Lições de Paulo Freire para um jornalismo ético sobre novas tecnologias
Quando a tripulação está morta ou incapacitada, o computador deve assumir o controle. Há 55 anos, em abril de 1968, era lançado o filme “2001: Uma Odisséia no Espaço”, clássico cinematográfico de Stanley Kubrick – assim como no filme, pode imaginar o início desse texto ao som de Also sprach Zarathustra, de Richard Strauss – um épico de confronto humano vs máquina, no caso, astronautas e a Inteligência Artificial Hal 9000. Pensar na possibilidade de uma IA que desenvolveu autonomia e sentimentos causa grande desconforto, afinal, compreender os símbolos que permeiam o imaginário social até então é algo intrínseco e intransferível da experiência humana. Porém, o que acontece quando o pânico sobre esse “outro” que é desconhecido deixa as telas de cinema, páginas de livros de ficção científica e entra nos noticiários da mídia tradicional?
Não é recente a existência de um fascínio por essa atmosfera nebulosa em parte da grande imprensa brasileira quando se trata de ciência e tecnologia (C&T). Temos casos emblemáticos no jornalismo nacional, como o ET de Varginha (quem lembra?). Esses cenários quase lúdicos e até engraçados podem parecer isentos de danos na comunicação sobre C&T, mas existe um certo perigo quando essas narrativas deixam de ser ficcionais e cinematográficas e começam a ser difundidas em um campo que lida com acontecimentos e informações verdadeiros, como as menções às leis de Asimov em discussões reais sobre IA.
Naturalmente, como um dos principais centros independentes de estudo sobre direito e tecnologia no Nordeste, o IP.rec mantém uma produção de pesquisas de referência na área, e uma preocupação precisa acompanhar esses estudos: como devemos comunicar e criar um diálogo sobre os assuntos no âmbito da Governança da Internet? Como essas pautas sobre tecnologia devem repercutir na imprensa?
Uma das principais questões que ativistas e entidades que lutam pelos direitos humanos no meio digital defendem é a tomada de decisão sobre políticas públicas referentes aos direitos digitais e uso de tecnologias a partir do envolvimento de diversos setores e da sociedade civil em um debate aberto e participativo. Para que isso seja efetivamente possível, é necessário que a população tenha consciência não só da importância de reconhecer seus direitos digitais, mas compreender todas as afetações e vulnerabilidades que atravessam sua existência, seu corpo e seus dados pessoais. O jornalismo, nesse contexto, é um aliado fundamental na construção social da realidade e na influência dos rumos do debate democrático na esfera pública.
Realidade fantástica
O uso de clickbaits e sensacionalismos fantásticos foi a “fórmula mágica” que a mídia tradicional encontrou para atiçar a curiosidade dos leitores, aumentar o número de visualizações no site e crescer o engajamento nas redes sociais com títulos exagerados e textos apelativos, principalmente quando se trata de C&T. O sensacionalismo se divide entre apresentar as maravilhas de um futuro conectado e causar pânico sobre as novas tecnologias. Falta confronto e criticidade, sobra uma visão utilitarista que coloca as ciências e as tecnologias em uma torre de marfim sem discussão, como se toda nova ferramenta tecnológica que surge fosse sempre um avanço para todes na sociedade, “sem discriminação”.
É preciso se desvincular da ideia positivista e neoliberal de que a prática jornalística é uma reprodução objetiva da “verdade dos fatos”. A objetividade, na verdade, é uma mistificação (SCHUDSON, 2010) para manutenção das estruturas do poder e do privilégio. Um acontecimento pode ser apresentado sob diversas perspectivas, a depender da experiência, da contextualização, do repertório, das vivências do jornalista, e todas essas versões sobre o mesmo fato podem ser verdade. O jornalismo, então, não é neutro e objetivo, tampouco é uma transmissão passiva de informações.
A linguagem não é um código neutro e transparente e por isso o texto da notícia sempre direciona a leitura para um determinado sentido (BENETTI; LAGO, 2010), já que depende da construção de sentidos e da intersubjetividade dos sujeitos envolvidos.
Autonomia e emancipação
Se cai por terra o mito da objetividade no jornalismo, quais caminhos seguimos para construir uma notícia? A vívida memória sobre as práticas educativas de Paulo Freire podem ser aplicadas no jornalismo quando compreendemos a função pedagógica da atividade. Entre os 27 saberes que o educador cita no livro Pedagogia da Autonomia, alguns se destacam para o fazer jornalístico:
Os saberes descritos pelo educador são, em sua maioria, os mesmos que o jornalista precisa dominar para produzir um conhecimento embasado, contextualizado, crítico e transformador. Entre eles estão: a rigorosidade do método, a criticidade, a estética e ética, a reflexão crítica sobre a prática, o reconhecimento de ser condicionado e, ainda, apreensão da realidade e saber escutar (VIZEU; CERQUEIRA, 2017).
