Introdução

A internet inovou as relações interpessoais, possibilitando a concretização de uma sociedade pautada no hiperinformacionismo, quando não existe limite temporal ou espacial para a comunicação.

Além disso, cada indivíduo alcança uma capacidade de criação narrativa nunca antes vista. As redes sociais possibilitaram uma avalanche de versões da mesma história, aumentando a intensidade das forças envolvidas no campo de batalha que é a verdade. Cada sujeito é capaz de produzir uma narrativa de si mesmo [1].

Da mesma maneira, a relação cada vez mais íntima com a tecnologia fez surgirem novas demandas sociais. As modificações alcançaram desde a forma de participação política e na vida pública como um todo até as relações mais íntimas de um indivíduo. Todas as esferas da vida passam, indiscutivelmente, pela influência da tecnologia.

Entretanto, a internet não é de todo nova, repetindo em inúmeras situações estruturas sociais já existentes. Não se pode negar que a ampliação de oportunidades que a internet representa traz consigo consequências danosas, entre elas o número exponencial de casos de crimes contra a honra, tendo em vista uma maior possibilidade de discursos independentes e até anônimos.

Assim como abriu espaço para que se criassem narrações com o menor compromisso com a verdade, a internet também possui sujeitos que representam melhor esses discursos de poder, concretizando como vítimas principais as mulheres [2].

“Entre as notícias analisadas, foram identificados 2.788 casos de crimes contra a honra de mulheres em ambiente online. Mais de 90% das vítimas possuem menos de 40 anos de idade. Estratificando esses dados, temos que 14% são menores de 18 anos; 37% possuem entre 18 e 29 anos de idade; 43% das vítimas desse crime têm entre 30 e 39 anos de idade. A partir dos 40 anos, o índice cai drasticamente. Cerca de 4% das vítimas possuem entre 40 e 49 anos; e 1,5% estão com idade acima de 50 anos”

Nessa conjuntura o campo jurídico não se distancia dessas novas necessidades, tampouco pode se furtar das suas regulamentações. O próprio conceito de privacidade passa a exigir novos debates quando envolvem um espaço digital. Foi dessa necessidade, desenvolvimento de leis relativas à vida privada na sociedade da informação que surgiu o Marco Civil da Internet [3].

No entanto, não é possível resumir a proteção ao Marco Civil, é importante notar que a legislação brasileira já teve alguns avanços quanto ao tema, como a Lei nº 13.718 de 2018, que versa sobre a exposição de imagens íntimas de nudez sem o consentimento da vítima, e a Lei Geral de Proteção de Dados.

Desse modo, o objetivo do presente texto é tratar, diante desse ambiente de intensa proximidade entre direito, tecnologia e sociedade, da regulamentação dada pela legislação brasileira em torno dos atos de exposição de imagens, vídeos ou áudios que envolvam nudez sem que a pessoa envolvida tenha dado permissão, trazendo um debate necessário sobre os usos da internet e misoginia.

1. As novas modalidades de relações interpessoais por um viés feminista e a interpretação dos cibercrimes presentes no art. 218-C do Código Penal

Inicialmente, é importante frisar que o conceito de cibercrime adotado no presente texto é amplo, considerando todos os crimes cometidos por meio do uso da Internet. Sendo assim, como foi tratado anteriormente, far-se-á a análise desses dispositivos normativos utilizando como pano de fundo a influência da Internet sobre as relações pessoais e a própria proteção à privacidade e à intimidade.

Dessa maneira, é fundamental tratar o Marco Civil da Internet por estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Os princípios que mais se destacam na Lei Federal são garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento.

No entanto, esses princípios são protegidos em contínuo diálogo com a proteção da privacidade [4]. Desse modo, pela ideia de interpretação conforme a Constituição, são direitos de mesma estatura constitucional e devem ser ponderados, no sentido de que não possuem caráter absoluto.

Percebe-se que a lei citada traz, de maneira muito acertada, o caráter não criminal do tema. Contudo, ainda que seja necessária uma discussão sobre excesso da criminalização de atos, algumas situações exigem uma intervenção do braço mais forte do direito, o penal.

Nesse sentido, foi publicada a Lei 13.718/2018, em 24 de setembro de 2018, que tipificou a divulgação de cenas de estupro e as cenas relativas ao estupro de vulnerável e ainda abarcou os atos de divulgação de cenas de sexo ou pornografia nos casos em que não há o consentimento da vítima:

Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio — inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.

Pena — reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.

Contextualizando com a proposta apresentada no texto, a lei demarca os atos tipificados: Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar; os meios utilizados: qualquer meio — inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática. Além de definir critérios definidores de crimes sexuais envolvendo fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual das seguintes situações: cena de estupro ou de estupro de vulnerável; apologia ou indução ao estupro ou ao estupro de vulnerável; cena de sexo, nudez ou pornografia de pessoa que não consentiu com os verbos incriminados no tipo penal.

