O anúncio da alteração do termos do WhatsApp trouxe uma corrida por parte dos usuários por alternativas. Será que um debate estritamente técnico sobre criptografia, coleta de dados e assuntos correlatos é suficiente para os usuários brasileiros justificarem suas escolhas? Este texto parte para um breve estudo de caso nos veículos de mídia especializados em tecnologia para entender as principais reações dos usuários da plataforma.

O início do ano de 2021 trouxe uma grande notícia para os usuários do mensageiro WhatsApp: uma notificação informando a atualização dos termos de uso e política de privacidade. Não se trata, entretanto, da primeira vez que o aplicativo mais popular de troca de mensagens no Brasil teve alterações em tais políticas. Em 2016, dois anos após a aquisição pelo Facebook, houve a primeira grande mudança do aplicativo e o mesmo ponto – o compartilhamento dos dados entre as plataformas – continua a levantar perguntas por parte dos usuários.

À época da mudança, o WhatsApp havia permitido aos usuários um tempo de 30 dias para decidirem se queriam ou não que seus dados fossem compartilhados com o Facebook. Passado o tempo, a escolha inicial do/a usuário/a era mantida e todos/as aqueles/as que fossem novos/as usuários/as da plataforma, ou que não responderam dentro dessa janela de tempo, passariam a compartilhar os dados (não o conteúdo das comunicações, é importante frisar) com o Facebook. Dessa forma, inúmeros/as usuários/as já realizam esse compartilhamento com a empresa, por muitas vezes sem o conhecimento consciente.

As mudanças, como muito foi noticiado, possuem relação com um anúncio realizado pela empresa em outubro de 2020, acerca de compras e pagamentos através do WhatsApp Business. Incluído no pacote de novidades estava o serviço de hospedagem pelo próprio Facebook para armazenar, responder mensagens e vender produtos, tudo de forma automatizada. Esse serviço já era oferecido por parceiros terceiros da proprietária do mensageiro, mas agora o Facebook busca alcançar um público empresarial de médio e pequeno porte a fim de oferecer os serviços de transações pelo aplicativo.

2. 

Normalmente, ao noticiar a temática, seja em sites de jornais, blogs, redes sociais, os pontos levantados enfatizam, em sua grande maioria, aspectos sobre quais as novidades na coleta de dados e quais são as possíveis consequências disso. Ao se tratar de uma mudança significativa, especialistas consultados buscam esclarecer esses pontos da melhor forma possível para um público mais amplo, o qual utiliza o aplicativo como a principal forma de comunicação com seus contatos. Nessas análises, porém, é perceptível um relativo afastamento com outras questões mais amplas, como se a mudança de termo para coleta de dados e as implicações de segurança digital se fechassem em si mesmas, não reverberando em outras práticas sociais. Por isso, questiona-se aqui: de que forma os usuários estão lidando com isso? Quais discursos são mobilizados para compreender essa mudança?

Sendo assim, observou-se seis matérias, quatro delas de sites de tecnologias e dois portais de veículos de comunicação tradicionais. Sobre seus conteúdos, quatro se referiam ao adiamento da aplicação dos novos termos e dois buscavam explicar o que havia mudado com as alterações. 

Se formos observar, por exemplo, pelo campo da criptografia, qual a relação que há com a mudança na política de privacidade? Tudo e quase nada. Como noticiado pelo Facebook, o WhatsApp manteria para usuários comuns a criptografia ponta-a-ponta por padrão, assim como para aquelas empresas que utilizam o WhatsApp Business ou ainda que utilizam a API do WhatsApp Business por conta própria para armazenar e mandar mensagens automatizadas, impossibilitando, consequentemente, que o Facebook tivesse acesso aos conteúdos da mensagem. 

