Boa tarde a todas e todos, cumprimento as autoridades aqui presentes na pessoa do Ministro Gilmar Mendes e, em nome do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife – IP.rec, instituição que aqui represento, o saúdo pela iniciativa de abrir esse espaço para ouvir representantes da sociedade civil interessados e especialistas no tema aqui discutido.

Começo minha exposição afirmando que, para os fins aqui pretendidos, é importante lembrar que os dados de comunicação têm proteção constitucional insculpida no art. 5º, XII: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Dessa forma, sendo um direito fundamental do cidadão, a violação das comunicações somente pode ocorrer quando houver indícios de ilegalidade suficientes para demandar uma ordem judicial de quebra de sigilo. Da mesma forma, a privacidade também é protegida pela Constituição, e embora o Ministro Sergio Moro tenha dito aqui pela manhã que essa discussão aqui não se refere à privacidade, eu ouso discordar, com todo respeito. A privacidade é sim um dos pontos da discussão ora posta.

O regime jurídico brasileiro a respeito das relações intermediadas pela Internet é muito avançado em relação a outros países, considerando a inovação temática trazida pelo Marco Civil da Internet, que se une à Constituição Federal e antevê o que agora é previsto com mais detalhes e maior aprofundamento na recém aprovada, porém ainda não vigente, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. O Brasil atingiu, com isso, um arcabouço legislativo de proteção à privacidade e aos dados pessoais que atende a parâmetros elevados, como por exemplo o da União Europeia, que estabeleceu níveis consideráveis de proteção aos dados dos cidadãos europeus. 

Apesar de a LGPD ainda não estar vigente, trago aqui a pontuação de que ela trata da transferência internacional de dados pessoais, autorizando, em seu art. 33, III, a transferência para fins de cooperação internacional entre órgãos públicos de inteligência, de investigação e de persecução, enfatizando, todavia, que tais casos estejam de acordo com instrumentos de direito internacional, como, por exemplo, o MLAT, objeto da discussão aqui apresentada.

Neste caso, o legislador foi muito feliz ao fazer a ponte entre a transferência internacional de dados e os instrumentos de cooperação internacional já existentes no ordenamento jurídico. Como ressaltado no início da minha fala, o sigilo dos dados de comunicação dos cidadãos constitui-se direito fundamental, que carece de uma proteção mais rebuscada. Aqui enfatizo que as autoridades de investigação devem ter sempre isso em mente, bem como o princípio da presunção de inocência, também constitucionalmente estabelecido. Qualquer infração a eles é digna de ser reparada e de forma enérgica.

Dessa forma, entendemos que a melhor maneira de requisitar os dados de comunicações privadas dos cidadãos brasileiros armazenados no exterior para fins de investigação criminal é sim via acordos de cooperação internacional para este fim. No caso específico, o MLAT – Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América – é a forma específica e VIGENTE no ordenamento jurídico brasileiro para tanto.

Referido acordo foi promulgado por meio do Decreto nº 3810/2001, o qual nunca foi objeto de ação de inconstitucionalidade perante esta Corte. Os tratados internacionais são, como se sabe, recepcionados pela Constituição Federal com status de lei federal. Em legislação específica, o Marco Civil da Internet recepciona e respeita os tratados internacionais, precisamente em seu art. 3º parágrafo único: “Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Então o decreto do MLAT não só pode como deve ser aplicado.

Ademais, muito se falou hoje sobre a possibilidade de fornecimento direto de informações armazenadas no exterior pelas empresas no Brasil, usando como base para tal o art. 11 do MCI. Mas o dispositivo em questão não autoriza o fornecimento dos dados diretamente às autoridades brasileiras, como afirmaram aqui mais cedo alguns expositores. O art. 11 apenas afirma que a lei brasileira deve ser cumprida, o que é óbvio, sem estabelecer o procedimento. Mas o decreto do MLAT também é uma lei brasileira, constitucional e vigente, ou seja, também deve ser observada, segundo a literalidade do art. 11 do MCI.

