Desinformação no mundo

Em setembro deste ano, o Computational Propaganda Research Project do Oxford Internet Institute (ComProp – OII) lançou um relatório com dados alarmantes, mas infelizmente nada surpreendentes [1]. O relatório, chamado de “Global Disinformation Order” [2] faz parte de uma série que o centro publica anualmente acompanhando registros de campanhas de desinformação ao redor do mundo. Na edição de 2019, o ComProp identificou campanhas de desinformação em 70 países, o que já mostra que a prática de usar a internet e redes sociais para influenciar a opinião pública é um fenômeno global em franco crescimento e processo de especialização [3]. A metodologia de pesquisa analisa exclusivamente dados secundários, o que significa que o relatório é formado apenas a partir de relatos da mídia ao redor do mundo, confirmadas pela consulta de especialistas locais.

Portanto, esse número de 70 países não é uma representação precisa de todos os países que organizaram campanhas de desinformação online, mas representa aquilo que a apesar de já apresentar informações preocupantes, é a ponta do iceberg – e já indica que as jurisdições ao redor do mundo estão com dificuldade para controlar a onda de campanhas de desinformação.

Um outro dado importante é a variedade no uso de plataformas. Não nos surpreende a constatação de que o Facebook ainda é a “arma” preferida, usada por 56 dos 70 países estudados. Contudo temos a ascensão rápida de três plataformas de enorme relevância: WhatsApp, YouTube e Instagram. Essas plataformas são relativamente subestudadas, parte pela dificuldade técnica que suas características impõem, parte porque o foco da atenção foi durante muito tempo direcionado ao Facebook.

Campanhas de propaganda foram encontradas, em maior ou menor grau, em praticamente todas as plataformas, incluindo Snapchat, Telegram, Tinder, WeChat entre outras. Nesse sentido, os escândalos midiáticos se concentram muito sobre plataforma individualmente, quando os desafios regulatórios dizem respeito a um universo de meios de comunicações.

 

O que houve no Brasil?

A experiência brasileira nas eleições presidenciais de 2018 foi muito emblemática dessa tendência mundial de expansão de campanhas de desinformação. Assim como se registrou nos relatórios do ComProp em 2019 e nos anos anteriores [4], há uma especialização das campanhas, com maior aporte de recursos e o uso de empresas dedicadas à produção e disseminação de propaganda política online.

Em alguma medida, as autoridades brasileiras haviam antecipado a ocorrência de campanhas de “fake news” nas eleições, e anteciparam meios de combate à desinformação. O principal exemplo é a aprovação da Resolução 23.551/17 do Tribunal Superior Eleitoral, que visa inibir a divulgação de conteúdo falso para fins políticos, assim como impedir o uso de contas falsas. Contudo, durante o período de campanha, as normas não foram suficientes para impedir que houvesse a disseminação de conteúdo que fosse falso ou deliberadamente enganoso, com o objetivo de prejudicar a discussão online.

Em Oxford, esse fenômeno também nos intrigou. O ComProp produz relatórios sobre o compartilhamento de notícias e conteúdo político no Twitter durante o período de campanha de grandes eleições ao redor do mundo. Participei do relatório que estudou o Twitter para a campanha de 2018, e nos chocou quão baixo era o índice de conteúdo noticioso enganoso (chamado no relatório de “junk news”) que circulava na rede [5]. Conversando com meus colegas, estávamos perplexos com um número que era inclusive muito baixo quando comparado com outros países.

Na sequência, realizamos um estudo ligado no WhatsApp, avaliando o mesmo tipo de conteúdo noticioso que circulava em grupos políticos abertos. Então, encontramos algo que nos acusou o óbvio: a desinformação no WhatsApp era cerca de 11 vezes maior do que no Twitter [6]. Importa fazer a ressalva que avaliamos apenas links de notícia e não incluímos conteúdo audiovisual, como vídeo, áudio e imagens.