A situação muda de figura quando uma prestadora de serviços é contratada para realizar esse  processo de automação, pois essa empresa faz a mediação da mensagem entre o cliente e a empresa, não havendo, portanto, uma garantia da criptografia ponta-a-ponta – aspecto reconhecido pelo próprio WhatsApp. Caso a empresa que faça a mediação seja o Facebook, eles afirmam que atuariam de acordo com as instruções do contratante, não utilizando os dados de forma automática para direcionar anúncios, ainda que haja liberdade para quem contratou de utilizar os dados coletados para direcionar anúncios via plataformas do Facebook.

Dessa forma, não deixa de se relacionar com a criptografia, pois se trata de uma mudança na forma que os usuários se comunicam com as empresas prestadoras de serviços, caso utilizem terceiros para automatizar as mensagens. Além disso, esse aspecto está intimamente conectado com a introdução do WhatsApp Pay no Brasil, autorizado no final de março pelo Banco Central para iniciar as operações em território nacional. Podemos, também, pensar em consequências de segurança sobre um possível ataque ou vazamento de dados pela intermediadora cliente-empresa, a qual, como indicado pelo Facebook, teria acesso ao conteúdo das mensagens trocadas. Ainda assim, como poderá ser observado nos registros a seguir, essas questões apontam para apenas um aspecto entre um mar de questões levantadas decorrente da mudança nos termos. 

3. 

Para iniciar a análise, devemos remeter ao principal criticado na história: o Facebook. Como já foi mencionado, a aquisição do WhatsApp pelo Facebook trouxe grandes ondas de suspeitas e ansiedade pelo que viria no futuro do aplicativo. Entretanto, fatos importantes aconteceram desde a aquisição e também remontam à Cambridge Analytica. O caso se tratou do vazamento de dados de aproximadamente 50 milhões de usuários do Facebook a fim de traçar perfis da população no contexto da campanha do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, entre outras conjunturas políticas internacionais. Esse episódio, exposto em 2018, alterou a forma que a empresa atua em relação aos dados, mas também alterou como o público enxerga o próprio Facebook e o seu fundador, Mark Zuckerberg. Não é sem motivo que esse caso é lembrado por um dos comentários coletados, enquanto vários outros citam diretamente o nome do presidente-executivo da empresa, caracterizando ele com adjetivos negativos (ver seleção de comentários nº 01).

Isso é importante de ser observado, pois estamos diante não somente de uma mudança na política de privacidade, ou de uma possível ”suspensão” da criptografia ponta-a-ponta para WhatsApp Business, mas sim dentro de uma confusa relação de “geopolítica, finança global, consumismo desenfreado e acelerada apropriação corporativa dos nossos relacionamentos íntimos” (Morozov, 2018, p.7). Autores como Bruno Latour (2019) vão justamente colocar que a característica dos ditos “modernos” é querer separar como totalmente distintos o campo dos “humanos” e dos “não-humanos”, entretanto, isso não ocorre na prática, pois no processo surgem os híbridos, fenômenos localizados entre natureza e a cultura, entre humanos e o não humanos. As reações às mudanças na política de privacidade, portanto, desencadeiam reações que transcendem o técnico e movem políticas e afetos. 

Dessa forma, se a empresa busca reforçar o aspecto técnico diante da manutenção da criptografia ponta-a-ponta, da segurança digital –  enfim daquilo do reino do não-humano – a realidade dos usuários traz outra proposta, um campo em que isso entre em combate com outros aspectos da vida, um local altamente híbrido e volátil. Para que possamos refletir adequadamente, a partir de uma perspectiva da “antropologia digital” sobre esses tópicos, acredito na proposta de Daniel Miller e Heather Horst (2013) de pensar numa perspectiva holística – não àquela de vertentes teóricas funcionalistas – a fim de trazer para a análise todos os fatores relevantes na vida vivida na pesquisa de campo. Portanto, apesar de estar focado em como os usuários reagem a essa mudança, ela engloba aspectos mais amplos, como fatos políticos passados, a digitalização do mundo contemporâneo, o modelo das big tech, o neoliberalismo e tantas outras problemáticas.

4. 