Portanto, é possível voltar o pano de fundo do trabalho para compreender que houve a criação de um novo tipo penal como resposta a uma demanda social existente.

É necessário destacar que essas novas demandas dizem respeito aos meios utilizados, à facilidade de comunicação e transmissão dessas mídias, não às vítimas. Tornou-se cada vez mais comum o compartilhamento de imagens íntimas de mulheres sem o seu consentimento, principalmente mulheres vítimas de ex companheiros [5].

“A maioria dos algozes ainda são os ex-companheiros, ex-esposos e ex-namorados, pessoas com quem a vítima compartilhou alguma intimidade e tinha laços de confiança. Eles representam 52,3% dos agressores online. Em segundo lugar no ranking, estão os desconhecidos. Pessoas que muitas vezes não conhecem a vítima, mas postam xingamentos, ofensas, compartilham boatos, imagens e vídeos vexatórios.”

Dessa maneira, não se pode trabalhar esse tema sem a análise dos últimos acontecimentos envolvendo o jogador de futebol Neymar Jr. que, argumentando defesa, divulgou conversa contendo imagens íntimas de uma mulher que o acusou de estupro.

O debate não gira em torno do tipo penal estupro, mas sim da tipificação do ato de publicar nudez ou pornografia de pessoa que não consentiu, como é o seu caso. A ampla defesa, como alguns meios de comunicação argumentaram, não pode ser utilizada como critério válido para divulgação dessas imagens, uma vez que o seu contraditório deve ser realizado no processo, não no campo midiático. O jogador quis, conforme se extrai das próprias declarações de sua assessoria, comover a opinião pública a seu favor e contrariamente à mulher, utilizando-se da sua posição de destaque nesse aspecto.

Sendo assim, é possível verificar, na atitude do jogador, o ato (divulgar, publicar), o meio utilizado (sistema de informática) e o objeto (cena de nudez), concretizando o tipo penal.

Além disso, é oportuno discutir as causas de aumento de pena quando o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação. No caso em tela, o jogador Neymar Jr. publicou o conteúdo da troca de mensagens após momentos de intimidade com a sua acusadora, de forma que pode ser considerada a causa de aumento de pena para este fato criminoso.

Trata-se, nesse momento, do chamado revenge porn, ou pornografia de vingança, que traz um aspecto subjetivo que merece uma investigação do caso concreto, uma vez que diz respeito às nuances da situação completa.

2. Conclusões: usos da Internet como instrumento de uma estrutura social misógina

É bem verdade que a temática se reveste de um debate mais intenso quando envolve pessoas famosas, no entanto o caso discutido abre espaço para um assunto muito mais profundo: a manutenção de uma estrutura social misógina.

A internet difunde de maneira mais fácil os discursos inflamados que antes alcançavam somente dezenas de pessoas. Esses discursos, entretanto, reafirmam uma sociedade pautada no patriarcalismo, uma vez que as narrativas masculinas acabam por possuir uma legitimidade maior.

Tendo em vista a consequente inversão de papéis entre vítima e acusado, inclusive na própria internet, o revenge porn, o assédio virtual ou a divulgação de imagens sem consentimento é, definitivamente, um problema de gênero. Não só por estatísticas, já que elas dão conta de um aumento expressivo de casos de violência contra a mulher e misoginia na Internet, mas pela própria ideia de exercício de poder sobre o corpo da mulher.

Desse modo, o mundo virtual reconstrói a noção de gêneros, assim como a realidade social, de maneira artificial, no intuito de legitimar como natural a ideia de dominação masculina [6].

Referências:

[1] BRANCO. Sérgio. Memória e Esquecimento na Internet. Porto Alegre: Arquipélago Editoral. 2017, p. 10.

[2] 127 mulheres e meninas se mataram no Brasil por causa de exposição online entre os anos de 2015 e 2017. FONTE: Relatório Violência, suicídio e crimes contra a honra de mulheres na internet, da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados.

[3] DONEDA. Danilo. A proteção da privacidade e de dados pessoais no Brasil. Revista Observatório Itaú Cultural, nº16, 2014, p.210.

[4] Art. 3º do Marco Civil da Internet: A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: I — garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal; II — proteção da privacidade. Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I — inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[5] De acordo com o dossiê, a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), divulgada em fevereiro de 2018 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2016 o Brasil tinha 116 milhões de pessoas conectadas à internet, o que equivale a 64,7% da população com idade acima de 10 anos. Nesse cenário de inclusão digital, a violência contra a mulher se estendeu e se potencializou nas plataformas online de forma sem precedentes.”

[6] BOURDIEU. Pierre. A dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014, p. 17.

Tassiana Bezerra


Raquel Saraiva

Presidenta e fundadora do IP.rec, é também graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestra e doutoranda em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2017). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Algoritmos e Inteligência Artificial, Privacidade e Vigilância e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada, mas também se interessa pelas discussões sobre gênero e tecnologia.

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