Recentemente, o lançamento do jogo The Last of Us II passou por uma grande problemática. A atriz Laura Bailey, responsável pela voz da personagem Abby, uma mercenária no jogo, foi a público reportar que estava sendo ameaçada de morte e recebendo agressões machistas por fãs do jogo. Segundo ela, isso vinha do fato de que Abby havia cometido algo no jogo (que não será revelado para não gerar spoilers) que não agradou algumas pessoas. 

A atriz afirmou que teve que vir a público uma vez que não aguentava mais ter que lidar com isso. Imagina ter que sofrer agressões por algo que uma personagem que você interpretou cometeu em uma obra de ficção? 

As problemáticas que envolvem o jogo não param por aí. Os fãs de The Last of Us já vêm reclamando de várias situações dentro da construção da narrativa, especialmente do ponto de vista simbólico: o jogo traz uma personagem que não é estereotipada e sexualizada, como muitas personagens femininas de franquias dos mais diversos gêneros de jogos. Pelo contrário, Abby possui um corpo bastante musculoso, o que não agradou parte do público masculino. Outro ponto de discordância da “comunidade gamer” foi o fato do jogo ter personagens LGBTQ+ (como é o caso de Ellie) e trans.

A escolha das narrativas simbólicas por parte dos desenvolvedores gerou várias avaliações negativas do jogo. Contudo, a equipe de The Last of Us foi firme ao afirmar não compactuar com toda essa disseminação de ódio que está havendo tanto para o time, quanto para o elenco. Quanto ao caso “Abby”, importa lembrar que a atriz Laura Bailey não foi responsável pela criação da história, muito menos das ações de Abby , ela apenas a interpretou conforme o roteiro, a direção de cena e todo um aparato equivalente à construção de um filme.

Se procurarmos na Internet, podemos achar que essa não foi a primeira vez que algo tão irracional aconteceu. A atriz Anna Gunn, que interpreta Skyler White em Breaking Bad, também sofreu diversas ameaças por algo que sua personagem fez. Segundo a mesma, a maioria das ameaças partiram do fato de que interpretava uma mulher que “não se conformava a um ideal confortável da ‘mulher arquetípica’”.

A estrutura de violência que confunde o véu da ficção com a realidade (personagens e atores) também se reproduz na realidade brasileira, especialmente no ambiente das telenovelas. Os jornais e revistas de entretenimento costumam relatar casos, majoritariamente de atrizes, que sofreram ameaças pelos papéis que exerciam em determinado momento. 

O que se pode perceber é que grande parte desse ódio parte de fãs, normalmente homens e héteros, e é direcionado a mulheres. Trata-se, como se vê, de uma estrutura que não é inerente ao ambiente da Internet, nem dos jogos, mas neles se reproduz, dando tentáculos aos aspectos mais danosos de uma ideologia machista. 

Isso não é, entretanto, novidade para nenhuma mulher que esteja minimamente relacionada com a indústria de jogos, tanto como consumidora quanto como criadora. É quase impossível achar uma mulher que não tenha sofrido algum tipo de violência online e, por isso, muitas delas tendem a se esconder em “nicks” e avatares masculinos. Um estudo feito em 2016 pela Universidade Estadual de Ohio relatou que, das 293 mulheres entrevistadas, todas relataram que já teriam sofrido assédio nos jogos. 

E não só isso: também há jogos que perpetuam esses hábitos machistas, como é o caso dos que reproduzem a ideia da mulher como a eterna “donzela em perigo”, por exemplo em Mario e Donkey Kong, e os que objetificam as mulheres, como Grand Theft Auto (GTA), onde as mulheres só são representadas como prostitutas e hiper sexualizadas, e Rape Day, no qual o objetivo do jogo é assediar, matar e estuprar mulheres.

