Algo que não se pode dizer de João Doria é que não há agitação no seu entorno. E muitas vezes, o agito se torna sinônimo de dor de cabeça. Hoje, 23 de outubro de 2018, a Internet foi inundada com compartilhamentos e comentários sobre um vídeo, no qual um homem branco, que alegam ser Doria, aparece mantendo relações sexuais com várias mulheres. O vídeo tem uma marca de data referente ao começo do mês.

Críticas não faltam à gestão Doria, mas é preciso alertar sempre para o efeito nefasto do uso das tecnologias da informação e comunicação (não apenas a Internet) na tarefa de disseminar conteúdo íntimo de qualquer pessoa. Não quero falar aqui das coisas que aprendi com a chamada “Lei Carolina Dieckmann”.

Vou me empenhar em breves observações: a primeira é que a lei mencionada atribui status de crime quando tipifica não apenas a invasão de dispositivos informáticos, estejam eles conectados à Internet ou não, como, também, elenca uma tipologia ampla (“obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades” e “produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput”). Assim sendo, dada as largas categorias da norma, não se aconselha receber, compartilhar e manter arquivos desse quilate.

Mas é uma segunda coisa que chama a minha atenção, de ordem mais profunda e teórica: há algo de epifânico na remoção das cortinas que separam o público e o privado, especialmente quando a sociedade está em clima adversarial.

A mim parece existir uma força de denúncia que opera sobre a performance de um homem público que, por seu turno, sustenta valores tradicionais e, contraditoriamente, ataca esse conjunto de crenças com a força pujante do sexo. Aqui temos dois caminhos: os que acreditam na hipocrisia do atual Prefeito de São Paulo e candidato nestas eleições; os que, compartilhando os valores do Prefeito Doria, vão (1) condená-lo publicamente, (2) silenciar sobre o tema e/ou (3) admitir e simpatizar, na esfera íntima, com a atitude do “homem de bem, hetero e viril”. Esse é um debate político, que é importante, mas também não me interessa apontar agora.

O cerne da questão é uma socioantropologia do sexo no ambiente virtual: essa é a questão que revolve meus pensamentos. É que o elemento de epifânia, de sentimento supremo, de denúncia contra o conservador em postura dissimulada (isso se considerarmos a veracidade do vídeo, a sua comprovação como dado histórico) se torna sempre mais forte com a nudez do sexo — assim como a agressão a uma vítima inocente, socialmente minoritária (como no caso das mulheres), também aparece com maior índice de força se o vazamento de imagens/videos for de natureza sexual. E essa força acontece sempre, destaco, marcada pelo gênero, pelos discursos de exaltação ou descrédito, a depender se for um ator ou uma atriz no imbróglio.

Que força é essa que, entre a praça pública e o jardim privado da vida de cada um de nós, se manifesta com tanta pujança quando o tema é o sexo e a sexualidade? Os amigos e amigas da psicologia talvez tenham muito a nos ensinar. Cômico, entretanto trágico, que venho afirmando a necessidade, no ambiente político brasileiro, de uma grande sessão de análise — cabendo aos psicólogos apontar o que está acontecendo com nossa sociedade hiperconectada e sua adesão às fake news.

Nadine Moawad, uma estudiosa e ativista libanesa, costuma provocar os debates sobre Internet dizendo que se fala pouco sobre sexo. Após muita pesquisa, ela assevera que o ambiente da Internet se tornou um ambiente de vigilância e hostilidade para as manifestações (naturais, friso) da sexualidade humana. O retrato da Internet como ferramenta de liberação dos desejos deu lugar a uma rede de vigilância e controle das sexualidades.

Sexo é poder. O estranho episódio recente do Prefeito Doria comprova, mais uma vez, a conclusão de Nadine Moawad de que o controle do fluxo de informações “danosas”, relativas à sexualidade, pode ser mais perigoso do que sua liberação ou regulação. O controle do sexo e de suas imagens (num sentido semiótico do termo) é justificado como proteção aos menores, àqueles sem completa formação humana para diferenciar, de forma saudável, o “certo” do “errado”.

O controle de um poder resulta na potencialização desse poder, agora concentrado nas mãos de poucos. O controle do relato sobre o sexo e sobre a sexualidade é o controle sobre a vida das pessoas e, levando em conta o discurso oficial de restrição de dados, o controle sobre a vida das juventudes.

Aqui concluo, dando forma à minha inquietação: o quanto a pulsão de compartilhar, analisar, ver-com-os-próprios-olhos vídeos relativo às práticas sexuais das pessoas constitui uma força motriz de colonização das nossas vidas, agendas e corpos? Mesmo quando se compartilha a incoerência desprezível de um homem público, cujo projeto de poder envolve a diminuição do espaço da vida de outras pessoas.

Há espaço de desenvolvimento das personalidades tidas-como-desviantes, como gays, lésbicas, mulheres (e todos aqueles que relacionam estereótipo, preconceito e fetiches) numa sociedade que cerceia e controla o fluxo de informações sobre o sexo? Qual o contorno da “normalidade” num tecido social que projeta sobre o virtual uma tendência não trabalhada quanto ao sexo tabu?

Uma coisa é certa: nenhum controle pode existir sobre essas imagens, sem ter como antítese a ruptura momentânea da norma, da prática, do costume que faz pesar o silêncio sobre o sexo.

E, por último e mais angustiante: entre controle/vigilância e ruptura, com o recolhimento da cortina que separa o público do privado, serão expostas as vidas (estigmatizadas pelo tabu) de uma juventude que constrói sua identidade majoritariamente pela rede mundial de computadores. Não falar sobre isso não parece ser um bom caminho.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.

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