Em setembro deste ano, o parlamento do Reino Unido aprovou o Online Safety Act – ou Online Safety Bill (OSB), como é mais conhecido, por assim ser chamado durante sua tramitação. A lei, que agora aguarda apenas a sanção real para entrar em vigor, prevê uma série de medidas para regular discursos nocivos online e impedir que os meios digitais possam ser usados para o cometimento de crimes, abarcando desde a luta contra o terrorismo até o combate à violência de gênero. O carro chefe do projeto, no entanto, foi a proteção de crianças e adolescentes. A centralidade desta pauta nos debates políticos, midiáticos e da sociedade civil foi tamanha que quase fez parecer que o OSB tratava exclusivamente sobre o tema. E isso não foi por acaso.

A proposta legislativa aprovada prevê que as plataformas digitais sejam responsabilizadas pelos conteúdos ilegais que circulam nelas, obrigando-as a serem proativas na detecção, remoção e denúncia desses materiais. Durante os mais de cinco anos em que o projeto de lei esteve em discussão, o que se observou foi um acirrado debate em que governo, políticos e organizações de proteção infantil estiveram em um lado da arena, e as empresas de tecnologia, pesquisadores e ativistas da segurança digital estiveram do outro.

O que os defensores da lei argumentavam era que, sem um duro monitoramento do governo e dos pais sobre as comunicações das crianças, o ambiente digital seguiria sendo perigoso e tóxico para elas. A despeito da legitimidade da preocupação com a segurança de crianças e adolescentes, tal posicionamento desconsidera que os jovens também devem ter assegurados os seus direitos à privacidade e à liberdade de expressão, e que o enfraquecimento das tecnologias de segurança da comunicação coloca toda a sociedade em risco, inclusive os jovens que se busca proteger. A elevação da vigilância massiva à posição de única medida capaz de proteger as crianças no ambiente digital mostra-se reducionista e, muitas vezes, pode levar à conclusão irreal de que pessoas que não defendem o monitoramento das comunicações de crianças e adolescentes não querem protegê-los. 

O discurso da proteção infantil é um totem político poderoso, evocado em todo o mundo nos mais diversos embates, da vigilância online até a oposição à linguagem neutra. Empregada de forma mais histriônica por políticos e grupos sociais conservadores, a cartada da defesa das crianças é muitas vezes utilizada para blindar ímpetos reacionários e punitivistas, e políticas de exceção. Afinal de contas, é fácil opor-se publicamente à ideia de que as pessoas devem aceitar ter sua privacidade online suspensa, mas é mais complicado discordar de que “devemos proteger as crianças dos pedófilos nas redes, mesmo que para isso a privacidade online precise ser suspensa”.

A aderência ao argumento de que as crianças devem ser protegidas a qualquer custo vê-se de forma mais evidente na defesa ativa desse raciocínio, mas também se faz presente em sua não problematização. E isso é particularmente notável no caso da imprensa. Ao simplesmente reproduzir falas e ações que tratam a proteção infantil de forma instrumentalizada e que desempoderam as crianças, sem que a devida crítica a elas seja feita – e aqui crítica não deve ser entendida como a mera oposição, mas sim como o aprofundamento argumentativo e a abertura à contradição –, veículos e profissionais do jornalismo acabam por naturalizá-las, torná-las fatos sociais incontestáveis.

A “imparcialidade” é um dos preceitos jornalísticos mais conhecidos e definitivamente o mais utilizado para vender a credibilidade dos veículos de imprensa. A ideia de que jornalistas não devem tomar lado em seus textos e dar espaço a todas as versões dos fatos noticiados é correta em sua essência, mas escorregadia na prática. Em primeiro lugar, porque ignora que jornalistas não são seres humanos neutros sem bagagem subjetiva, e, portanto, não estão livres de serem influenciados por vieses, ideologias sociopolíticas e interesses particulares e editoriais, ainda que inconscientemente. E, em segundo lugar, porque a forma como escolhemos contar uma história, as edições que fazemos nela, o equilíbrio entre seus elementos, são tão relevantes quanto os fatos narrados em si. Se é possível contar uma mentira usando apenas verdades, é igualmente possível tomar lado mesmo dando voz a todos os envolvidos em um acontecimento. Foi isso que a cobertura midiática do Online Safety Bill mostrou.