Apesar de ser uma prática rotineira, infelizmente ainda não há quase nenhum tipo de punição para quem pratica essas condutas. A indústria dos jogos ainda é considerada “coisa de menino”, o que faz com que os pleitos femininos não sejam substancialmente levados em consideração. Isso ocorre apesar de dados como o da pesquisa Game Brasil 2020 mostrarem que, atualmente, no país, a porcentagem de mulheres que jogam é maior que a de homens, representando 53,8%. 

Segundo a pesquisa Developer Satisfaction Survey 2017, da IGDA, a quantidade de mulheres que trabalha na área de desenvolvimento de jogos é apenas de 21%, em contraponto com os 74% de homens. Além disso, 81% desses homens se identificaram como heterossexuais.

Ou seja, toda a imagem de mulheres criada nos jogos é fruto desses desenvolvedores, o que demonstra que não há uma diversidade de visões e, por isso, antigos (e errôneos) “valores” machistas continuam se perpetuando. De acordo com o artigo “Violência de Gênero nos Jogos”, “é possível compreender melhor como estereótipos sexuais definidos com base em relações de gênero desiguais ainda estão muito presentes, principalmente quando servem para exaltar as fantasias masculinas que dominam a área”.

A ideia de “comunidade gamer” parece, assim, cair por terra. De um lado, a instauração de disputas políticas sobre as narrativas dos produtos e imagens dessa “comunidade” mostram que ela não está alheia às estruturas gerais de violência social, como o machismo, o racismo ou a lgbtfobia. De outro lado, há uma falácia material entre uma filosofia de comunitarismo (como oposição ao individualismo e defesa do bem comum e social) que é pregada na história dessa comunidade e nas práticas dos seus componentes.

Pesa na balança, portanto, o repensar dos espaços masculinos, com o objetivo de desalojar e produzir novos papéis sociais para jovens meninos e homens adultos que perpetuam práticas machistas, de assédio na Internet e nos jogos, mas falta o empoderamento da mulher nesse ambiente. A afirmação é assertiva e envolve o incômodo de alterar o status quo, como relatado por Chimamanda Ngozi Adichie, falando não apenas sobre o problema dos direitos humanos, mas tratando da experiência específica do ser feminino nas mais diversas ambiências.

Esse empoderamento virá através da imposição dos interesses das mulheres dentro do ambiente dos jogos, que gerará, como consequência, o aumento da visibilidade feminina e da preocupação de vários desenvolvedores para valorizar sua participação. 

Um exemplo disso é o caso do jogo Mortal Kombat 11, onde foram ouvidos os pleitos das mulheres sobre personagens femininas extremamente sexualizadas  e o design feminino foi modificado e ficou mais realista. Além disso, vários jogos vêm sendo criados com o intuito de protagonizar as mulheres e há, inclusive, plataformas em que existe uma tag denominada “protagonismo feminino”, como é o caso da Steam.

Ademais, é preciso valorizar a indústria que não reproduz tais valores de poder masculino e objetificação feminina. Esse é o caso do jogo Life is Strange, onde a personagem principal é uma garota bissexual, do Beyond: Two Souls, onde uma garota que nasce conectada a uma entidade com poderes e precisa descobrir a verdade sobre si mesma, e do próprio The Last of Us

Também é preciso que haja uma diversificação das pessoas que trabalham na área de jogos. Como visto, ainda há um valor bastante baixo de mulheres nessa área e, analisando os questionários passados do Developers Satisfaction Survey, é possível perceber que esse valor ainda está estagnado. Com a crescente inclusão de mulheres, será possível mitigar essas narrativas sexistas e violentas.

Portanto, apesar do ambiente ainda ser extremamente hostil, aos poucos as mulheres vêm conquistando o seu local nesses espaços virtuais, pleiteando por respeito aos seus direitos e destruição de conceitos machistas e segregacionistas. É preciso trazer o debate à tona para demonstrar que a comunidade gamer é também local para mulheres e que os antigos costumes não serão mais tratados como algo dito “normal”.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.


Isabela Inês Bernardino

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