A rigorosidade do método é o que diferencia a informação jornalística de tantas outras informações que circulam a cada segundo no ambiente online. A inquietação, a curiosidade ingênua, a persistência, o confronto e o questionamento sempre devem fazer parte do fazer jornalístico. É preciso ser irreverente. Uma notícia sobre a instalação de reconhecimento facial para monitoramento pela Prefeitura do Recife, por exemplo, precisa ser devidamente contextualizada sobre os riscos a que parte da população está vulnerável no uso dessa ferramenta na segurança pública.
Sobre ética e estética, Freire afirma que decência e boniteza devem andar juntas, “pensar certo demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos fatos”.
É como se Freire estivesse orientando jornalistas. Lembrando a esses profissionais que esses saberes unidos devem ser incorporados como forma de correção e beleza, retidão e atração, legitimidade e convencimento (VIZEU; CERQUEIRA, 2017).
Bem como Paulo Freire (2002) reforça que “a tecnologia não é obra de demônios, mas da humanidade”, devemos nortear direcionamentos e enquadramentos de pautas levando em consideração que a tecnologia não é o fim, mas sim um instrumento que deve facilitar e solucionar problemas que já existem – ainda que a lógica mercadológica crie novos problemas para vender soluções tecnológicas mirabolantes.
Quando alertamos sobre o hype a cada nova tecnologia que surge, não significa que somos contra o desenvolvimento de algumas ferramentas de tecnologia que surgem no mercado, mas sim que devemos deixar de nos afogar em previsões fantásticas sobre o futuro como se estivéssemos vivendo em um episódio dos Jetsons. É preciso fornecer informações significativas para construir uma discussão crítica sobre o uso ético dessas tecnologias e seus impactos políticos, econômicos, sociais e culturais.
“O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (FREIRE, 2002). A prática jornalística emancipatória permite ao leitor ter autonomia para formular sua própria opinião a partir de informações importantes que podem contribuir para um debate aberto e verdadeiramente participativo. É emancipatório pois quebra uma hierarquia sobre o grupo minoritário que detém as narrativas difundidas nos noticiários tradicionais disfarçadas de verdade absoluta, causa uma ruptura de uma comunicação unilateral e possibilita um diálogo que não subestima seus leitores e leva em conta seus saberes. Rompe também com a ideia de uma tecnologia que está distante da população, quando na verdade já estão todes lidando com criptografia, processamento de dados pessoais, IA, algoritmos, reconhecimento facial e outras ferramentas, muitas vezes sem saber.
Manter a prática jornalística crítica e consciente, refletindo sempre sobre a transparência das informações, os enquadramentos escolhidos, os questionamentos que foram ou que deveriam ser feitos sobre determinado assunto deve ser uma ação pulsante e constante.
É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. O seu distanciamento epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise, deve dela aproximá-lo ao máximo (FREIRE, 2002).
No mesmo sentido, Bell Hooks deixa transparecer a influência de Paulo Freire em seus pensamentos no livro “Ensinando a Transgredir: A Educação como Prática da Liberdade”. A construção de um sentido coletivo para compreender as implicações sobre o uso de tecnologias na sociedade é o que permite transgredir a noção mercadológica, colonial e utilitarista que encontramos nas entrelinhas das notícias.
Nesse campo de possibilidades, temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, exigir de nós e de nossos camaradas uma abertura da mente e do coração que nos permite encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginemos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática da liberdade (HOOKS, 2013).
O desenvolvimento tecnológico é inerente à condição humana e não irá desacelerar, e por isso se faz necessário entender que “divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado” (FREIRE, 2002). Para além das pesquisas e produções científicas, a comunicação, principalmente o jornalismo, deve se posicionar em sua função político-social e pedagógica e estimular os leitores a compreender e refletir criticamente.
Referências
BENETTI, Márcia; LAGO, Cláudia (Orgs.). Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis; Vozes, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo. Martins Fontes, 2013.
SCHUDSON, Michael. Descobrindo a notícia: uma história social dos jornais nos Estados Unidos. Petrópolis: Vozes, 2010.
Aline Melo
(ela/dela) Mestranda em comunicação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisadora do grupo IPÊ – Instituições, Públicos e Experiências Coletivas, ligado ao Departamento de Comunicação Social da FAFICH, UFMG. Atua principalmente nas áreas de Jornalismo sobre Ciência e Meio Ambiente, Divulgação Científica, Tecnologia, Política e Movimentos Sociais. No IP.rec, é coordenadora de comunicação, assessora de imprensa e community manager da campanha Mulheres na Governança da Internet.