Publicado em: 6 de julho de 2023


“Conhecimento é poder” é uma daquelas frases tão repetidas que provavelmente pouca gente sabe a autoria. Eu mesmo não sabia e fui pesquisar. É atribuída ao filósofo inglês Francis Bacon, apesar de o único registro em seus escritos ser, na verdade, “ipsa scientia potentia est” ou “conhecimento em si mesmo é poder”. Curiosamente, é de Thomas Hobbes, que foi assistente de Bacon na juventude, o primeiro registro conhecido da frase numa versão de seu mais famoso livro, “Leviatã”. [1]

Curiosamente, digo, pois o objeto tratado aqui é o aparato vigilantista estatal, usado pelas suas instituições de segurança. Estas instituições são aquelas que exercem e aplicam a força em nome do Estado. É justamente Hobbes, no Leviatã, que aponta o que vai ser denominado, muito tempo depois, de “monopólio do uso legítimo da força”, enquanto elemento definidor do Estado moderno, por Max Weber [2]. Na literatura sociológica, essa é a chamada solução coercitiva para um dos problemas basilares da Sociologia: o problema da ordem. Ou como a sociedade é possível? [3]

A solução coercitiva, resumidamente, aponta para as diversas forças sociais aplicadas na produção de uma ordem social, isto é, controlar práticas, ideias, informações, agrupamentos, entre outras coisas, em nome de formas consideradas corretas. Aqui, a ordem acaba dependendo de um ordenamento normativo, que diz o que é ou o que deveria ser o normal, o padrão. 

No entanto, a norma carrega um tanto de arbitrariedade, dependente de estruturas de poder desigualmente distribuídas. Ela tenta produzir um comportamento normal, isso é, tornar uma forma de agir em padrão estatístico mais frequente, o comportamento normal, em detrimento daquilo que venha a se considerar o desvio. Essa distinção é essencial para entender o elemento de controle capaz de influenciar pessoas, grupos e sociedades. Não podemos esquecer, claro, que a coerção tem um papel importante na redução riscos e na facilitação da previsibilidade e a confiança, elementos fundamentais para a sociedade ser possível, mas há que perguntar previsibilidade para quem? Qual sociedade as forças coercitivas estão tornando possível?

As instituições de segurança são responsáveis por realizar muitas das tarefas de controle, incluindo o controle de riscos. Porém, como a norma é desigualmente construída, sua aplicação tende a produzir injustiças, enraizadas na sua concepção ou em sua aplicação através das organizações responsáveis e de suas práticas cotidianas. No contexto de Estados democráticos, essas leis devem estar abertas à aprimoração para reduzir desigualdades e requerem ferramentas para isso.

Aí que entra a linguagem dos direitos, que contribui para políticas comprometidas com a transformação social em direção à justiça social e ao combate às desigualdades. No entanto, direitos são, muitas vezes, mais promessa do que um fato, ou seja, algo que deveria ser, não necessariamente que o é. Não são profecias auto-realizáveis. [4]

Seu valor reside então enquanto crença organizadora de esforços institucionais para promover mudanças sociais. No caso, a realização dessa promessa depende muito da correlação de forças engajadas no ciclo das políticas públicas. E esse engajamento, um comprometimento prático com essas promessas, pode ser, e frequentemente é, esvaziado, seja pela pressão de grupos de interesse, seja por inércia ou incapacidade estatal.

Funcionários de qualquer organização, tanto pública, quanto privada, possuem algum nível, variável que seja, de poder discricionário. A discricionariedade, contudo, se torna mais crítica em áreas sensíveis e mais difíceis de controlar. As instituições do campo da segurança se localizam nesta seara mais crítica. Afinal, regulam o exercício de direitos diversos, incluindo, no limite, o direito à vida e à dignidade da pessoa.

Essa discricionariedade é maior, segundo a literatura, pois há uma enorme variedade de condutas que podem ser enquadradas enquanto ‘assunto de polícia’. [5] Em oposição a isso, há uma escassez de diversos recursos para lidar com todas essas condutas, incluindo de atenção e vontade. A priorização prática dos problemas sociais e públicos acaba dependendo não só das políticas públicas, mas também das preferências e interesses dos executores, incluindo os burocratas de nível de rua. [6] 

Essas afetam a execução e são, portanto, influenciadas por decisões orientadas por elementos externos, como pressões de pares e de lideranças de grupos sociais. Essa influência pode ser pouco republicana, pra dizer o mínimo, seja negando direitos para alguns ou privilegiando direitos de outros. Basta lembrar do esforço da Igreja Universal do Reino em doutrinar as forças policiais brasileiras

O aumento das capacidades informacionais das instituições de segurança podem agudizar os riscos e danos pelo mau uso ou abuso dos poderes coercitivos, assim como de leis injustas. As capacidades de coletar, processar e analisar informações auxiliam a tomada de decisões. No contexto de excesso de tarefas, a discricionariedade descrito acima, isso pode significar maiores poderes aos envolvidos na definição das prioridades, sejam os agentes na ponta, as organizações e agências ou as políticas públicas definidas mais ou menos verticalmente.