Nas matérias sobre a aprovação da lei veiculadas em alguns dos maiores jornais ingleses, como o The Guardian, o Daily Mail e a agência de notícias Reuters, o que se observou foi uma tentativa de ouvir tanto apoiadores quanto opositores do OSB, mas isso se deu de maneira visivelmente desproporcional, em alguns veículos mais do que em outros. Em todos eles imperou a suposta imparcialidade jornalística, mas, como já apontamos, os enquadramentos dados a um acontecimento deixam transparecer os posicionamentos de quem o narra.

Se aplicamos uma métrica quantitativa na análise dos textos, percebemos que mais parágrafos são dedicados à exposição das visões do governo, de políticos e de organizações de proteção infantil favoráveis à lei. No trato desses enunciadores também foi bastante aplicado o que chamamos de “jornalismo declaratório”, nome dado à reprodução acrítica das falas de fontes, muitas vezes com destaque, fazendo parecer que aquele é o posicionamento oficial do texto ou um fato consumado. Este foi o caso de uma matéria publicada pelo The Guardian que reporta a oposição de um grupo de sobreviventes de abuso sexual online ao anúncio da Meta de que a comunicação criptografada passaria a ser o padrão do Messenger. A manchete da matéria é “Meta encryption plan will let child abusers ‘hide in the dark’, says UK campaign” [O plano de criptografia da Meta permitirá que abusadores de crianças ‘se escondam no escuro’, diz campanha do Reino Unido]. Essa citação direta no título, sem que o jornal traga junto a ela qualquer apontamento crítico, funciona como um endosso a tal declaração, sobretudo numa época em que tantas pessoas estão habituadas a simplesmente lerem as manchetes que rolam nos feeds das plataformas digitais. Além disso, a imagem mental produzida pela expressão destacada “se escondam no escuro” remete tanto à atuação de bandidos quanto aos monstros que assombram as crianças, redobrando o tom temeroso da frase.

As falas reproduzidas nesse e em outros textos levantados recaem em um argumento conhecido como “going dark”, ou “obscurecimento”, a ideia de que a criptografia seria um empecilho na condução de investigações criminais, e por essa razão acabaria sendo adotada por criminosos. Esse raciocínio é visível também em uma carta enviada por sobreviventes de abuso sexual infantil à executivos do setor de tecnologia. Ela foi noticiada pelo Daily Mail e alguns trechos foram repetidos na matéria. Este é um deles: “The pursuit of end-to-end encryption without safeguards will mean offenders can contact, groom and abuse children behind closed doors. In the future, it will be a new technology that puts children at risk. We must not continue down this path” [A busca pela criptografia de ponta a ponta sem salvaguardas significará que os agressores poderão contatar, aliciar e abusar de crianças a portas fechadas. No futuro, será uma nova tecnologia que colocará as crianças em risco. Não devemos continuar nesse caminho].

Na noticiação de acontecimentos, é comum que a imprensa adote o governo como fonte oficial dos fatos. Isso é especialmente notado quando a pauta em questão é a segurança pública, onde os veículos jornalísticos acabam endossando soluções governamentais simplistas mais baseada no alarmismo diante de episódios violentos do que na cientificidade.  O “punitivismo midiático”, que também pinta com frequência cenários de caos social e prescreve soluções duras, elege inimigos da sociedade sobre os quais recairá todo o ônus de problemas sociais complexos. 

Isso também está presente na cobertura dos fatos relacionados à criptografia, sobretudo quando aponta-se o seu papel na condução de investigações. O discurso do “going dark”, produzido e disseminado por agentes de forças investigativas, e adotado sem resistência pela imprensa massiva, é permeado por menções a “bad guys” [caras maus]. São eles os responsáveis por ameaçar a sociedade através do anonimato na internet. São eles que ameaçam as nossas crianças. Certo? Não completamente.

