A Internet é tão marcante no estilo de vida moderno que foi-se o tempo em que apenas computadores estavam conectados: hoje, desde os dispositivos mais usuais, como celulares, até os mais inusitados, como escova de dentes, têm acesso à rede. 

A conveniência de ter informações e funcionalidades ainda mais acessíveis graças aos dispositivos conectados criou um caminho praticamente natural até chegarmos ao que hoje se conhece por Internet das Coisas. Tradução do inglês “Internet of Things” (IoT), esse conceito trata de “uma  extensão da Internet atual, que proporciona aos objetos do dia-a-dia (quaisquer que sejam), mas com capacidade computacional e de comunicação, se conectarem à Internet” [1]. São três as principais características de tais objetos inteligentes: (1) identificabilidade, (2) comunicação e (3) interação. Assim, a Internet das Coisas cria um elo entre os objetos, a internet e o usuário final [2]

Os benefícios decorrentes de tal interconectividade são diversos e falam por si sós. Há desde os exemplos mais simples, como facilitar atividades do cotidiano – o corriqueiro exemplo da geladeira que indica o momento de fazer a feira – até avanços em tratamentos médicos, como é o caso de marcapassos inteligentes, cada vez mais populares nos Estados Unidos. Através deles, é possível que sejam coletadas e armazenadas informações do sistema cardiovascular do paciente em tempo real para acompanhamento remoto por profissionais de saúde.  

Apesar de tão conveniente e relevante para o desenvolvimento científico, a IoT traz também questões preocupantes, dentre as quais segurança da informação, privacidade e proteção de dados pessoais do usuário. 

Veja-se, por exemplo, o caso dos marcapassos. Em 2017, devido a um incidente de segurança, 465 mil norte americanos foram notificados para que atualizassem o sistema operacional de seus marcapassos sob o risco de terem seu coração “invadido” por estranhos [3].

Outros aspectos da IoT, embora não relacionados à saúde, ainda são alarmantes: muitos dos dispositivos conectados requerem o armazenamento de uma  grande quantidade de dados pessoais, o que pode transcender a funcionalidade do objeto e trazer riscos desnecessários. É o caso do jogo Pokemon Go, considerado pelo ITS Rio uma “máquina de coleta de dados”. Para gerar o efeito de realidade aumentada, o aplicativo exige acesso à câmera e ao microfone do celular, permitindo que o aplicativo fotografe o ambiente ao seu redor. O jogo ainda deixa claro que “informações sobre geolocalização e demais dados criados a partir da experiência do game podem ser compartilhados com terceiros para fins de pesquisa ou estatística, mas sempre de forma não identificada” [4].

O problema não se torna menor quando adentra o mundo infantil. A chamada “Internet of Toys” (IoToys)  envolve brinquedos conectados à internet através de “uma variedade de produtos capazes de interagir com o usuário infante de forma inteligente, não apenas por meio de repetição simples de frases ou músicas em uma gravação, como os produtos tradicionais, mas sim de forma interativa” [5]

Não se trata de um público insignificante. Apenas no Brasil, segundo a pesquisa TIC Kids Online 2017 do CETIC.br, há 24,3 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos conectados à rede [6]. Mas não é apenas por serem um público numeroso que os jovens estão mais suscetíveis aos riscos da Internet das Coisas: por estarem em idade de formação e terem menos discernimento quanto a suas ações e consequências diretas e indiretas, crianças e adolescentes são especialmente vulnerável a esse ambiente. 

Além disso, os brinquedos conectados envolvem questões mais complexas do que a imaturidade dos pequenos. Do ponto de vista da finalidade, por exemplo, é questionável até que ponto IoToys são uma tecnologia que beneficia o usuário final. A começar pelo critério de saúde, a OMS recomenda que crianças de até cinco anos não usem aparelhos eletrônicos por mais de uma hora por dia [7]. Considerando a natural tendência das novas gerações ao maior tempo conectado por haver cada vez mais estímulos para tanto, incentivar atividades lúdicas com brinquedos inteligentes ao invés de outras opções podem não ser a melhor escolha.

Dito isso, o ponto de tratamento de dados pessoais é, mais uma vez, crítico, tanto porque diz respeito ao direito fundamental à privacidade e questões de segurança quanto porque expõe possíveis interesses secundários. Quais os benefícios, e para quem, de brinquedos inteligentes que armazenam uma grande quantidade de dados, como aqueles que conversam com crianças de maneira interativa, aprendendo sobre sua rotina, voz e outras informações?

“A  diversão  se transformou  em um processo de  criação de bases de  dados. Quantas vezes a criança acessou o brinquedo? Quais informações ela trocou com ele? Quem  tem acesso a essa comunicação e onde os dados são armazenados? O que pode ser feito  com eles, além de melhorar a performance do brinquedo e do jogo? Existe um debate complexo sobre o consentimento dos pais e responsáveis para o tratamento de dados pessoais de seus filhos. Ainda que os pais tenham consentido com o uso do brinquedo e instalado um aplicativo que permite que eles controlem a brincadeira, há aspectos nebulosos nessa relação que precisam ser melhor debatidos” [8].

