Enquanto outubro de 2022 se avizinha, vão-se aí quase 12 meses desde o anúncio que a Facebook não mais seria conhecida como Facebook. Em notícias, propagandas e nas próprias plataformas, o novo nome da empresa tem se tornado comum e já não aparenta soar tão estranho aos ouvidos de quem convive com os serviços oferecidos pelo grupo desde 2004. Já naquela época, o anúncio de Mark Zuckerberg evidenciava que o objetivo da mudança era indicar o novo rumo das atividades da empresa, que dali em diante assumia publicamente o objetivo de ser o maior player da próxima “fase” da Internet móvel. Com “plataformas e mídias ainda mais imersivas”, o metaverso seria a chave para otimizar as atividades humanas e acrescentar presença e imersão ao que já tem sido feito por meio de redes sociais e celulares. Com esse tom de promessa e expectativa, ao longo de quase 1h30, o vídeo promocional do lançamento apresenta o rol de atividades sociais possíveis neste novo mundo. Do estabelecimento de relações sociais até o comércio, todos os domínios da vida humana poderiam ser maiores e melhores em um futuro relativamente próximo, desde que viabilizássemos o metaverso descrito por Zuckerberg.

 

Você poderá passar por essas diferentes experiências em tipos de dispositivos diferentes, às vezes usando realidade virtual estando imerso, às vezes usando óculos de AR para que você também possa estar presente no mundo físico, e às vezes num computador ou celular para poder pular rápido para o metaverso a partir de plataformas existentes. Haverá novos modos de interagir com os dispositivos que são muito mais naturais. Em vez de digitar ou tocar, poderemos fazer gestos com as mãos, dizer umas palavras, ou mesmo fazer coisas acontecerem apenas pensando nelas. Seus dispositivos não serão mais o foco de sua atenção. Em vez de atrapalhar, vão dar a você a noção de presença nas novas experiências que terá e nas pessoas com quem estiver. Esses são alguns dos conceitos básicos do metaverso.

 

Em certo momento da apresentação, Zuckerberg incorpora o que posteriormente acabou pautando parte significativa da cobertura mainstream sobre o metaverso. Diz ele: “Mas nossa esperança é que se todos trabalharmos nisso, na próxima década, o metaverso alcançará um bilhão de pessoas, hospedará centenas de bilhões de dólares de comércio digital e dará trabalho a milhões de criadores e desenvolvedores”. 11 meses após o anúncio, o metaverso do empresário continua dando prejuízo, como parece ser a regra desse tipo de produto, mas alavancou uma série de temáticas e componentes que versam sobre o “caráter alvissareiro” da tecnologia.

 

De lá para cá, as tendências de mercado e da produção tecno-científica têm caminhado lado a lado para garantir ao metaverso um destaque que há muito já não era visto. É o que mostraremos nos relatórios de patentes e de cienciometria que integram o nosso projeto sobre o tema e serão lançados em breve. A partir do anúncio da empresa, há um aumento vertiginoso de publicações científicas com o termo “metaverso” entre os metadados. A expansão direta e imediata não é exatamente equivalente no âmbito dos patentes, no qual há um intervalo maior entre o pedido de registro e a divulgação para o público, mas o registro de tecnologias associadas à AR/VR tem crescido regularmente nos últimos anos. Embora o anúncio não apresente o seu metaverso como um produto que já foi concebido e parcialmente oferecido por outras empresas, a Meta conseguiu, em uma estratégia de mercado e de marketing, catapultar o tema dos mundos virtuais, vinculados ou não à ideia de imersão por tecnologias de realidade virtual ou aumentada.

 

Na imprensa, um compilado rápido das notícias indica que a agenda tem variado entre altas expectativas e construções factuais apresentadas como certas. Nesses termos, o metaverso é o futuro e o presente dos relacionamentos pessoais, da de ritos sociais, da religião, do trabalho, da ciência, da guerra, do comércio e na Justiça. A promessa vai além, abrangendo inclusive o enfrentamento de problemas sociais complexos e históricos. Em entrevista ao portal CoinTelegraph, o empreendedor sul-africano Mic Mann, co-fundador da startup Africacare (que se apresenta como um metaverso africano baseado na criptomoeda Ubuntu), declarou: “Acreditamos que o Metaverso é o maior equalizador do mundo. Através da Africarare, podemos permitir que os africanos participem deste novo espaço e prosperem”.

 

Nesse momento, porém, as expectativas e falsas certezas são os grãos de um castelo de areia. Na medida em que simuladores e mundos virtuais comuns contribuem para o hype em torno de uma ideia abstrata, há poucos indícios de em que exatamente o metaverso do futuro se distingue de uma variedade de experiências virtuais de longa data, como o Second Life e o Pokémon Go. Se há dúvidas sobre a materialidade e os benefícios reais e coletivos desses produtos, a história do desenvolvimento tecnológico e científico nos mostra que não é exatamente difícil construir expectativas e promessas em torno de projetos apresentados como inovadores e revolucionários. A crença de que avanços indeterminados da tecnologia compõem uma linha evolutiva e linear que leva ao progresso – geralmente positivo – é parte estruturante da nossa experiência enquanto sociedade moderna. Na atualidade, o mercado da tecnologia e a economia da informação combinam a aposta no desenvolvimento tecnológico com a cultura da inovação, estabelecendo assim empreendimentos baseados na destruição e recriação de desejos e necessidades.

