Dados como óleo

Virou moda de uns anos para cá dizer que dados são o novo petróleo. Essa analogia se fundamenta no fato de que dados são, hoje, o recurso mais valioso, substituindo o próprio petróleo. Não por acaso figuram dentre as empresas mais lucrativas do mundo gigantes da economia de dados, como a Google, Facebook, Amazon, entre outras.

 

Aparentemente, a analogia não se sustenta muito quando são analisadas e comparadas as especificidades dos dados e do petróleo. Mas talvez seja possível arriscar a existência de uma extensão não prevista dessa comparação, dando à metáfora uma vitalidade um tanto perversa.

 

O petróleo, matriz energética, moveu economias inteiras nas últimas décadas. Foi objeto de disputa entre nações e motivo para guerras, invasões e golpes de estado. Também é a fonte que sustenta diversos regimes variavelmente autoritários, assim como permitiu processos de redistribuição de riquezas e de redução de desigualdade em uma ou outra ocasião. Mas são esses combustíveis fósseis uns dos principais responsáveis, quiçá o maior, pelo aquecimento global e poluição dos ares e dos mares. 

 

O que os entusiastas da economia de dados e da analogia discutida aqui não parecem se preocupar é com o potencial destrutivo desses recursos. Destaquemos dois episódios:

 

O maior vazamento de petróleo, ocorrido em 1991, não foi acidental, mas fruto de uma invasão realizada pelo líder iraquiano Saddam Hussein ao Kuwait. O objetivo era adquirir as reservas de petróleo daquele país. No entanto, uma coalizão internacional frustrou esse plano e forçou a retirada das tropas iraquianas. Nesse processo, os iraquianos incendiaram diversas fontes de petróleo do Kuwait, que queimaram por meses, além de derramar entre 380 a 520 milhões de galões de petróleo no Golfo Pérsico visando deter as tropas anfíbias da coalizão. 

 

O segundo maior vazamento de óleo da história, por outro lado, foi acidental, ainda que marcado por uma série de negligências dos responsáveis pelo desastre. Em 20 de  abril de 2010, no Golfo do México, nos Estados Unidos da América, uma onda de gás natural explodiu um poço de cimento. Esse gás subiu até a plataforma de extração Deepwater Horizon e a incendiou, causando a morte de 11 trabalhadores e vários outros feridos, levando também ao afundamento da plataforma. Até o selamento do vazamento, em 17 de setembro, quase 6 meses depois, vazaram cerca de 134 milhões de galões de petróleo, cobrindo aproximadamente 2.100 quilômetros da costa. 

 

Dados e o seu tratamento metafórico

Essas tragédias causaram consequências terríveis para as pessoas e para o meio ambiente no qual vivem, mas que fogem ao escopo deste texto. Se os dados são o novo petróleo, quais são seus perigos ‘ambientais’? Que tipo de desastres seu vazamento ou consumo podem causar?

 

O ambiente dos dados é, obviamente, a sociedade humana, composta por indivíduos, suas vidas e rotinas em interação com outros indivíduos, incluindo as diversas tecnologias que usam e pelas quais os dados são gerados.

 

Na história recente, uma das maiores tragédias que observamos na economia de dados foi o uso politicamente orientado de dados pessoais vazados e empregados pela Cambridge Analytica. Essa organização influenciou diversos processos democráticos através do perfilamento de grupos eleitorais com coleta de dados do Facebook e, a partir dela, utilizou o marketing político direcionado, fomentando emoções e extremismos, negacionismos e xenofobia, como no referendo do Brexit, em 2017 – tecnicamente, fortalecendo o efeito das bolhas das redes. 

 

No Brasil de 2020, uma falha no início de dezembro, expôs dados de mais de 200 milhões de brasileiros, dados de saúde que, por si, configuram dados sensíveis, com possibilidade de vazamento de fichas de cadastro, prontuários etc. Vazamentos de dados foram detectados ao longo da história da sociedade da informação. Empresas como Playstation, Uber, Facebook, Adobe entre tantas outras já sofreram com vulnerabilidades de segurança que deram margem a vazamentos. Frequentemente, dados individuais vazados são usados para ter acesso aos recursos financeiros das pessoas expostas, produzindo perdas, frequentemente, irrecuperáveis.

 

Esses breves exemplos mostram que o paradigma metafórico “do dado como óleo”, em que pese a impropriedade ontológica, revela a existência de uma compatibilidade entre as imagens articuladas nos discursos. Na teoria da metáfora, um campo remetente deve ter seus elementos rebatidos no campo destinatário, para que o efeito metafórico apareça. 

 

A metáfora do “dado como óleo” expõe o argumento, não mais oculto, de uma mentalidade capitalista extrativista, a mesma mentalidade que impede processos regulatórios e busca solapar ou destruir garantias jurídicas, na prática de exploração do recurso natural. Há, portanto, equivalências nos comportamentos e nas imagens dos discursos que falam sobre esses comportamentos quando falamos sobre dados e óleo: não é a equivalência da extração como lucro sem dano, mas a equivalência da extratividade predatória de um ecossistema. 

 

A mentalidade predatória que essas imagens revelam está alojada num conjunto de comportamentos cujas consequências não cuidam apenas de danos patrimoniais, em que pesem eles sejam graves, mas, também, de danos à personalidade. O vazamento de dados expõe as estruturas organizacionais a riscos de mercado, mas, ao mesmo tempo, expõe as pessoas físicas ao risco da mácula diante de dados que só cabem ao seu íntimo e, por que não, risco de vida – especialmente em contextos periféricos.

 

Abre-se, na contracorrente, uma visão crítica do fenômeno. Se a metáfora instaura um ambiente de ação, então sobre ela cabe também uma crítica nos mesmos moldes à crítica feita ao extrativismo desenfreado, uma crítica ecológica. As tecnologias da informação e comunicação, em que pese seu suporte físico, instauram um ecossistema de dados a ser estudado, protegido e analisado em suas especificidades. 

 

Um paralelo à visão ecológica é a perspectiva multidisciplinar e multissetorial no tratamento de problemas envolvendo dados, impedindo a valoração da equação “bem natural/cultural” + “ação humana” (“dados” + “extração”) pela ótica de lucro máximo, custo mínimo. A concepção dos dados como um bem extraível passa, numa visão ecológica, pela ideia de covalidação entre as partes que compõem o ecossistema, de modo a buscar sempre o equilíbrio dinâmico. 

 

Neste paradigma, não há extração, se extração significa a diminuição dos cuidados com segurança da informação, ou o solapamento das garantias de privacidade no desenvolvimento, com objetivos de lucro e lançamentos rápidos. Não há extração, se extração significa a falta de educação para o manejo de dados, com a falha técnica associando-se à falha humana. 

 

Questiona-se, então: como no caso do petróleo, deveria o bônus de sua exploração dos dados ser privado e o ônus ser coletivo? Talvez seja hora de repensar a forma de dizer as coisas, e dizer as coisas de uma forma mais adequada.

 

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.


Pedro Amaral

Mestre e doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco e pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas de Segurança (Neps) da UFPE, desde 2014. Tem interesse na economia política da internet e nas dimensões interacionais da adoção de tecnologias. Tem feito pesquisa de campo desde 2012 e tem se dedicado mais à etnografia e métodos quantitativos. No IP.rec, atua na área de Privacidade em Vigilância, com ênfase em políticas de criptografia e tecnologia na segurança pública.

Compartilhe

Posts relacionados