Esse texto parte de uma provocação inicial de cunho histórico-conceitual, associada a uma reflexão lógico-filosófica sobre a natureza de uma coisa: como o caso do paradoxo do navio de Teseu, citado recentemente na série WandaVision, da Marvel. Na narrativa clássica, o navio de Teseu, aquele personagem que lutou contra o Minotauro, tem suas partes substituídas com o decaimento natural. Ao mesmo tempo, os pedaços de madeira substituídos eram guardados em armazém.

Um dia, um estrangeiro chega a Atenas e questiona “onde está o verdadeiro navio?”, o que provoca espanto entre os cidadãos, pois não conseguem responder. O verdadeiro é o navio sempre renovado e exibido no centro da cidade, ou aquelas peças velhas guardadas no armazém? Poderia se responder que são “os dois navios”, sem ferir a lógica básica de que “um virou dois”? Eis o paradoxo, em uma de suas narrativas.

Aqui, a ideia é lançar uma breve questão exploratória: (1) a criptografia é uma definição estrita da matemática (exata), ou (2) diante das relações da sociedade moderna, com a adoção do seu uso como protocolo de segurança e do seu reconhecimento em ordenamentos jurídicos vigentes, teria ela outra natureza, especificamente, uma natureza jurídica? Um virou dois ou, talvez, continue sendo um. E sendo assim, qual é o verdadeiro sentido do conceito “criptografia”?

É preciso perguntar a cada um desses “objetos conceituais”, que se modificam ao longo da história, sendo ao mesmo tempo eles mesmos e ao mesmo tempo outros, o que eles são. Essa reflexão, na metodologia da história dos conceitos, envolve as estruturas diacrônicas e os eventos sincrônicos, ou seja, como os diversos passados e futuros se reduzem ao presente analisado, compondo-o num todo coerente e, em segundo lugar, como se dá o recorte do campo da ação humana, num presente em que se verifica a dimensão da ação, por excelência. Vamos lá então.

O que é criptografia, qual sua definição, de que se compõe o seu campo conceitual? A criptografia moderna envolve o estudo de técnicas matemáticas para assegurar a informação digital, os seus sistemas, e a distribuição computacional contra ataques adversariais (KHATZ; LINDELL, 2021, p. 1). Esse entendimento de criptografia evoluiu da noção da busca pelo sigilo através de chaves simétricas, numa técnica militarista, para o campo civil, após a disseminação dos computadores, com implementação de chaves assimétricas (DONEDA; MACHADO, 2019, p. 24) e até a dimensão quântica.

Do ponto de vista jurídico, a criptografia é comumente associada com a discussão envolvendo a controvérsia entre privacidade e segurança da informação versus segurança nacional e/ou pública (DONEDA; MACHADO, 2019, p. 6). Por outro lado, e no foco que se pretende dar nessa exploração: a Constituição da República elenca, no seu artigo 5º, uma série de referências ao segredo e, de forma derivada, ao sigilo. É o sigilo/inviolabilidade da correspondência, sigilo da fonte jornalística, sigilo de atos para garantir a segurança social ou processos em segredo de justiça.

Mas de onde vem esse sigilo? Pontes de Miranda (1971, p. 170), nos dá a chave diacrônica de interpretação:

[…] trata-se, apenas, de um dos casos de liberdade de pensamento – a liberdade de não emitir o pensamento. Assim a inviolabilidade da correspondência, o segredo profissional, o segredo em geral, encontram o seu lugar sistemático. Ao mesmo tempo lhe percebemos a parecença com as outras liberdades de “negação” – a liberdade de ser ateu ou de ser contra as religiões, de que acabamos de falar, e a inviolabilidade do domicílio, cuja análise também não encontráramos feita. […] Assim como aos homens se reconheceu a liberdade ativa de emissão do pensamento, reconheceu-se a liberdade negativa: pensar, porém não emitir; saber, porém não dizer. Quem sabe e não quer dizer é livre, como quem ignorasse.

O olhar histórico-conceitual encontra, assim, o direito à liberdade desdobrado no direito ao segredo: o princípio da liberdade de pensamento, construído ao longo de séculos de teoria jurídica e lutas sociais, na forma de sua não emissão ou emissão secreta.

Eis o navio de Teseu: é algo de novo que surge do sentido criptográfico técnico relido/renovado pelo direito? Ou a verdade está apenas na origem técnica-matemática? A liberdade de (não) emitir pensamento, exceto para pequeno grupo, é o espelho jurídico-antropológico das intenções tecnopolíticas da criptografia. A criptografia, como técnica de cifragem, parece revelar uma das formas de execução da regra jurídica da inviolabilidade do texto, que revela evento anterior na história da humanidade.

Juridicamente, esses direitos correspondem a deveres e obrigações estabelecidas a partir da proteção constitucional, como, por exemplo, a “imunização do portador da mensagem”. Tal imunização se dá não importa qual o formato/suporte de que se trate – já foi o ouvinte-passante, já foi o entregador da nota selada, já foi o distribuidor da chave codificada material, hoje é o algoritmo e a empresa.

Ora, diante do exposto, a criptografia que passa a ser objeto de apreciação, redução e absorção no texto legal ganha um novo sentido para além daquele primeiro técnico ou matemático, referente aos padrões de segurança das informações, dos sistemas? Parece que sim e parece que não. Explico: o barco não é o “novo” ou o “antigo”, não é a técnica criptográfica, nem uma eventual releitura jurídica sobre ela, mas um só evento no mundo dos fatos: a própria relação da humanidade com o segredo.

A hipótese de trabalho, portanto, é a de que o ordenamento jurídico nacional já alberga, num desenvolvimento histórico da ideia secular de proteção constitucional ao segredo, uma proteção constitucional ao segredo cifrado, a ser combatido apenas em exceções raríssimas.

Os desdobramentos são as práticas já corriqueiras: como os sistemas de chaves públicas, os níveis de aposição de segredo de justiça em processos eletrônicos, os regimes de proteção de dados de pessoas em situação de perigo e do usuário comum.

Se há base textual e tessitura sociohistórica, então há norma revelada, de cujo processo de incidência ideal surgem fatos jurídicos com efeitos concretos. Se efeitos jurídicos nascem dos fatos jurídicos, então temos direitos, deveres, ações, exceções e todo o conjunto de soluções que o sistema jurídico propõe para regular as relações sociais.

A criptografia, portanto, em que pese o constante processo de inovação de seus processos técnicos, não deve ser encarada como uma novidade fenomênica para o sistema jurídico – não há razão, por exemplo, para argumentação de impedimento da criptografia com base na narrativa “going dark” (ou seja, as dificuldades de agentes de estado em investigar crimes com base na evolução tecnológica).

Em arremate: a criptografia não deve ser obstada como direito constitucionalmente assegurado aos cidadãos, pois se desdobra como forma da matéria do direito ao segredo.

 

REFERÊNCIAS

DONEDA, Danilo. MACHADO, Diego. (orgs) A criptografia no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

KATZ, Jonathan. LINDELL, Yehuda. Introduction to Modern Cryptography. Third Edition. New York: CRC Press, 2021.

MIRANDA. Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: Editora RT, 1971.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.

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