Apesar da recente popularização do termo multissetorialismo [1], a organização de práticas políticas multissetoriais já acontece há um bom tempo, como são os exemplos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Comissão para o Desenvolvimento Sustentável da ONU criada em 1993.

Como bem sabemos, a tecnologia não é neutra. Dessa forma, em seus espaços de debate, determinados interesses são promovidos e fortalecidos, resultando em consequências econômicas, sociais e políticas de acordo com vontades individuais ou setoriais [2]. Assim, a importância do modelo multissetorial no âmbito da governança da Internet surge da necessidade de conciliação desses interesses.

Descrito como uma “camada fictícia” por alguns [3], a técnica multissetorial deve ser lembrada no contexto em que ficções também são parte do imaginário político que instaura realidades. Ficções políticas possuem uma poderosa e, muitas vezes, subestimada dimensão performativa. Dessa forma, além de criar expectativas e objetivos, o multissetorialismo, no cenário da governança da Internet, por exemplo, faz com que os atores envolvidos se identifiquem com valores de inclusão, diversidade e elaboração de políticas de maneira bottom-up e busquem tornar esses valores uma realidade [4].

O multissetorialismo, apesar de conceito imaginário [5] e não muito bem definido, pode facilitar e ajudar na regulação de cenários considerados fragmentados e desordenados. Por outro lado, a partir das experiências práticas já efetivadas na ambiência da governança, as decepções trazidas pela performance do modelo multissetorial, muitas vezes derivadas da disparidade entre o seu discurso e seus resultados práticos, são vistos como fatores desencorajadores para muitos estudiosos.

Neste pequeno artigo, em duas partes, em que constam alguns frutos das reflexões do projeto de pesquisa do IP.rec sobre “a extensão do conceito de multissetorialismo e participação popular”, pretende-se apresentar um ponto além em relação às discussões ordinárias sobre o tema.

Muitas vezes, as frustrações relacionadas ao modelo multissetorial acontecem devido aos horizontes de expectativas [6] associados ao conceito. Isso por que a reflexão sobre o conceito do modelo de múltiplas partes interessadas (aqui tratado como sinônimo direto de multissetorialismo) exige pensar em questões, entre outras: o uso do conceito é comum? Há disputa sobre sua semântica (sentido)? Qual o espalhamento social do seu uso? Como ele se relaciona com outros termos (em complementação ou oposição)? Quem utiliza o termo e com que intuitos retóricos estratégicos?

A ideia, por exemplo, de atribuir legitimidade a um modelo multissetorial vem atrelada à expectativa de elaboração de políticas de qualidade superior, já que, de acordo com o senso comum, um processo multissetorial é compreendido como um modelo mais inclusivo e participativo que leva a decisões mais trabalhadas e consensuais [7]. Há, portanto, a incorporação de uma experiência, como acontecimentos lembrados e transmitidos que fazem um passado atual, gerando uma previsibilidade sobre o futuro [8].

Ainda que o cenário trazido por aqueles que defendem a adoção de políticas que objetivem o fechamento da Internet pareça sombrio, alguns especialistas acreditam que em um futuro próximo o ecossistema da governança da Internet irá experienciar um grande crescimento com a fundação de novas organizações e inclusão de novos atores de modo a preencher as lacunas existentes.

Para estes, o crescimento das estruturas de governança pode ser catalisado pela participação de um público transnacional, que terá como incumbência monitorar e avaliar o desempenho da formulação de políticas, tentar manter os principais participantes sob controle, mas provavelmente também exigir uma expansão do escopo regulatório [9]. Como defendido por Koselleck, ainda continua sendo comum a todos os conceitos de movimento a produção compensatória que realizam. Quanto menor o conteúdo de experiência, maior é a expectativa que se extrai dele.

Como observado por muitos, o modelo multissetorial fomenta o diálogo entre diversos setores mas não garante a diversidade de perspectivas e interesse [10]. Para alguns, a maioria dos IGFs (Fórum Global de Governança da Internet), tido como a arena multissetorial por excelência, ou ao menos projetada para sê-lo, promove espaços de capacitação com abordagens que justificam os arranjos políticos atuais no lugar de questionar o status quo e considerar a elaboração de novas políticas como uma alternativa [11]. Além disso, limitações econômicas e geográficas como a dificuldade de acesso aos locais de debate — visto que as últimas três edições do IGF, por exemplo, foram realizadas no continente Europeu — representam mais um dos entraves a uma participação verdadeiramente plural.

