Um novo governo se inicia, um novo capítulo de esperança no país. Após quatro anos de retrocessos, especialmente no que diz respeito à defesa de direitos fundamentais, o Brasil ingressa num período em que podemos finalmente falar em democracia, participação social, defesa de direitos humanos, inclusão, diversidade, entre diversos outros termos que foram esquecidos pela última gestão. Entretanto, ainda não estamos totalmente a salvo de desafios e problemas no que diz respeito à pauta dos direitos digitais. Esta parece ganhar algum destaque principalmente após o ataque ocorrido em Brasília em 8 de janeiro, o que nos mostra que é preciso estar atento e forte para os desafios regulatórios que se apresentam.

 

Regulação de plataformas

O tema da regulação das plataformas de Internet vem chamando a atenção desde as eleições de 2018, quando as redes sociais serviços de mensageria privada foram usadas pelos representantes da extrema direita para a disseminação em massa de conteúdos que induziram os eleitores à desinformação. Na ocasião, bem como em eventos posteriores, evidenciou-se a necessidade premente de se regular os serviços das plataformas digitais, como redes sociais, serviços de mensageria privada e mecanismos de busca, a fim de que fossem introduzidas novas obrigações e, por consequência, novas responsabilidades às empresas detentoras dos serviços.

No ano de 2020, foi protocolado no Senado o PL 2630, que, inicialmente, seria uma tentativa de mitigar os riscos do uso das plataformas digitais para disseminação de desinformação, mas que depois, ao longo do processo legislativo, foi se tornando uma lei mais geral de regulação das plataformas, contendo também algumas medidas necessárias ao combate das fake news. O PL foi aprovado no Senado mas muito debatido e modificado na Câmara dos Deputados, onde permanece no aguardo da votação do mérito.  

Como reação aos ataques às sedes dos Poderes da República em 08 de janeiro de 2023, cuja organização e disseminação se deu principalmente por meio da Internet, o atual governo passou a defender uma punição a essas empresas e ensaiou a adoção de uma medida provisória contendo dispositivos que dariam às plataformas digitais novas obrigações no que se refere a conteúdo que ataquem o Estado Democrático de Direito e ameacem a democracia, os poderes constituídos ou autoridades. Entretanto, a reação a esta medida foi extremamente negativa, por parte da sociedade civil, que chamou atenção para o fato de que instituir tais medidas via MP impediria uma participação social mais estruturada na elaboração do texto, além de jogar fora todo o acúmulo construído em torno do tema nos debates do PL 2630, que está mais amadurecido, embora algumas pontos mereçam uma maior atenção e um debate mais aprofundado.

A partir de então, o discurso do governo mudou e passou a ser de que deve aproveitar o debate já feito em torno do PL 2630, apresentando propostas que contemplem os objetivos do governo. Devemos, então aguardar o desenrolar dos próximos capítulos, a fim de 

 

Proteção de dados pessoais e a esfera penal

O uso de dados pessoais em investigações criminais tem sido objeto de uma constante batalha interpretativa, já que a Lei Geral de Proteção de Dados expressamente excetua sua aplicação para esta finalidade (art. 4º, III), mas a Constituição Federal garante, no art. 5º, LXXIX, a proteção dos dados pessoais como direito fundamental.

Em 2020, um anteprojeto de LGPD penal foi elaborado por uma Comissão de Juristas instituída pela Câmara dos Deputados para este fim. A Comissão contou com a Presidência do  Ministro do Superior Tribunal de Justiça Nefi Cordeiro e com a relatoria da Professora da Universidade de Brasília, Laura Schertel. Tinha ainda integrantes especialistas como Jaqueline de Abreu, Vladimir Aras, Danilo Doneda e Tércio Sampaio Ferraz Júnior. A proposta, entretanto, ainda não chegou a ser protocolada como projeto de lei. 