De início, isso confirma uma obviedade: as plataformas não são usadas da mesma forma em todos os países e, portanto, não são usadas da mesma maneira pelos atores políticos que se aventuram nos meios de comunicação e nas redes sociais para divulgar seu conteúdo (falso ou não).

Contudo, ao esmiuçarmos a divulgação de links no WhatsApp, encontramos alguns sinais importantes: 42% dos links compartilhados no WhatsApp apontavam para conteúdo no YouTube. Igualmente, havia links que redirecionavam para o Facebook, Instagram, Telegram e outras plataformas. Retorno aqui ao ponto que mencionei anteriormente quando falava da informação como um fenômeno global: identificamos no Brasil que o WhatsApp foi usado para a desinformação, mas não foi usado de forma isolada. Cabe a nós o desafio não só de entender as plataformas individualmente, mas de entender como o ecossistema de serviços e redes sociais vem sendo articulado como um todo, algo que ainda não se discute muito no campo regulatório. Nesse sentido, é importante apontar que alguns aspectos da legislação mais ampla sobre dados e internet no Brasil acabou definindo muito do comportamento nocivo que é compreendido como “fake news”.

 

Aspectos legislativos

Alguns dos fatores determinantes mais relevantes são disputas políticas que já haviam sido travadas no legislativo brasileiro anos antes, mas que demoraram muito para receber a devida atenção do legislativo.

Uma das características marcantes do uso do WhatsApp no Brasil é o número estarrecedor de usuários, somando mais de 120 milhões de pessoas, algo muito próximo ao número total de brasileiros conectados à internet [7]. Parte do sucesso do WhatsApp se dá pelo fato do aplicativo ser “leve”, ou consumir relativamente pouco dados para a transferência de dados. Por outro lado, o sucesso também se dá pelo fato de que o Marco Civil da Internet e o seu Decreto Regulamentador, de 2016, estabeleceram a Neutralidade de Rede, mas nunca proibiram a prática de “Zero Rating”. Trata-se de prática de dados patrocinados, em que empresas fazem acordos comerciais com as operadoras de telefonia para patrocinar dados de um serviço específico. Assim, usuários do WhatsApp, por exemplo, podem usar o serviço de forma ilimitada e de graça, enquanto os outros serviços consomem seus planos de dados.

A discussão sobre desinformação na internet revisita esse tema, uma vez que o direito brasileiro optou por ser mais tolerante com essa prática. Contudo, há a preocupação de que essa conduta gera reserva de mercado para um serviço específico. Assim, visto que os outros serviços na internet são cobrados normalmente, há também a incapacidade dos usuários de acessarem outras informações que poderiam reduzir o dano causado pela desinformação em plataformas de mensagem pessoal.

Na sequência, um problema que voltou para nos morder durante as eleições foi a questão da lei geral de proteção de dados. O legislativo brasileiro protelou em anos a aprovação da LGPD (assim como demorou em aprovar o Marco Civil da Internet). É preocupante a demora do legislativo em encarar tópicos ligados à internet e a proteção de liberdades fundamentais nessa infraestrutura de comunicação tão importante ao desenvolvimento da sociedade contemporânea. Para as eleições de 2018, a LGPD chegou tarde demais. Assim como os escândalos de vendas de dados do Facebook, no Brasil nada impedia que empresas com bases de dados gigantescas vendessem ou vazassem dados para serem usados para fins eleitorais. Há evidência robusta mostrando que essas práticas ocorreram durantes as eleições e que alimentaram práticas de propaganda direcionada durante o período de campanha [8].

 

O que vem agora?

Além de conceber normas específicas para o combate à desinformação, a discussão essas dessas leis era imprescindível para assegurar a proteção de liberdades fundamentais online. Esse é o objeto da discussão sobre desinformação: assegurar que a propaganda online não fira liberdades e o sistema democrático. Nesse sentido, a reticência dos legisladores e reguladores brasileiros teve um preço alto, que foi a catalisação de um fenômeno político que vinha acontecendo no mundo inteiro.