O recente caso da Hello Barbie levantou questionamentos do tipo. A boneca inteligente, equipada com microfone, saída de áudio e acesso à internet, gravava conversas com crianças e enviava o material aos servidores da ToyTalk, empresa parceira da Mattel para a concepção do produto. As falas das crianças eram então analisadas por softwares de reconhecimento de voz e inteligência artificial para gerar novas falas para a boneca – que, por sinal, armazenava cada informação de conversas anteriores, como nomes, gostos e rotina das crianças, alegadamente para enriquecer diálogos seguintes [9].

Muitos pais ficaram preocupados, pois crianças são inocentes e podem contar tudo sobre suas vidas se perguntadas, gerando uma exposição desnecessária. Além disso, como a boneca também podia identificar “tendências” de seu público e mostrar à Mattel e à ToyTalk os tópicos de maior popularidade entre os pequenos, naturalmente surgiram críticas à capitalização sobre informações das crianças, ainda mais com a política de privacidade que permitia compartilhamento de dados com terceiros. Ainda, houve preocupação em torno das formas como a boneca poderia influenciar a criança. Esse já tinha sido o caso da Teen Talk Barbie em 1992, que desagradou as feministas em geral da American Association of University Women por possuir falas do tipo “será que algum dia teremos roupas o suficiente?” e “matemática é muito difícil!”.

Por fim, tanto no caso da Hello Barbie como em outros exemplos, a segurança da informação também é um ponto de grande preocupação em torno de IoToys [10], pois qualquer brinquedo conectado está sujeito a incidentes de segurança por melhores que sejam as práticas da empresa. Recentemente, a boneca My Friend Cayla foi proibida na Alemanha, considerada pela Federal Network Agency como um aparato ilegal de espionagem, pois falhas permitiram que hackers tivessem acesso à boneca via bluetooth de uma distância de até 15 metros. O incidente expôs nome, idade, endereço e outros dados pessoais de mais de 200 mil contas. Embora a UK Toy Retailers Association tenha afirmado que Cayla “não oferecia riscos em especial” e a empresa responsável tenha se comprometido a trabalhar em atualizações para evitar o problema, a boneca foi, ao fim, banida. 

“A gama de sensores sofisticados incorporados em brinquedos conectados à Internet, como microfones, detectores de localização e movimento, sensores de toque e câmeras aumentam a segurança e riscos de privacidade de hackers e sequestros. Juntamente com o software de reconhecimento de voz e um capacidade de processamento do reconhecimento facial, esses novos sistemas de vigilância de dados geram enormes quantidades de informações sobre uma criança e seu contexto social que podem ser coletados e distribuídos sem que a família conheça ou compreenda as implicações” [11].

Se pais e responsáveis precisam analisar tais implicações, igual ou maior é a responsabilidade das empresas, que concebem o produto. Quando fabricantes não atentam aos riscos envolvidos na coleta de dados, seja por inexperiência ou falta de reflexão sobre as consequências, são os direitos de personalidade e ao desenvolvimento saudável da criança que entram em jogo. Isso se torna ainda mais grave para empresas que estão cientes da situação, mas não buscam as melhores práticas por falta de interesse econômico, assim aumentando os riscos dos usuários por práticas como a coleta de dados para além do necessário ao funcionamento do produto – o que ocorre, muitas vezes, sem o consentimento dos pais ou responsáveis. 

É para evitar situações do tipo que o ordenamento jurídico brasileiro conta com regulações que protegem os direitos dos usuários. Prestes a entrar em vigor, a Lei Geral de Proteção de Dados aborda princípios, conceitos e instruções para o tratamento de dados protegendo direitos dos titulares. De modo similar, o Decreto nº 8.771/2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet, estabelece Padrões de segurança e sigilo dos registros, dados pessoais e comunicações privadas.

Além disso, IoToys precisam observar tanto a Constituição (art. 227) [12] quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 4º [13] e 70 [14]), que deixam clara a responsabilidade partilhada do Estado, da família e da sociedade pela preservação dos direitos fundamentais das crianças. Também é fundamental notar o disposto no Código de Defesa do Consumidor, o qual indica que “o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança” [15] e estabelece o dever de informar caso isso ocorra.

Não menos importante, o próprio Marco Civil da Internet (MCI) é um dos parâmetros a serem observados por IoToys. Além de suas disposições sobre liberdade de expressão, defesa do consumidor e direitos fundamentais, há artigos específicos sobre a necessidade de proteger as crianças e adolescentes na rede, como o art. 29, que demanda controle parental para conteúdo impróprio para filhos menores [16].

Mas leis, por si sós, não serão o suficiente para tornar a realidade dos brinquedos inteligentes menos problemática. As soluções para as controvérsias da IoToys exigem ação e pessoas – e sociedade civil, governo, academia e setor privado, todos podem contribuir. Isso se vê já na alfabetização digital, um dos principais passos para tornar a experiência de crianças com brinquedos inteligentes mais segura: o Facebook possui uma biblioteca de alfabetização digital [17]; na Suíça, materiais didáticos sobre privacidade e segurança de dados são distribuídos em jardins de infância e escola primária [18]; a Unicef desenvolve um trabalho conjunto com governos, empresas e sociedade civil para proteger crianças na rede [19].

