Um dos argumentos principais a favor da alta capacidade de produção tecnológica, e contra a ideia de um cenário de cataclisma dos empregos, é a sugestão de que a tecnologia, essa entidade substancializada pelo discurso empresarial e acadêmico, produz novos postos de trabalho que substituem os antigos. Mais do que isso: a tecnologia produz tais postos em maior número do que destrói os antigos, liberando o ser humano para o exercício do trabalho prazeroso.

Deixando de lado questões como: a mudança do conjunto de competências gerada por essa mudança para “os novos postos de trabalho”, o problema da criação de bolsões de agrupamentos humanos excluídos por questões de capacidade cognitiva, tempo de adaptação, exclusão econômica etc, eu gostaria de refletir, brevemente, sobre o aspecto mais discursivo da problemática e, especialmente, no aspecto remuneratório que afeta essa barganha, especialmente nos trabalhos envolvendo os aparatos tecnológicos (os “antigos” gadgets, os aplicativos e seus usos inerentes).

Para John Danaher, que tem discutido o tema ali pelo norte europeu, trabalho é qualquer atividade (física, emocional, cognitiva) performada em troca do recebimento de uma recompensa econômica ou performada com base na esperança desse mesmo recebimento [1]. A definição com viés econômico, e remuneratório, do trabalho afasta aquelas atividades exercidas de bom grado ou com intuito de caridade e foca o conceito para aqueles fazeres cuja potencialidade de automação – objeto de estudo de Danaher – é mais elevada. 

Por outro lado, as estratégias de postos de trabalho que envolvem aparatos e usos tecnológicos (apps e gadgets) parece, como conclui Jonathan Crary, elevar ao máximo os projetos da modernidade, forjando uma sociedade do controle (evolução da sociedade disciplinar foucaultiana) [2]. Nesse paradigma de sociedade espetacular, a atenção do sujeito humano é dissecada em novos modelos de adesão total, com a efetiva incorporação de todos os espaços de comportamento e pensamento, tudo sob a cuidadosa curadoria da análise massiva de dados e do direcionamento psicocomportamental de usuários. 

É por isso que a definição de trabalho como uma performance (e a palavra importa!) exercitada diante da promessa de uma recompensa imediata ou futura, sendo essa recompensa de cariz econômico, fornece uma pista para entender de forma rápida o funcionamento da dinâmica laborativa geral e da modificação dessa dinâmica pelo uso de diversas tecnologias, não necessariamente num sentido automatizante – ou seja, com o intuito de remoção do elemento humano da cadeia de trabalho. 

As atividades ofertadas por essa sociedade de máquinas [3], por esse capitalismo de vigilância [4] – ou qualquer que seja o conceito totalizante que se pretenda nomear o ponto histórico sincrônico da contemporaneidade – deslocam o sentido da recompensa para outros aspectos, agora colonizados, da vida. A relação estabelecida pelo discurso capitalista, já amplamente exaurida, de “extração da mais valia da força de trabalho com o retorno de uma recompensa [econômica] a menor”, agora passa a ser entendida a partir de estratégias simbólicas de recompensa. 

O trabalho é exercido para a inserção num determinado contexto laboratorial e controlado de uma plataforma, gadget ou aplicativo. A recompensa  passa a ser a construção de uma biografia digital/online etérea que dialoga, como moeda, numa economia simbólica e ideológica. Tome-se, como exemplo: os perfis em rede social, numa lógica de capitalização simbólica específica, construindo hierarquias de audiência; as práticas de “recebidos e unboxing” emuladas por influenciadores digitais e usuários-ditos-comuns; as narrativas construídas para cada tipo de perfil social e uma normatização (uma etiqueta) de cada tipo de rede social etc. A violência da venda da força de trabalho por uma recompensa econômica agora é empurrada para uma resignificação conceitual, na qual o trabalho é pressionado a aceitar a retribuição não econômica – tudo isso dentro da manutenção de uma lógica primária capitalista, na qual aquele que trabalha continua com a necessidade de uma retribuição (a unidade de troca monetária) para o exercício mínimo da dignidade. 

As chamadas economia do compartilhamento, economia de plataformas, economia criativa, das quais derivam todo um discurso neoliberal de startups, são alimentadas e alimentam essa recursividade simbólica cristalizando formas de trabalho não-remuneradas economicamente (o chamado “free work”), toda forma de precarização e o estabelecimento de classes de freelancers, nos mais diversos nichos de trabalho. As argumentações ideológicas de liberdade, lucro direto, horário flexível, ausência de patrão e outros aparecem como reforço final numa nova estrutura cujos reflexos opressivos são patentes.

A emergência de uma solução coletiva, por seu turno, não parece nascer com a mesma força de outras formas históricas de aglomeração de trabalhadores realizadas no passado. Já se conjectura a existência de uma “solidariedade fraca” na associação de trabalhadores de plataformas digitais, que atingem amplos ramos de trabalho físico, cognitivo, de serviços – para além das reações mais robustas dos setores de entrega no Brasil e no Mundo [5].

Essa “economia da aposta”, na qual todos jogam e pouquíssimos ganham, parece não encontrar um limite cognitivo, ideológico ou físico ao nível do sujeito individual – sendo seu potencial de predação ostensivo e fatal. É a conformação e vitória dos simulacros de Jean Baudrillard [6] que desfaz a lógica funcional e simbólica da estrutura básica de apropriação para instaurar uma irrealidade, na qual não há mais sujeitos (autores), mas entes plenamente apropriados, em todas as suas nuances. 

Notas:

[1] DANAHER, John. Automation and Utopia – Human Flourishing in a World without Work. London England: Harvard University Press, 2019.

[2] CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora, 2016.

[3] ZUBOFF, Shoshana. In The Age Of The Smart Machine: The Future Of Work And Power. Basic Books, New York, 1989.

[4] ______. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. PublicAffairs: New York, 2020.

[5] RISI, Elisabetta; BRIZIARELLI, Marco; ARMANO, Emiliana. Crowdsourcing platforms as devices to activate subjectivities – narratives on digital precarity and freelance knowledge workers. Participazione e conflito, Issue 12(3), p. 767-793, novembro, 2019. DOI: 10.1285/i20356609v12i3p767

[6] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’água, 1991.

Institucional

Compartilhe

Posts relacionados