A proteção de liberdades fundamentais online parece não ser suficientemente sólida para conceituarmos e discutirmos os fenômenos complexos que ocorrem na internet. A meu ver, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre “fake news” é um ótimo exemplo, onde o objeto do inquérito orbita uma variedade de assuntos, incluindo ataques pessoais (chamado trolling), a difamação de políticos, pânicos morais como o “Momo” e outros. Se a preocupação com a definição de direitos é tímida, como conseguiremos determinar a violação dos mesmos? Por isso, é difícil explicar como o fato determinado da CPMI não faz sentido: não entramos num acordo sobre as premissas.

Por óbvio, o debate sobre desinformação terá de correr em paralelo com os demais debates sobre a internet que estão correndo no Brasil. Caberá, nesse campo, compreender como proteger o espaço público de debate que se estabelece nos meios digitais, assim como as obrigações do poder público, das plataformas, das figuras públicas e dos usuários. Uma grande oportunidade para abordar essa questão é no debate sobre se governantes podem ou não bloquear seguidores em redes sociais. A Procuradoria Geral da República já sinalizou um entendimento defasado [9]. Sem gerar consenso sobre como proteger esse espaço público, fica muito difícil dar o próximo (e importantíssimo) passo, que é a regulação desse ecossistema de plataformas para controlar campanhas de desinformação – a resposta pendente para os fenômenos que descrevi no início.

 

NOTAS:

[1] Samantha Bradshaw & Philip N. Howard, “The Global Disinformation Order: 2019 Global Inventory of Organised Social Media Manipulation.” Working Paper 2019.3. Oxford, UK: Disponível em Computational Propaganda. comprop.oii.ox.ac.uk. 23 pp.

[2] “Ordem Global de Desinformação”, tradução livre.

[3] Samantha Bradshaw & Philip N. Howard, op. cit.

[4] Versões anteriores disponíveis no site https://comprop.oii.ox.ac.uk/.

[5] Caio Machado, Beatriz Kira, Gustavo Hirsch, Nahema Marchal, Bence Kollanyi, Philip N. Howard, Thomas Lederer, and Vlad Barash. “News and Political Information Consumption in Brazil: Mapping the First Round of the 2018 Brazilian Presidential Election on Twitter.” Data Memo 2018.4. Oxford, UK: Project on Computational Propaganda. Disponível em comprop.oii.ox.ac.uk.

[6] Caio Machado, Beatriz Kira, Vidya Narayanan, Bence Kollanyi, and Philip Howard. 2019. A Study of Misinformation in WhatsApp groups with a focus on the Brazilian Presidential Elections.. In Companion Proceedings of The 2019 World Wide Web Conference (WWW ’19), Ling Liu and Ryen White (Eds.). ACM, New York, NY, USA, 1013-1019. DOI: https://doi.org/10.1145/3308560.3316738

[7] Segundo relato da própria companhia, informação disponível em Paulo Higa. “Facebook tem mais usuários que WhatsApp no Brasil e chega a dois terços da população.” Tecnoblog. 19 de julho de 2018, disponível em https://tecnoblog.net/252119/facebook-127-milhoes-usuarios-brasil/.

[8] Bruna Martins dos Santos; Joana Varon. “Analysis of the playing field for the influence industry in preparation for the Brazilian general elections”. Coding Right. Outubro de 2018.  Disponível em https://cdn.ttc.io/s/ourdataourselves.tacticaltech.org/ttc-data-and-politics-brazil.pdf.

[9] Juliana Gragnani; Rafael Barifouse. “Bolsonaro pode ser proibido de bloquear seguidores nas redes sociais, como Trump?”. BBC Brasil. 13 de novembro de 2019. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50316416.

Caio C. Vieira Machado

Foi pesquisador do Computational Propaganda Project do Oxford Internet Institute e do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio). É co-fundador do centro de pesquisa em direito, saúde e tecnologia HealthTech & Society. Mestre em Ciências Sociais e Internet pela University of Oxford e mestre em Direito e Tecnologia pela Université Paris 1:Panthéon-Sorbonne. É também formado em direito pela USP.

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