Tal mistura aparece, como observado nos printscreens, nos discursos dos usuários dos blogs e sites. Nos comentários coletados, a alteração do contrato para coleta de informações de uma empresa norte-americana leva a comentários sobre monopólios e mesmo sobre a moralidade da empresa, comunismo, censura, vigilância, privacidade, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), entre outros. Conversas de cunho mais técnico, como a LGPD, se cruzam com teorias conspiratórias sobre pessoas com chips implantados em seus corpos (ver seleção de comentários nº 02). Esse conjunto de comentários reflete uma preocupação crescente acerca da vigilância e privacidade de dados dos usuários que buscam se informar sobre o WhatsApp. Não se trata de uma generalização para toda população brasileira, obviamente, mas a amostra através dos seus discursos trazem essas questões à tona – nem sempre pelas razões corretas. Como podemos observar nos prints, um dos autores reforça como empresas tais como Google sabem o que você come, veste, bebe e que, mesmo assim, “quem não deve não teme”. Outro comentário fala no perigo das redes sociais e clama pelo que chama de uma “desinternetização”. Ainda, fruto de uma fake news, observa-se uma história de alguém que havia ido ao shopping e logo em seguida recebeu mensagem sobre o que a pessoa havia achado do local, levantando a suspeita, por parte de quem comentou, a existência da implantação de chips. 

Seja por serem entusiastas de tecnologia, especialistas na temática ou apenas pessoas preocupadas com sucessivas violações à privacidade, a indagação aparece. Entretanto, saber quais dados são coletados, por quais motivos e porque há uma integração com tais plataformas é a grande questão. Se, às vezes, para especialistas no assunto essas e outras questões são obscuras, para o público majoritário dessas plataformas se torna uma espécie de cegueira.

De forma semelhante, penso que esses dados não devam ser tratados num campo quase como “metafísico”, mas sim que eles sejam construídos em uma materialidade. Como colocam Daniel Miller e Heather Horst (2013), quanto mais uma tecnologia digital é absorvida na prática diária, mais tendemos a perder a noção de que essa forma tem aspectos materiais e mecânicos – sendo apenas lembrados quando “quebram” – pois elas criam justamente a ilusão de imaterialidade, de estarem apartadas de um contexto maior. Por exemplo, nós lembramos que o WhatsApp está envolvido em uma infraestrutura mais ampla que apenas é notada quando o aplicativo é bloqueado pela justiça e saí do ar. Sendo assim, ao colocar localização, identificadores, IP e tantas outras coisas sobre uma mesma categorização de “dados”, há a possibilidade de esquecer o que cada um desses recursos coletados dos usuários pode afetar em uma realidade concreta. Quais são as implicações de uma empresa terceira, que media sua compra com uma loja, ter acesso ao conteúdo de suas conversas? Se podemos apontar um mérito do documentário O Dilema das Redes (levantado por um dos comentários coletados) é justamente introduzir um público mais amplo à temática – ainda que possa se tratar de uma grande mea-culpa dos que estavam diretamente envolvidos na construção em tais problemas.

5.

A alteração dos termos, como efeito dominó, levou ao crescimento de dois concorrentes diretos do WhatsApp: o Telegram e o Signal. Retomando Morozov, isso reforça a malha confusa que vivemos, a qual leva a um impacto econômico direto. Os diversos comentários reforçam essa perspectiva de fuga, discordando dos novos termos por medo de ter a privacidade ameaçada (ver seleção de comentários nº 03). Pontos para serem notados é que os discursos trazem uma perspectiva individualista da resolução do problema, isto é, “caso eu mude de aplicativo tenho minha segurança garantida”. O Telegram é reforçado pelos usuários/as dos sites acessados como uma alternativa com mais recursos e segurança, enquanto, na realidade, suas comunicações não são encriptadas ponta-a-ponta por padrão, por exemplo. Sendo assim, imaginários sobre as tecnologias são motores de guia para escolhas de aplicações, motivados por fatos políticos, econômicos e psicológicos.