Esses passos são um bom começo, mas ainda há muito a ser feito pelo futuro da Internet of Toys. Num contexto em que a tecnologia impacta jovens de formas cada vez mais numerosas e profundas, o foco em privacidade, segurança e transparência [20] é imprescindível para o direito das novas gerações a um futuro aberto e deve manter-se sempre em pauta, bem como discussões em torno de políticas e outros direitos fundamentais. Assim, a população estará ciente do significado e impacto de tais tecnologias, e pais poderão cuidar de seus filhos da maneira mais natural possível: mantendo-os protegidos dentro da própria casa.

 

NOTAS:

[1] SANTOS, Bruno P. et al Internet das Coisas: da Teoria à Prática. Disponível em: https://homepages.dcc.ufmg.br/~mmvieira/cc/papers/internet-das-coisas.pdf Acesso em: 09 de outubro de 2019.

[2] MIORANDI, S. Sicari, F. DE PELLEGRINI, I. Chlamtac. Internet of things: vision, applications and research challenges. Ad Hoc Networks. Volume 10, 2012, p. 1497–1516. 

[3] SOPRANA, Paula. Internet das Coisas impõe desafios de segurança, privacidade e conectividade. Disponível em: https://dataprivacy.com.br/internet-das-coisas-impoe-desafios-de-seguranca-privacidade-e-conectividade/ Acesso em 10 de outubro de 2019.

[4]  ITS Rio. Guia Pokémon Go sobre Direitos Digitais. Disponível em: https://feed.itsrio.org/guia-pok%C3%A9mon-go-sobre-direitos-digitais-66aff362d492 Acesso em: 20 de outubro de 2019.

[5] LEAL, Livia Teixeira. Internet of toys: os brinquedos conectados à internet e o direito da criança e do adolescente. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 12, p. 175-187, abr./jun. 2017.

[6] CETIC.br. Pesquisa TIC Kids Online 2017. Disponível em: https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/tic_kids_online_2017_livro_eletronico.pdf. Acesso em: 10 de setembro de 2019.

[7] OMS. OMS divulga recomendações sobre uso de aparelhos eletrônicos por crianças de até 5 anos. 2019. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/oms-divulga-recomendacoes-sobre-uso-de-aparelhos-eletronicos-por-criancas-de-ate-5-anos/>. Acesso em: janeiro de 2020.

[8] TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. SOUZA, Carlos Affonso. Infância Conectada: Direitos e Educação Digital. TIC Kids Online 2017. Disponível em: https://www.cetic.br/media/docs/publicacoes/2/tic_kids_online_2017_livro_eletronico.pdf. Acesso em: 12 de outubro de 2019. 

[9]  NEWSWEEK MAGAZINE. Hello Barbie, Your Child’s Chattiest and Riskiest Christmas Present. 2015. Disponível em: <https://www.newsweek.com/2015/12/25/hello-barbie-your-childs-chattiest-and-riskiest-christmas-present-404897.html>. Acesso em: dezembro de 2019.

[10] GROSS, Doug. Foul-mouthed hacker hijacks baby’s monitor. Disponível em: https://edition.cnn.com/2013/08/14/tech/web/hacked-baby-monitor/index.html. Acesso em: 10 de outubro de 2019.

[11] Original: “The range of sophisticated sensors embedded in Internet-connected toys, such as microphones, location and movement detectors, touch sensors and cameras magnify the security and privacy risks of hacking and hijacking. Together with voice recognition software, and a capacity for facial recognition processing, these new dataveillance (Clarke, 1988) capabilities generate huge quantities of information about a child and their social context which can be collected and distributed without the family knowing or understanding the implications”. HOLLOWAY, Donell. GREEN, Lelia. The Internet of Toys. Communication Research and Practice: Vol 2, Nº 4. p. 506-519.

[12] CF, art. 227, caput: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

[13] ECA, art. 4º, caput: “Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”

[14] ECA, art. 70: “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.”

[15] BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 11 de outubro de 2019.

[16] BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de Abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 11 de outubro de 2019.

[17] Facebook. Digital literacy library. Disponível em: https://www.facebook.com/safety/educators. Acesso em: janeiro de 2020.

[18] LIU, Jason. Como um programa suíço ensina privacidade online para crianças. Disponível em: https://www.swissinfo.ch/por/educa%C3%A7%C3%A3o-pr%C3%A9-escolar_como-um-programa-su%C3%AD%C3%A7o-ensina-privacidade-online-para-crian%C3%A7as/45493918. Acesso em: janeiro de 2020.

[19] UNICEF. Children’s rights and the Internet. Disponível em: https://www.unicef.org/csr/childrensrightsandinternet.htm. Acesso em: janeiro de 2020.

[20] HOLLOWAY, Donell. GREEN, Lelia. The Internet of Toys. Communication Research and Practice: Vol 2, Nº 4. p. 506-519.

Isabela Inês


Thaís Aguiar

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