Pela primeira vez a temática referente ao “multissetorialismo” aparece em um texto legal de forma expressa. Apesar de apontar o conceito de modo vago, ambienta o debate, para além da governança da internet, junto aos chamados setores de alto nível, quais sejam: governo, academia, setor privado e sociedade civil organizada.

A disposição de uma “instância técnica multissetorial” (art. 2º, II), é um avanço redacional explícito, se comparado ao próprio Marco Civil da Internet, lei geral de direitos da Internet no Brasil (Lei 12.965/14), que, ao evitar mencionar explicitamente o conceito, descamba para a definição genérica: “mecanismos de governança multiparticipativa, transparente, colaborativa e democrática, com a participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica” (MCI, art. 24, I).

A questão que fica em aberto está ligada a um problema jurídico eterno, dividido em duas partes: (a) o texto da lei, quando interpretado, está de acordo com os princípios que ele aponta como norte do novo sistema de gestão/governança criado? (b) a norma posta se converte em eficácia social? — o que no caso levaria a produção normativa a partir de uma perspectiva multissetorial.

De acordo com o Decreto, a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital — E-Digital, seria o sumo do Sistema Nacional para a Transformação Digital — SinDigital. Dessa forma, temos que a E-Digital deverá ser criada ao redor do esqueleto (“eixos habilitadores”) posto no art. 1º, §2º — que versam desde a infraestrutura das TICs, no âmbito dos setores envolvidos (ou seja, não só a preocupação com a sociedade civil ou mercado), até processos de capacitação e projeção nas instâncias internacionais da governança

Ocorre que a E-Digital estará a cargo de uma estrutura guarda-chuva, que é o próprio SinDigital, e que, por sua vez, é composto de: 1) I- Comitê Interministerial para a Transformação Digital — CITDigital, composto por representantes do Poder Público federal, nos termos do art. 5º; 2) instância técnica multissetorial para a transformação digital, composta por especialistas e pessoas de notório saber representantes da comunidade científica, da sociedade civil e do setor produtivo; 3) demais órgãos, entidades e instâncias vinculados às políticas de transformação digital.

As competências para gestão do SinDigital, por outro lado, não estão distribuídas entre esses 3 grupos postos acima, mas, concentrada pelo Comitê (CITDigital), que é composto de representantes dos Ministérios do Poder Executivo.

A expressão máxima do poder da nossa instância está exposta no parágrafo único do art. 4º, quando está dito: “Caberá ao CITDigital deliberar acerca da instituição da instância técnica multissetorial referida no inciso II do art. 2º, com a finalidade de propiciar o permanente diálogo e articulação entre o Poder Público e representantes da comunidade científica, do setor produtivo e da sociedade civil, no que se refere à avaliação, implantação e atualização da E-Digital”.

A concentração da competência para instituir a instância multissetorial e um Comitê composto apenas por um setor de alto nível, no caso representantes do Executivo Nacional, aponta para o sentido específico que se dará ao “permanente diálogo e articulação” pretendido pelo Poder Público e demais setores. É o jogo de diálogo entre iguais, no qual o Estado se alheia da sala para decidir tudo a portas fechadas.

Isso se deve ao fato de que o modelo/técnica multissetorial, para sua cabal implementação, não demanda apenas a presença de diversos setores (não entraremos na discussão sobre a presença apenas dos 4 setores principais), mas a possibilidade efetiva de intervenção em fala e deliberação.

Tal fato é verdade em concepções “renovadas” da técnica ou em concepções originárias, cristalizadas, por exemplo, no relatório do grupo de trabalho estabelecido na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, em 2003–05, no qual ficou consolidado o desenvolvimento e aplicação pelos governos, setor privado e sociedade civil, em seus papéis respectivos, de princípios, normas, regras e processos decisórios compartilhados na evolução e uso da Internet.

A possibilidade de “aconselhamento” perante um órgão de Estado não instaura uma esfera multissetorial, mas qualquer espécie de “conselho multiparticipativo”, no qual algumas partes apenas apresentam inputs para que um único ator efetivamente decida. Isso acontece mesmo quando levamos em conta críticas sobre a necessidade de desbastar as camadas da governança da internet, para perceber os diferentes papéis e modelos de decisão necessários para aumento de eficácia em cada instância, como no caso das decisões técnicas referentes à Internet, tomadas em âmbito exclusivamente privado (e isso não seria, a priori, ruim) — como apontam Laura DeNardis e Mark Raymond. Não se trata, portanto, de uma dimensão axiológica, um valor em si, mas de características conceituais claras para trabalhar com uma técnica suficientemente complexa/elástica, sem que ela se desnature em seus propósitos e percepções dos contextos nos quais é aplicada.

De acordo com a UNESCO, a Eletronic Frontier Foundation e a Internet Society, o multissetorialismo exige, na sua implementação, a possibilidade de participação dos setores (inclusão), o equilíbrio entre esses setores e a transparência nos processos deliberativos, com responsabilização (accountability).

A instanciação multissetorial demanda também a capacitação constante e mútua dos setores para discussões efetivas que convertem o estado da arte científico em norma jurídica e política pública, ao tempo em que educa os participantes de uma esfera de governança que se amplia a todo instante. Nesse sentido é que a dinâmica multissetorial se apresenta como democracia pela tecnologia.

Da forma como posta, a Estratégia Brasileira para Transformação Digital entra em confronto com o próprio Marco Civil da Internet e sua definição genérica sobre governança multissetorial (“multiparticipativa”), imposta, por Lei, como diretriz a todas as esferas do Estado. A dissociação é, ao mesmo tempo, convexa, no plano internacional, e côncava, no plano do direito interno.

O dilema também soçobra diante da emergência de tantas estruturas organizacionais no âmbito do Executivo que, prima facie, avocam competência posta por Lei e, construídas no âmbito da comunidade, a estruturas multissetoriais já consagradas — mesmo que passíveis de aperfeiçoamento — como o caso do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br).

O caso mais gritante está na alteração implementada no art. 12 do Decreto, reformulando a redação e competência do “Departamento de Políticas para a Transformação Digital”, descrito no Decreto 8877/2016, cuja interpretação da “coordenação” do CGI.Br pelo representante do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) aponta para a desnaturação do princípio basilar de igualdade, sobre o qual repousa a técnica de decisão multissetorial — que, como treinamento e educação para a decisão, também é um leap of faith do campo da cultura.

O fator de eficácia das políticas produzidas por tal estrutura, em primeira análise, podem ganhar força pela promoção do poderio do Executivo, mas não pela democratização da discussão das diretrizes da Internet no Brasil, o que, em última análise, é sintoma de regresso.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.


Paulo Tavares

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