Em 2022, o Deputado Coronel Armando protocolou o PL 1515/2022 que trata da mesma matéria, mas de forma completamente diferente do tratado pelo anteprojeto da Comissão de Juristas. O PL 1515/2022 tem falhas graves, apontadas pela Coalizão Direitos na Rede em manifestação enviada ao Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, ainda no ano passado.

Além deste projeto de lei, há ainda a reforma do Código de Processo Penal, que contém uma seção dedicada à produção de provas em meios digitais. Neste campo, há uma preocupação da sociedade civil com o texto em debate, tendo em vista que ele promove uma expansão desmedida das hipóteses que autorizam medidas de retenção de dados para investigações posteriores sem a devida contrapartida ao investigado em relação a salvaguardas aos direitos fundamentais. Isso se soma ao debate sobre hacking governamental, objeto de estudo do IP.rec publicado em 2022, que revelou que todos os estados, bem como o governo federal, dispõem de ferramentas de coleta de dados de dispositivos eletrônicos e as utilizam se aproveitando deste vácuo legislativo. Portanto, é necessário que haja equilíbrio entre coleta de provas e direitos fundamentais.

Aqui também merece menção o debate sobre o uso de reconhecimento facial na segurança pública. A Coalizão Direitos na Rede vem conduzindo a campanha “Tire meu rosto da sua mira” com participação ampla da sociedade civil em âmbito nacional. A campanha chama a atenção para as falhas recorrentes, noticiadas pela mídia e referendadas por estudos científicos, do uso do reconhecimento facial nesta área, principalmente em relação ao reconhecimento de pessoas negras e transgênero, mas também pela vigilância que promove. Debate semelhante vem sendo travado em Recife, através da campanha “Sem câmera na minha cara”, em virtude da iniciativa da Prefeitura do Recife de instalar câmeras equipadas com reconhecimento facial em 108 relógios espalhados pela cidade. O IP.rec publicou carta aberta contra o projeto, com adesão de dezenas de entidades de todo o país e vem participando de diversas ações sobre a matéria, mas a Prefeitura seguiu em frente com a iniciativa, ameaçando a privacidade de cidadãos e cidadãs recifenses.

 

Inteligência artificial

A regulação de Inteligência Artificial também promete ser pauta quente em 2023 para quem trabalha com tecnologia.

Ainda em 2021, o PL 21/2020 foi aprovado na Câmara dos Deputados, com diversos problemas apontados pela sociedade civil, entre eles a pressa e, por consequência, a ausência de debates amplos com os setores interessados, além da complexidade do tema e da orientação meramente principiológica adotada pelo legislador.

Ao chegar ao Senado, o PL 21 foi apensado a diversos outros que tratavam da mesma matéria e foi criada uma Comissão de Juristas a fim de elaborar um substitutivo para o PL em questão. Após uma rodada de audiências públicas, com participação do IP.rec em duas delas, e contribuições escritas, a Comissão elaborou um texto, que foi aprovado e segue para debate em plenário. 

Entretanto, apesar de avançar em relação ao texto que saiu da Câmara dos Deputados, diversos problemas ainda foram apontados por acadêmicos e entidades da sociedade civil. A gradação de riscos sem previsão de proibições específicas,o regime de responsabilidade civil e os mecanismos de transparência são alguns pontos merecedores de destaque negativo no texto, ao passo que há avanço reconhecido na tentativa de buscar uma conciliação entre as abordagens regulatórias baseadas em riscos e em direitos, além de reconhecer que sistemas baseados em IA não são neutros e possuem vieses discriminatórios.

 

Em suma

Parece que 2023 promete ser movimentado em termos de formulação de políticas públicas para o uso de tecnologia. Por aqui, nós esperamos que esses debates sejam feitos de forma ampla, ouvindo os vários setores interessados e com base no interesse público e em evidências científicas, equalizando as necessidades regulatórias e os direitos fundamentais.

Raquel Saraiva

Presidenta e fundadora do IP.rec, é também graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestra e doutoranda em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2017). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Algoritmos e Inteligência Artificial, Privacidade e Vigilância e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada, mas também se interessa pelas discussões sobre gênero e tecnologia.

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