Nenhuma das reportagens analisadas para a produção deste texto menciona que a maior parte dos abusos sexuais acontecem dentro de casa, praticados por pais e responsáveis. Tampouco apontam que, em vários países do mundo,  as ordens de vigilância de telecomunicações motivadas por investigações de abuso e exploração sexual infantil representam uma pequena parcela do total de solicitações. De forma geral, existe uma falta de dados sobre o real impacto da criptografia nas investigações de crimes. Ela é costumeiramente apontada como um impeditivo, mas sem qualquer indicativo factual dessa alegação. Ao invés disso, elencam-se casos chocantes que só puderam ser solucionados através do acesso à informações encriptadas.

É fundamental que sociedade, governos, pesquisadores e empresas de tecnologia engajem-se nas discussões sobre a proteção de jovens nos ambientes digitais. E as crianças e adolescentes precisam fazer parte desse debate ativamente, devem ter suas opiniões e particularidades levadas em conta. Apenas com discussões qualificadas orientadas pela concretização de todos os direitos humanos – ou com a devida justificativa, necessidade e proporcionalidade para a supressão de alguns deles – será possível estabelecer espaços online e offline seguros para a juventude. Não foi isso que o Online Safety Bill fez, tampouco a mídia em sua cobertura. Em seu lugar, o que ocorreu foi a repetição dos lugares comuns que bradam que é necessário ter meios para quebrar ou contornar a criptografia para frear a ação de criminosos. Mais do que isso: observou-se um paternalismo sedento por cercear a privacidade e o livre desenvolvimento da subjetividade das crianças e adolescentes. 

O OSB pouco faz para conter as ameaças às crianças. Na verdade, ele prevê a criação de vulnerabilidades tecnológicas que, caso exploradas por pessoas mal intencionadas, poderiam expor os jovens a riscos ainda maiores. A lei vai de encontro às melhores práticas de proteção online apontadas por especialistas, como  o “privacy by design”. A decisão de abrir mais vulnerabilidades do que promover ambientes digitais seguros, na verdade, está perfeitamente alinhada com um mercado globalizado de hacking governamental e de serviços de monitoramento das crianças pelos pais.

O discurso da proteção infantil empregado na discussão do OSB, na verdade, foi a máscara adotada para aprovar uma série de medidas que buscam promover vigilância em larga escala no Reino Unido. Nesse processo, uma fala de Michelle Donelan, Secretária de Tecnologia do país, foi repetida à exaustão: “The Online Safety Bill is a game-changing piece of legislation. Today, this government is taking an enormous step forward in our mission to make the UK the safest place in the world to be online” [O Online Safety Bill é uma peça legislativa que muda o jogo. Hoje, este governo está dando um enorme passo à frente em nossa missão de tornar o Reino Unido o lugar mais seguro do mundo para se estar online]. As justificativas para a quebra da privacidade sempre podem ser alargadas, a depender dos objetivos de decisores políticos, dos agentes das forças da lei e dos ventos vigilantistas que agitam a sociedade, o que abre espaço para o autoritarismo. Portanto, é fundamental questionar até onde o Reino Unido estaria disposto a ir para tornar-se o lugar “mais seguro do mundo para se estar online”, sabendo-se o custo violento da segurança no mundo contemporâneo.

Após a aprovação do OSB, veio a público o interesse de membros do Partido Conservador de usar as fotografias das mais de 45 milhões de pessoas constantes no banco de dados de passaportes do Reino Unido para identificar suspeitos de crimes. Esses registros seriam interligados com os sistemas de câmeras ao vivo para promover verdadeiras buscas a bandidos em tempo real. Tal proposta, que pode ter mais de demagogia do que de realidade prática, representa uma nova fronteira da vigilância massificada a ser ultrapassada. O primeiro passo foi dado em defesa das crianças, o próximo será contra imigrantes perigosos. E a imprensa tratará de cobri-lo com menos consternação do que quando noticia a eliminação da Inglaterra da Copa do Mundo.

Pedro Lourenço

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, na linha de Mídia, Linguagens e Processos Sociopolíticos. Graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Pernambuco. Atuou em agências de comunicação e no midiativismo. Tem interesse pelo estudo da segurança pública e do empoderamento midiático e tecnológico cidadão. Atua na área de Privacidade e Vigilância no IP.rec, integrando o ObCrypto.

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