“Informação é poder. Mas, como todo o poder, há aqueles que querem mantê-lo para si mesmos.” Assim Aaron Swartz abre seu Manifesto da Guerrilha pelo Acesso Livre [7], de 2008, para denunciar a crescente privatização do conhecimento científico e cultural da humanidade, mas serve também para pensar relações de poder informacionalmente mediadas em outros âmbitos.

A transformação de informação em poder não é automática, me parece, mas depende de condições tecnológicas e sociais. As capacidades de realizar essa transformação têm sido expandidas de maneira acelerada pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC’s) e, logo, concentram mais poder para os já detém as ferramentas. 

Mas o que é inteligência? Marcos Cepik (2003) aponta que “Serviços de inteligência são agências governamentais responsáveis pela coleta, análise e disseminação de informações consideradas relevantes para o processo de tomada de decisões e de implementação de políticas públicas nas áreas de política externa, defesa nacional e provimento de ordem pública” (p.13). [8] 

Cepik, ainda em 2003, já apontava que a emergência e crescimento das TIC’s como responsável pela explosão de serviços de provimento de informação. O aceleramento ainda maior, assim como a disseminação comercial, criou e fortaleceu mecanismos de coleta e análise de informações. É tamanha a importância desse elemento que até se discute se estamos vivemos, atualmente, um capitalismo de vigilância, segundo a denominação de Shoshana Zuboff. [9] Segundo Meredith Whittaker, a própria computação moderna tem como base as concepções de Charles Babbage, voltadas justamente para a vigilância e controle dos trabalhadores.

Craig Jarvis, em “Crypto Wars” (2021), argumenta que “a habilidade histórica de governos de desenvolver capacidades de vigilância massiva sempre foi limitada pelo vasto requerimento de trabalho, que era economicamente inviável em sociedades democráticas. As tecnologias digitais removeram essa restrição” (p.xi). Isso inclui aquilo que ele aponta que poderia ser a “ferramenta perfeita de vigilância”: o smartphone. Repleto de sensores, eles geram quantidades enormes de dados, mas as capacidades analíticas também têm acompanhado essa evolução tecnológica. [10]

As capacidades inéditas de vigilância servem a muitos objetivos e a muitos senhores.  Mas as tecnologias digitais também empoderam cidadãos. Por meio delas é possível, por exemplo, fiscalizar melhor as crescentes capacidades de vigilância estatal. Contudo, se essas capacidades estão aumentando e se transformando rapidamente, é necessário que o controle público acompanhe também esses poderes. 

Mecanismos de controle, como a transparência, devem ser fortalecidos, tanto sobre as capacidades informacionais e os inputs que fornecem à tomada de ação, quanto sobre o próprio processo de tomada de decisões a partir das análises recebidas. Aqui entramos em outra esfera. Afinal, a inteligência tem esse aspecto instrumental para a tomada de decisão.

Quais decisões estão sendo tomadas? Como estão sendo feitas? Muitas das preocupações que pesquisadores e ativistas têm publicizado passam por tecnologias que tendem a ampliar a vigilância, violar direitos e reforçar desigualdades e injustiças, como dos drones e robôs armados, que podem aumentar a letalidade policial já alta no Brasil, ou tecnologias que reforçam o encarceramento em massa brasileiro, ambos problemas críticos e fundados nas desigualdades raciais.

Nesse âmbito, é necessário destrinchar regimes de justificação empregados para implementar políticas tecnosolucionistas e punitivistas, mas também elementos não públicos dessas decisões, como as relações entre empresas fornecedoras e agentes estatais que facilitam as aquisições. Esse movimento é necessário para criar e melhorar as respostas críticas a tais políticas. 

