Fake news e fonte histórica: os processos de desinformação sob o aspecto do estudo e da checagem das fontes
A história é uma ciência
Os processos de desinformação que deram origem ao termo “fake news” (notícias falsas, em português) existem desde muito antes do nascimento da Internet. Campanhas publicitárias na época do nazismo alemão, por exemplo, veiculavam opiniões dadas por um único especialista em um assunto, induzindo a população a receber os fatos e acontecimentos sob um único prisma. É por isso que os pesquisadores da ciência da História e da Literatura, como Schlegel (1772 – 1829), já previam e alertavam sobre os perigos da crença em uma verdade universal. Na busca por uma ciência da história propriamente dita, Schlegel orientou historiadores a abertamente exporem os seus pontos de vista e julgamentos – ou seja, que os historiadores tornassem públicos os “partidos” nos quais estão inseridos.
Na análise de Reinhart Koselleck (1823 – 2006), historiador alemão do pós-guerra, a partir da visão moderna da história não se poderia mais acusar um historiador de “parcialidade” visto que todos eles seriam parciais, possuindo opiniões, ideologias, crenças e partidos. A história moderna por Koselleck, no entanto, não se esgotaria no processo de partidarização, existindo processos históricos que sobrevivem à existência de certos partidos e/ou ideologias: seriam as tendências, ideias ou forças de longo prazo. Um exemplo delas seria a desinformação.
Mas o que a desinformação tem a ver com o processo de partidarização da história e com o estudo das fontes?
O termo “desinformação” se refere a uma informação falsa produzida com o propósito de confundir ou induzir alguém ao erro. A desinformação pode ser construída a partir de diversas retóricas: a do apelo ao medo, na qual se recorre aos sentimentos e emoções humanas, sem uma razão concreta ou sem provas; a do apelo à autoridade, evidenciando uma única opinião, dentre outras. Nas propagandas nazistas de Goebbels, por exemplo, havia uma monopolização da opinião pública com o exagero de boatos e/ou o bombardeamento da população com notícias sobre a presença de um único inimigo – algo já superado por historiadores como Schlegel ou Koselleck, que defendiam a transparência dos posicionamentos pessoais.
Os processos de desinformação precedem a Internet, mas por que atualmente se fala tanto em “fake news”? O que acontece é que quando antes a desinformação era espalhada a partir das mídias tradicionais (mais lentas, como a televisão e o jornal impresso), com o advento da tecnologia e com surgimento da Internet a desinformação ganhou outras esferas: as esferas digitais. Através das mídias de compartilhamento de conteúdo online, como os portais de notícia e até mesmo as redes sociais, as informações circulam muito mais rapidamente e num ambiente onde cada usuário é um potencial “vetor de informação”. Hoje em dia a desinformação é espalhada principalmente através de redes sociais e dos aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp e o Telegram.
O que é real? Qual ciência é capaz de transmitir a verdade?
Existe uma discussão no campo das artes sobre o que é real e o que é ficção. Há também controvérsias nas obras de literatura que se afirmam como biografias – até que ponto a narração dos fatos corresponde à verdade/realidade e o que seria essa verdade?
Koselleck, em “Futuro Passado – Contribuição à semântica dos tempos históricos” (1979), obra que reúne diversos de seus ensaios que contribuíram para a sua teoria da História dos Conceitos, defende que seria uma ilusão acreditar na possibilidade de encontrar a “verdade histórica”. Segundo ele, o partidarismo seria um fator próprio à história, assim como a outras ciências humanas. Koselleck traz à tona o dilema quanto à função da ciência da história de “transmitir a verdade”, sustentando que o espaço, tempo e figura do narrador influenciam na transmissão do relato histórico, ou seja, na maneira de contar acontecimentos. Os editoriais de mídia, por exemplo, são abertamente textos de opinião que revelam pontos de vista próprios do escritor da matéria. Muitos jornais e veículos de imprensa deixam claro qual é o partido e/ou ideologia que seguem, acompanhando a visão moderna do historiador posta em Koselleck, na qual todas as pessoas possuem ideologias próprias e as histórias são contadas através de cada um desses pontos de vista. Segundo Koselleck, o ponto de vista de uma “história” irá variar de acordo com a tríade lugar, tempo e pessoa.
A existência deste mesmo conflito em outras áreas que não a literatura, artes ou o jornalismo evidencia o quão difícil é a conceitualização de uma informação inverídica ou mesmo de uma conceituação de “desinformação”. No cinema há a discussão sobre o repasse de “histórias reais”, ou seja, a contação de histórias reais e a influência desse aparato de transmissão de histórias – através de documentários e livros – na realidade a ser contada. É discutida a possibilidade da existência de um filme real que se atenha a detalhes minuciosos de um acontecimento e reflita a situação vivida de forma que esta possa ser uma fiel representação do real.
