“Nada grandioso entra nas vidas dos mortais sem uma maldição” – Sófocles

É com essa frase de impacto que começa o documentário da Netflix e ao longo dele muitas outras são apresentadas. Pode-se, inclusive, afirmar que impactar o espectador é justamente o objetivo desta obra. A análise alarmista e pessimista do papel das redes sociais e os danos que elas causam na sociedade, desde sua interferência na política até os efeitos na saúde mental, reverberaram consideravelmente, abrindo espaço para discussões e reflexões das mais diversas.

Antes de detalhar algumas das temáticas abordadas no documentário, é necessário desconstruir o pensamento de que há diferença entre o espaço virtual e o real. Podemos compreender o ciberespaço como um novo mundo, um novo espaço de significações, um novo meio de interação, comunicação e de vida em sociedade. Esse universo não é irreal ou imaginário – existe de fato. A emergência do ciberespaço possibilita o surgimento de uma nova era da sociedade humana; no entanto, trata-se de um novo meio, nada mais que mais um ambiente, um contexto ainda desconhecido, começando a ser explorado.

Diante disso, é evidente que uma realidade plena – certamente não virtual, mas bem real – emergiu do uso das TICs, realidade na qual vivemos, pensamos, nos movemos e agimos. Portanto, é natural que nossos processos psicológicos se adaptem a esta realidade e a estas novas modalidades de existência, o que engendra repercussões significativas nos nossos afetos e processos cognitivos. Para estudar estas repercussões, nasce então uma nova disciplina: a ciberpsicologia.

O que pensamos ser, em seus começos, apenas uma revolução tecnológica, facilitadora de nossa vida quotidiana, tornou-se de fato uma revolução existencial, afetando-nos profundamente em nossas vivências, em nossas percepções e na compreensão de nossa própria humanidade. (Donard, 2016)

Em dado momento do documentário, é apresentado o conceito de que “se você não está pagando pelo produto, então você é o produto”, seguido de toda a manipulação exercida pela indústria numa “competição pela atenção do usuário”. É importante destacar aqui que essa manipulação encontra um campo extremamente favorável, uma vez que já é, por si só, desafiador acompanhar as tecnologias que avançam num ritmo frenético, requerendo do ser humano um movimento de transformação e reajustamento dos processos psicológicos básicos e exigindo uma contínua adaptação cognitiva. Este se encontra, então, em situação vulnerável cognitivamente.

Sendo assim, não é tarefa difícil utilizar as vulnerabilidades do ser humano a favor da indústria, tanto é que é citado por alguns personagens como pessoas da área técnica e de desenvolvimento estudam noções da psicologia e utilizam-se de técnicas com o objetivo deturpante de persuadir as pessoas. Comenta-se como essa tecnologia persuasiva tem o intuito de ser aplicada ao extremo buscando a mudança no comportamento das pessoas.

A psicologia citada no documentário é estudada para ser utilizada de forma distorcida e antiética, utilizando-se de técnicas behavioristas para atrair a atenção, a exemplo do reforço intermitente positivo (deslizar o dedo para atualizar). Ainda, implantação de hábitos inconscientes, como bem aponta o Sean Parker (ex-presidente do Facebook), quando explana sobre como são exploradas ao máximo as fraquezas da psique humana.

Entretanto, por mais que uma das soluções apresentadas seja a restrição completa do uso das redes sociais, como exemplo do livro “Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais”, do autor Jaron Lanier, não podemos afirmar que essa solução seja efetiva. Pode ter funcionado com o autor, porém não é via de regra. Ao contrário, é necessário observar que as redes sociais atualmente têm um papel muito maior do que apenas o entretenimento e a socialização, elas são muitas vezes utilizadas como um recurso de trabalho, além de ser uma forma de acesso a serviços básicos garantidos pelos direitos fundamentais.

Eis que surge a questão: como julgar a utilização frequente das redes sociais como um vício ou uma dependência, que inclusive foi comparada no documentário com a dependência de drogas?

“Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software.”, citou Edward Tufte durante o filme.