O uso de drones armados e automatizados frequentemente é justificado pela proteção de agentes policiais e inocentes em situações de risco e pela promessa de maior precisão. Num dos países que mais morrem policiais no mundo, esse argumento detém legitimidade dentro e fora dessas forças. Por isso, devemos estar atentos à importação dessas tecnologias e o lobby do setor de tecnologia aplicadas à segurança pública com o poder público. Esse alerta é crítico considerando o grau de difusão que temos observado com as tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública, presentes até em cidades sem esgoto, como revelou o projeto do CESeC, Coding Rights e The Intercept Brasil.

No entanto, quaisquer enormes poderes devem ser estritamente controlados ou até banidos, caso comprovados riscos inerentes e inevitáveis em sua operação. No evento aniversário do IP.rec, em dezembro de 2022, anunciamos nosso estudo sobre drones armados justamente como consequência lógica da preocupação com a dimensão informacional da solução coercitiva, isto é, a vigilância. A lógica é justamente que vigiar e punir estão intimamente conectados. E que a conexão é cada vez mais curta e rápida, dada a aceleração tecnológica da vigilância. 

No contexto de assimetrias sociais, as capacidades de vigilância têm tendência a abusos contra grupos vulneráveis e adversários do poder político estabelecido. Muitas capacidades dessas têm sofrido de sequestro de função (mission creep). Por exemplo, nos Estados Unidos, dados de geolocalização e de busca, tradicionalmente empregados para vigilância comercial, têm sido usados para perseguir mulheres que buscam exercer seus direitos reprodutivos ou pessoas que buscam cuidados de afirmação de gênero. Ou seja, práticas inofensivas, exceto para uma moralidade excludente que quer ser a Lei.

Outro caso essencial para o debate sobre vigilância é o horizonte da guerra criptográfica. No Brasil, geralmente é usada ‘a guerra contra o crime’ ou ‘guerra contra as drogas’ como dispositivo de justificação para políticas de vigilância e punição mais duras, como políticas anti-criptografia. No Norte Global, a criptografia forte tem sido criticada por agências de aplicação da lei a partir de seu enquadramento como escudo a pessoas envolvidas na distribuição de materiais de abuso sexual de crianças e adolescentes. Para além de problemas na validade empírica desses argumentos, é necessário entender que a criptografia forte protege todas as pessoas.

O enfraquecimento dela, a mais importante barreira contra vigilância por entes públicos e privados, vulnerabilizaria toda e qualquer usuária. No cenário de intensa digitalização das relações sociais, aumentariam as informações privadas disponíveis sem uma criptografia forte. Isso significa que normas arbitrárias e injustas seriam mais facilmente aplicadas, especialmente contra as pessoas que já estão do lado mais fraco nas assimetrias de poder.

Assim, é necessário seguir pressionando as duas frentes para combater as assimetrias informacionais e, consequentemente, de poder, entre Estados, com suas políticas vigilantistas que abrem margens para práticas autoritárias e injustas, e a sociedade civil. As duas frentes passam por exercer controle e enfrentamento às políticas vigilantistas e quais usos desses regimes de vigilância, reduzindo poderes e aspirações informacionais estatais, e, do outro, ampliar nossos poderes de saber o que governos e agentes públicos sabem sobre nós e o que fazem com essas informações.


[1] HOBBES, Thomas. Leviatã: matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. LeBooks Editora, 2019.

[2]WEBER, Max. Política como vocação e ofício. Editora Vozes, 2021.

[3] WRONG, Dennis. Problem of order. Simon and Schuster, 1994.

[4] MERTON, Robert K. The self-fulfilling prophecy. The antioch review, v. 8, n. 2, p. 193-210, 1948.

[5] MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia: sociologia da força pública. In: O que faz a polícia: sociologia da força pública. 2002. p. 327-327.

[6] LIPSKY, Michael. Street-level bureaucracy: Dilemmas of the individual in public service. Russell Sage Foundation, 2010.

[7] SWARTZ, Aaron. Guerilla open access manifesto. Aaron Swartz [Internet], p. 5, 2008.

[8] CEPIK, Marco. Espionagem e democracia. FGV Editora, 2003.

[9] ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. PublicAffairs, 2019.

[10] JARVIS, Craig. Crypto wars: the fight for privacy in the digital age: A political history of digital encryption. CRC Press, 2020.

Pedro Amaral

Mestre e doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco e pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas de Segurança (Neps) da UFPE, desde 2014. Tem interesse na economia política da internet e nas dimensões interacionais da adoção de tecnologias. Tem feito pesquisa de campo desde 2012 e tem se dedicado mais à etnografia e métodos quantitativos. No IP.rec, atua na área de Privacidade em Vigilância, com ênfase em políticas de criptografia e tecnologia na segurança pública.

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