 

Da perspectiva de resultados econômicos, não é exatamente ilusório apostar que determinada tecnologia será revolucionária e central em um eventual “futuro” que já começa agora. Parte expressiva dos mercados e das profissões que se constituíram em torno das possibilidades da Internet comercial efetivamente exercem papéis chave nas atividades sociais contemporâneas e consolidaram-se como mercados bilionários. Mas é também a história da Internet, que parece servir de inspiração e modelo para um conjunto crescente de promessas em torno do metaverso e da Web3, que pode apontar para os equívocos e riscos da reprodução pouco comedida de exarcebadas potencialidades e expectativas. Quando a Internet foi se consolidando como uma tecnologia civil e comercial ao longo da década de 90, ela veio acompanhada de expectativas grandiosas quanto ao seu impacto positivo em vários das complexas questões da época, da tensão entre constrangimentos sociais e liberdades individuais à paz mundial entre os povos. Ao lado dessas promessas, coexistiram também temores exacerbados, que em realidade marcam a história do desenvolvimento técnico associado às comunicações (BRIGGS, BURKE, 2016). Três décadas depois, a maravilha e o terror em suas formas puras já não parecem mover  nem a pesquisa e nem a leitura social mais abrangente sobre a Internet, que já foi positivamente associada a muitos eventos da nossa época, mas também protagonizou casos com o da Cambridge Analytica e o da infodemia durante a pandemia de Covid-19.

 

No início dos anos 2000, no Brasil, um dos primeiros pesquisadores a abordar mais detidamente o assunto alertava que todas essas questões ainda estavam em aberto. Preocupado com o tema da política, o cientista político José Einseberg comentava sobre como a análise desse fenômeno extrapolava a viabilidade técnica ou econômica. Em entrevista, ele ponderou:

 

Se a rede terá efeito positivo no envolvimento do cidadão com a política, essa é uma questão em aberto. É preciso considerar seus limites reais enquanto meio técnico e a forma como vem sendo utilizada. O uso da internet só pode ser politicamente relevante se as questões debates por intermédio dela disserem respeito à vida dos cidadãos e à política (EINSBERG, 2001).

 

Ainda que hoje já tenhamos passado por muitos hypes sobre a Internet e as novas tecnologias da comunicação, esse arsenal não parece estar sendo suficientemente mobilizado para a compreensão mais elementar sobre o metaverso. Para reforçar a comparação, estritamente utilizada dentro dos propósitos explicativos deste texto, os dados e experiências empíricas que acumulamos ao longo dos últimos anos dizem não apenas do papel do uso e da permanência de limites reais do meio técnico, mas também das desigualdades e problemas que surgem da operação cotidiana de produtos que estão cada vez mais integrados ao nosso dia a dia. É o caso da exploração de metais preciosos, para mencionar um exemplo. Com isso, torna-se injustificável reiterar que toda e qualquer dinâmica social pode potencialmente ser otimizada e melhorada por meio de aperfeiçoamentos técnicos insuficientemente detalhados e ainda não avaliados em termos empíricos, mesmo que eles hoje venham acompanhados da menção, ainda muito pouco enfatizada, de que há riscos e de que é preciso apostar em uma construção conjunta, privativa e segura by-design.

 

Esse é o alerta que pode ser feito a partir de uma abordagem crítica ao solucionismo tecnológico (MOROZOV, 2014) muitas vezes inscrito na avaliação que estamos fazendo sobre a nossa possível experiência “no metaverso”. A proposta não indica que há um componente inerentemente negativo em nada disso, mas que tampouco há uma regra positiva que possa ser derivada da proposta de que é assim que vamos trabalhar, viver e nos relacionar com mais qualidade ou igualdade. Quando olhamos para o metaverso como prioritariamente uma promessa de mais empregos, mais diversão e mais comércio, falhamos em incorporar que “precisaremos investigar todo e cada sistema tecnológico em seus próprios termos (…) (MOROZOV, 2014, p. 324), o que pode se tornar cada vez mais difícil quando há um movimento acelerado e irrefletido de criação de expectativas e avanços em torno de algo tão incerto e pouco compreensível. Se a Internet tiver contribuído de alguma forma para a construção de uma esfera pública mais ampla e aberta, que isso se reverta, ao menos em determinados pontos, em um debate melhor e urgente sobre o que nos foi apresentado como a próxima etapa.

 

Referências:

EISENBERG, José. Política, democratização e cidadania na internet. Entrevista concedida a Mayra Mitre. Ciência Hoje, Minas Gerais, v. 29, nº 169, p. 6-10, 2001;

BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Zahar, 2016.

MOROZOV, Evgeny. To save everything, click here: the folly of technological solutionism. J. Inf. Policy, v. 4, n. 2014, p. 173-175, 2014.

Laura Pereira

Mestranda em Ciências Sociais (UNESP). Tem bacharelado e licenciatura também em Ciências Sociais (UNESP), quando fez intercâmbio na Universidade de Santiago de Compostela e foi bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Foi bolsista do Programa Youth em 2019 e 2022. É também pesquisadora do Instituto Vero e do Laboratório de Política e Governo da UNESP, além de participar do primeiro ciclo de pesquisa do Laboratório de Moderação de Conteúdo e Constitucionalismo Digital (ModeraLab) do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Se interessa pelos temas da Governança da Internet, da regulamentação de novas tecnologias e pela interação contemporânea entre plataformas digitais, comunicação e política. No IP.rec, trabalha com ambiente regulatório e novas tecnologias, com ênfase nas áreas de Inteligência Artificial e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada.

Compartilhe

Posts relacionados