No cinema, quando se fala em documentário “real” ou de “ficção”, questiona-se a possibilidade de qualquer documentário de transmitir o real ou se continua sendo ficção. Alguns realizadores de documentários contemporâneos brasileiros, como Eduardo Coutinho (“Cabra Marcado para Morrer”, “Jogo de Cena”) e Gabriel Mascaro (“Um Lugar ao Sol”, “Domésticas”), jogaram com a arte de invocar o real. Em Domésticas, por exemplo, são as próprias “pessoas-personagens” que se filmam e narram suas histórias e sentimentos. A proposta de que os próprios personagens se filmem permite que estes se sintam à vontade para abordar temas que lhe sejam sensíveis – estratégia utilizada na abordagem de atores possivelmente vulneráveis em entrevistas jornalísticas e no campo cinematográfico. As “verdades” exibidas nestes estilos de filmes são semelhantes a alguns aspectos das verdades transmitidas através da ciência histórica: na análise das fontes, dos documentos e de comprovações “legais” que atestam a veracidade das informações repassadas.
A importância da fonte histórica e da checagem de fatos para a transmissão de informações
Koselleck traz um dilema epistemológico para a história e para as ciências humanas:: a parcialidade e objetividade se excluem mutuamente, mas remetem um ao outro ao longo do desenvolvimento dessas ciências. Ele defende que o nascimento da história como ciência coincide com o relativismo histórico: a relatividade de toda perspectiva de julgamento, ou seja, de toda experiência (a exemplo de dois relatos que pleiteiam a verdade sob o mesmo fato, feitos por pessoas diferentes), verdade histórica, objetividade e subjetividade do historiador. Apesar disso, e por visualizar a história sob o prisma moderno, Koselleck defende alguns métodos de construção dessa ciência. Um deles é o estudo das fontes, que também pode ser aplicado ao jornalismo.
“A assim chamada investigação pura e simples dos fatos é metodologicamente imprescindível e se realiza no âmbito da comprovação geral. O método histórico tem uma racionalidade própria. (…) Todo testemunho, seja escrito ou em forma de imagem, permanece associado às circunstâncias, e o excesso de informações que pode contar não é suficiente para abarcar a historicidade que atravessa em diagonal todos os testemunhos do passado” (KOSELLECK, 1972, p. 185 e 187).
Esta investigação pura e simples dos fatos trazida por Koselleck seria a autenticidade de certidões; ou seja, métodos científicos que originam resultados semelhantes à exatidão das ciências naturais, ainda que com suas variáveis. As fontes da OMS (Organização Mundial da Saúde) sobre as notícias referentes à pandemia de Covid-19 seria um exemplo de informação jornalística que atende ao estudo das fontes posto pelo historiador.
Koselleck ressalta a importância das fontes como método de fazer história e de barrar interpretações errôneas, mas não resume a história a elas, mas também à interpretação. Verifica-se a importância do estudo das fontes para evitar, por exemplo, a própria propagação de notícias falsas na Internet. Algumas boas práticas relativas ao tema já foram compartilhadas em nota institucional sobre a desinformação em tempos de pandemia (referente à Covid-19) no site do IP.rec, que incluem a checagem de fatos, por exemplo.
O método histórico abarca a fonte da história e também a sua interpretação, objetivismos e subjetivismos. Mas a valorização das fontes e da ciência, por fim, resumem-se à mesma ideia trazida por Koselleck que se aplica às próprias estratégias de combate às “fake news”: a da utilização de métodos científicos e da valorização do estudo das fontes, estas últimas, como diz o historiador alemão, nem sempre dizem tudo, mas sempre têm o poder de veto sobre o que não se pode dizer.
REFERÊNCIAS
KOSELLECK, Reinhart, 1923-2006. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos I Reinhart Koselleck; tradução do original alemão Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão da tradução César Benjamin. – Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
Isabel Constant
Graduada em Cinema e Audiovisual pela UFPE e em Direito pela Unicap, tendo cursado parte do curso na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Portugal. Alumni da 3ª Edição da Diplomatura en Gobernanza de Internet (DiGi) e integrante do Youth Observatory (ISOC). Atualmente, também ocupa o cargo de Gerente de Inovação no Núcleo de Gestão do Porto Digital. No IP.rec, atua como pesquisadora na área de Responsabilidade Civil de Intermediários, também pesquisando sobre desinformação e regulação de plataformas.