No ambiente da ICANN, por outro lado, o processo multissetorial parece produzir resultados concretos, mas os problemas constatados não são muito diferentes. Alguns críticos do sistema chamam a atenção para problemas de consistência e delimitação dos setores assim como de representação e participação. Apesar de a comunidade produzir recomendações em um processo longo e exaustivo, as decisões finais são feitas pelo seu Board, que recebe conselhos e influências do corpo da ICANN . Apesar de não haver um critério ou um padrão mínimo que defina processos multissetoriais [12], diversos aspectos como a falta de força da non commercial constituencyrefletem a falta de equilíbrio entre os participantes e fazem da ICANN, ao final, um modelo menos transparente e democrático.

Usado como um artefato discursivo, o imaginário do multissetorialismo é caracterizado por uma flexibilidade interpretativa. É possível dizer que o significado do termo se transforma de acordo com escolas teóricas e contextos políticos, afinal a diacronia está contida na sincronia e a história dos conceitos demonstra que novos conceitos podem ser atribuídos ainda que as palavras empregadas sejam as mesmas [13].

Além disso, conceitos e ficções não são estáticos, eles se transformam e se adaptam a contextos. Mas a respeito da dimensão performativa do conceito de multissetorialismo falaremos no próximo texto.

 

Notas:

1- O termo “multissetorialismo” é uma invenção bastante recente, criado há pouco menos de duas décadas e intensamente utilizado pela comunidade da governança da Internet. Entretanto, como “princípio organizador e prática política”, este tipo de modelo, em que múltiplos atores participam de decisões políticas, possui uma longa tradição. (cf. HOFFMAN, Jeanette. Multi-stakeholderism in Internet governance: putting a fiction into practice, Journal of Cyber Policy, 1:1, 2016).

2- KURBALIJA, Jovan. Uma introdução à Governança da Internet/ tradução do original inglês Carolina Carvalho; revisão da tradução Neuza Paranhos e André Linn — São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016, p.34.

3- EZRAHI, Yaron. Imagined Democracies. Necessary Political Fictions — Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

4- HOFFMAN, Jeanette. Multi-stakeholderism in Internet governance: putting a fiction into practice, Journal of Cyber Policy, 1:1, 2016, p.30.

5- A expressão “conceito imaginário” caminha pelo vale árido das discussões epistemo-lógicas. Afinal, em certo sentido, todo conceito é uma operação do mundo da mente. Sobre o tema, mais precisamente, imaginário aparece como uma oposição a uma “lógica de argumentos reais” (cf. FISCHER, Alec. Logic of Real Arguments, Cambridge University Press, 2004).

6- É preciso ressaltar que a História dos Conceitos de Reinhart Koselleck — marco teórico do presente projeto de pesquisa — busca relacionar os conceitos às “descontinuidades históricas” e aos “contextos sociais de sua produção”. Assim, é necessário entender a relação da “experiência acumulada” e dos “horizontes de expectativas” de cada conceito. (cf. BENTIVOGLIO, Julio. A história conceitual de Reinhart Koselleck. Dimensões, vol. 24, 2010, p.114–134).

7- FAYSSE, Nicolas. Troubles on the Way: An Analysis of the Challenges Faced by Multi- Stakeholder Platforms. Natural Resources Forum 30, 2006, p. 219–229.

8- KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos / tradução do original alemão Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira ; revisão da tradução César Benjamin. — Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

9- HOFFMAN, Jeanette. Constellations of Trust and Distrust in Internet Governance. GigaNet: Global Internet Governance Academic Network, Annual Symposium, 2015.

10- BELLI, Luca. A Heterostakeholder Cooperation for Sustainable Internet Policymaking. Internet Policy Review 4 (2), 2015.

11- HOFFMAN, Jeanette. Multi-stakeholderism in Internet governance: putting a fiction into practice, Journal of Cyber Policy, 1:1, 2016 p. 29–49.

12- FRANSEN, L. W., e KOLK, A.. Global Rule-setting for Business: A Critical Analysis of Multi- Stakeholder Standards. Organization 14 (5), 2007. p. 667–684.

13- KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 134–146.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.


Mariana Canto

Diretora e Secretária Geral do IP.rec. Mestra e Chevening Scholar 2021/22 em “Science and Technology in Society” pela Universidade de Edimburgo, no Reino Unido. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, tendo estudado parte do seu curso na Universidade de Hamburgo, na Alemanha. É pesquisadora visitante e German Chancellor Fellow (Bundeskanzler-Stipendium) 2022/23 no Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB), na Alemanha. É Internet of Rights Fellow na ONG Article 19, no Reino Unido. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2018), trabalhou junto ao Secretariado do Internet Governance Forum na ONU. No IP.rec, participa de projetos nas áreas de “Privacidade e Vigilância” e “Multissetorialismo e Participação Popular”. Também tem interesse pelo estudo da regulação de algoritmos, assim como sua influência em relações assimétricas de poder.

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