Entendemos os desafios que tecnologias transfronteiriças trazem às investigações criminais, como aplicações de mensagem ou redes sociais, e por isso mesmo consideramos necessário fortalecer esforços de colaboração entre agências governamentais. Nesse sentido, também é possível notar que a diligência processual, no que diz respeito à requisição e obtenção de provas, se depara com novos desafios devido à natureza efêmera de certas comunicações estabelecidas via Internet. A intermediação de tecnologias que encriptam as comunicações também inaugura um cenário delicado ao tornar inacessíveis, por vezes, o conteúdo das mesmas. Entre outros fatores, infelizmente, essa realidade dá ensejo a rotinas ilegítimas por parte de algumas agências de investigação, as quais enfraquecem o devido processo legal por não atuarem em obediência a uma ordem judicial. Assim, sucessivos programas de vigilância das comunicações são noticiados pelos meios de comunicação. Dito isso, frisamos a central necessidade de intermediação e acompanhamento do juízo legítimo no requerimento e consequente colaboração proporcionada pelo MLAT, a fim de não restar brechas à violação da privacidade dos cidadãos sem que haja estrita base legal.

Porém, ainda que o acordo bilateral do MLAT tenha surgido para sanar conflitos processuais sobre a requisição de dados localizados além das fronteiras nacionais para fins de investigação criminal, é importante destacar que o conteúdo de comunicações protegidas por criptografia forte encontra barreiras técnicas que vão além da boa-fé colaborativa entre empresas de tecnologia e agências do Estado. Apesar da defesa da constitucionalidade do instrumento aqui sustentada, é necessário pontuar que o MLAT não sana impossibilidades técnicas que empresas de tecnologias enfrentam no acesso às comunicações de seus usuários. Seja no Brasil ou nos Estados Unidos, a situação permanece a mesma, pois a tecnologia não varia de acordo com o local onde é construída. Sua arquitetura é universal, pois baseada em critérios científicos de construção. A questão foi largamente desenvolvida por especialistas em Audiência Pública promovida por esta Corte, a qual procurou esclarecer conflitos no âmbito da ADIN nº 5.527 e da ADPF nº 403.

E aqui, já me encaminhando para o final da minha fala, sabemos que dados sobre a negativa de pedidos via MLAT realizados pelas autoridades brasileiras às autoridades estadunidenses demonstram a falta de indícios para embasar as investigações, segundo o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça. Os números apresentados pela manhã pelo DRCI demonstram que a ferramenta na verdade não está sendo bem utilizada. A lei dos EUA exige que, para violar o direito constitucional do sigilo das comunicações, é necessário demonstrar o nexo causal entre o fato investigado e a necessidade de afastamento do sigilo. Segundo o Ministério da Justiça, 32% das negativas de cooperação são por falta de demonstração da necessidade da quebra de sigilo telemático. Esse é o cuidado que temos que ter também aqui, a demonstração da necessidade tem que ser cabal.

Do ponto de vista da sociedade civil, cadeira que ora ocupamos, resta-nos concluir, a partir dessas explanação do Ministério da Justiça, que as autoridades brasileiras almejam a quebra do sigilo das comunicações para verificar a ocorrência de um fato, quando ainda não têm provas, e não utilizar o que lá está como evidência de um acontecimento prévio. Mais uma vez enfatizamos aqui a necessidade de se observar o princípio da presunção de inocência, e, também, que a quebra do sigilo das comunicações só deve ser autorizada quando houver indícios suficientes de prática de ato ilícito e de que as referidas comunicações dizem respeito ao ato criminoso investigado. Em hipótese alguma deve acontecer fora dessa lógica, sob pena de infração ao devido processo legal e a outros direitos constitucionalmente assegurados.

Assim, é possível afirmar que, respeitado o devido processo legal e o direito à privacidade, que o MLAT e os acordos de cooperação internacional em geral devem ser considerados os mais benéficos instrumentos para o caso de requisição de informações e dados necessários a investigações. Pelo mesmo motivo, não se pode questionar a eficácia das requisições de dados via MLAT, considerando que as negativas aconteceram, sobretudo, pela ausência das informações necessárias.

Com isso, concluo minha fala e novamente agradeço o espaço e a iniciativa do Ministro Gilmar Mendes. Obrigada.

Raquel Saraiva

Presidenta e fundadora do IP.rec, é também graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestra e doutoranda em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2017). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Algoritmos e Inteligência Artificial, Privacidade e Vigilância e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada, mas também se interessa pelas discussões sobre gênero e tecnologia.

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