, v. 34, n. 6, p. 690-714, 2006.
JOHNSTON, S. F. The technological fix as social cure-all: origins and implications. IEEE Technology and Society, 37(1), pp. 47-54. 2018.
MARX, Paris. Estrada Para Lugar Nenhum: O que o Vale do Silício não entende sobre o futuro dos transportes. São Paulo: Ubu Editora, 2024.
MOROZOV, Evgeny. To save everything click here: Technology, solutionism and the urge to fix problems that do’nt exist. London: Penguin Books, 2013.
MOROZOV, Evgeny. Big Tech: A ascensão dos dados e morte da política. São Paulo: Ubu editora, 2018.
MOROZOV, Evgeny; BRIA, Francesca. Cidades Inteligentes: Tecnologias urbanas e democracia. São Paulo: Ubu editora, 2019.
LENHARDT, Amanda; OWENS, Kellie. Good intentions bad inventions: The four myths of healthy tech. Data & Society. October 2020.
POULAIN, JP. Sociologia da obesidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2013.
SOUSA, Raquel. et al. Esporte, Dados e Direitos: O Uso de Reconhecimento Facial nos Estádios Brasileiros. Rio de Janeiro: CESeC, 2024.

Clarissa Mendes
Possui graduação incompleta em Relações Internacionais (FIR). É graduada em Ciências Sociais (UFPE). É mestra e doutoranda em Sociologia pela mesma universidade, além de integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas de Segurança (NEPS). Atualmente, é líder de projetos e pesquisadora na área de Inteligência Artificial no IP.rec.
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Contribuição do IP.rec para a “Tomada de subsídios: Inteligência Artificial e revisão de decisões automatizadas” da ANPD