Essa ação individual como forma de solução não chega a ser sem razão. Morozov (2018) também enfatiza como o estabelecimento do neoliberalismo na década de 80 foi essencial para que as big techs fossem fortalecidas. Tal paradigma econômico capitalista necessita, como todo modo de produção, de bases subjetivas para se manter, alcançados através da socialização constante de nossa vida. Em crítica à dicotomia sociedade versus indivíduo, a antropóloga Marilyn Strathern (2017) fala justamente da frase dita por Margaret Thatcher: “A sociedade não existe. Existem homens e mulheres como indivíduos, e existem famílias”. A autora vê nisso uma tentativa de trazer as motivações e ações individuais como únicas existentes, as quais são compreendidas como auto-suficientes financeiramente, devendo dar conta de sua própria realidade, tornando invisível qualquer forma de relação social que não seja modelada e focada apenas nos indivíduos.                                                    

Enfim, a busca por um novo serviço de troca de mensagens pelos usuários, centradas basicamente no Telegram e Signal não se dá apenas por quesitos de segurança. Por exemplo, o Telegram sempre foi visto enquanto alternativa imediata quando o WhatsApp ficava fora do ar, enquanto o Signal teve suas buscas impulsionadas graças ao apoio do empresário Elon Musk

Se formos observar de forma comparativa os dados armazenados por cada um dos serviços, o Signal é visto como mais amigável à privacidade na medida em que não monetiza metadados dos usuários. No campo criptográfico, entretanto, a situação muda, pois o Signal e o WhatsApp possuem por padrão criptografia ponta-a-ponta, impossibilitando que os próprios provedores tenham acesso ao conteúdo das mensagens. O Telegram, por sua vez, utiliza uma encriptação que armazena todos os dados em um servidor. Em termos de usabilidade, isso possibilita que o usuário tenha acesso a todo conteúdo da mensagem trocada com outros usuários/grupos e sincronizar com diversas plataformas (smartphone, tablet, computador etc). Essa vantagem é justamente um contraponto à segurança, pois quem invadir tem acesso a todas as mensagens trocadas pelo aplicativo. Além disso, uma vez que a criptografia ponta-a-ponta não é habilitada por padrão, surgem desconfianças sobre a segurança do aplicativo, ou seja, se a empresa e seus funcionários podem ter acesso aos conteúdos armazenados nos servidores. Segundo o Telegram, os dados armazenados são guardados em diversos servidores, sob jurisdição de diversas entidades legais, com as chaves necessárias para o funcionamento da criptografia repartida em diversas partes, sem que duas partes estejam localizadas no mesmo servidor. 

O complexo de reações sobre políticas de privacidade de serviços de mensageria, portanto, são permeados por fake news de chip que se misturam com debates sobre criptografia; interesses geopolíticos e teorias conspiratórias; leituras pouco aguçadas do que os contratos efetivamente dizem e vazamentos de dados que se misturam com o vazamento das comunicações da Vaza-Jato. Se falamos, portanto, de segurança, criptografia e privacidade, precisamos dialogar com questões que ultrapassem o debate estritamente técnico para enfrentar essas relações sociais complexas. 

 

REFERÊNCIAS:

MILLER, D.; HORST, H.A. Introduction In: ______ (ORG.). Digital Anthropology. Londres, Nova Iorque: Berg, 2013. p.3-35

LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2019. 

MOROZOV, E. Big Tech: a ascenção dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora LTDA-ME, 2018.

STRATHERN, M. O conceito de sociedade está teoricamente obsoleto? In: ______, O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Ubu Editora LTDA-ME, 2017. p.191-200

Marcos César

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco. Entre 2018 e 2021 foi bolsista do Programa de Educação Tutorial – Ciências Sociais (MeC/SeSu) da UFPE. Participante do Programa Youth 2022 (NIC.br/CGI.br). No IP.rec atua na área de Privacidade e Vigilância, com ênfase em criptografia, possuindo interesse também em Antropologia Digital.

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