É muito perigoso fazer essa comparação, pois cairemos numa patologização de toda uma sociedade. Não se pode olhar esse uso de forma generalista, é necessário olhar o uso individual e que tipo de prejuízos esse uso acarreta, pois fato é que muitas vezes o não uso das redes sociais também pode ocasionar danos, a exemplo dos prejuízos econômicos, quando se trata de pessoas que utilizam destas redes como meio de trabalho.

Hoje em dia, acorda-se com o alarme dos dispositivos, checa-se a caixa de entrada do email, pede-se comida pelos aplicativos de entrega, solicita-se um carro para locomover-se pela cidade, relaciona-se afetivamente e sexualmente por aplicativos e etc. Se for contabilizar todo esse uso, serão todos rotulados como viciados. É essencial entender o quão consciente cada sujeito está e que formas de controle ele utiliza antes de realizar diagnósticos.

Ademais, é colocada também em pauta a responsabilidade das mídias sociais no evidente e significativo aumento dos quadros de depressão e ansiedade em crianças e adolescentes, assim como episódios de auto-mutilação, e o triste e doloroso aumento da taxa de suicídios.

É válido ressaltar que apesar do documentário apresentar índices referentes as crianças e jovens dos Estados Unidos, o relatório apresentado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2016 já demostra a gravidade a nível global, quando aponta que, a cada quatro segundos, uma pessoa comete suicídio no mundo. Destaca-se, ainda, que essa é a segunda principal causa de morte da população entre 15 e 29 anos.

Sendo assim, no Brasil a situação não é diferente. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, entre 2011 e 2018 houve um aumento de 10% dos casos, com destaque para 2016-2017.

Todavia, o nexo causal entre mídias sociais e aumento de sofrimento psíquico pode resultar em uma culpabilização do ciberespaço, quando na verdade é necessário observar que o sofrimento humano é muito mais complexo e resulta de diversos fatores. Como o grupo de crianças e adolescentes estão em fase de desenvolvimento, existe uma menor capacidade crítica, acrescida de todas as vulnerabilidades existentes no próprio processo de amadurecimento, e as mídias sociais encontram na fragilidade desses sujeitos campo fértil para manipulação da mente e influenciar comportamentos.

Dessa forma, o ciberespaço pode sim se tornar um espaço adoecedor, gerando sentimentos negativos, baixa autoestima e insatisfação com a vida. Porém, ainda é necessário avaliar a dinâmica familiar, se esse sujeito foi exposto a episódios de violência ou de abandono e todo o contexto de acolhimento em que ele se encontra, para assim afirmar que as mídias sociais por si só não são causadoras de uma patologia, mas podem e muitas vezes efetivamente geram gatilhos que potencializam o sofrimento.

Dado o exposto, fica evidente que são diversos os questionamentos e reflexões acerca do uso do ciberespaço e todo o impacto na subjetividade humana, não esgotando nesse texto a discussão sobre o dilema das redes. Apesar do intuito alarmista, há de se reconhecer a importância do debate gerado. Embora questões existenciais tenham sido colocadas de modo até um pouco distópico, ainda é de poder do ser humano a mudança.

 

Bárbara Alves é formada em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) 2019. Pesquisadora no Laboratório de Ciberpsicologia da Unicap e Pesquisadora Integrante do grupo Pesquisas Em Ciberpsicologia e Humanidades Digitais, da Unicap, vinculado ao DGP – Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil e ao CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

 

REFERÊNCIAS

FERNANDEZ, Elaine Magalhães Costa; DONARD, Veronique. O psicólogo frente ao desafio tecnológico: novas identidades, novos campos, novas práticas. Recife: Ufpe, Unicap, 2016. 253 p.

https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/setembro/21/2017-025-Perfil-epidemiologico-das-tentativas-e-obitos-por-suicidio-no-Brasil-e-a-rede-de-aten–ao-a-sa–de.pdf

https://veja.abril.com.br/saude/suicidio-e-segunda-causa-de-morte-entre-jovens-de-15-a-24-anos-diz-oms/

 

Bárbara Alves

Compartilhe

Posts relacionados