O sharenting é uma prática que vem se tornando cada vez mais rotineira na vida dos pais e responsáveis ao redor do mundo. O termo surge a partir da junção das palavras inglesas share e parenting, que significam, respectivamente, o ato de compartilhar e o de ser pai ou mãe. Seria a prática de, frequentemente, divulgar conteúdos nas redes sociais sobre o seu filho, tais como fotos, notícias, vídeos, documentos, entre outros. Assim, com o nascimento do filho (ou até mesmo antes), muitos pais veem as redes sociais como uma forma de exaltar sua parentalidade, demonstrando como seu filho está crescendo de maneira saudável e como eles são bons pais aos olhos da sociedade.

Tudo isso é um reflexo da nova cultura global de superexposição na Internet. Houve uma mudança de paradigmas, partindo de uma perspectiva de pessoas que escondem seus segredos, como em diários cheios de cadeados, para um padrão no qual o correto é que haja a divulgação, através de diversas plataformas, sobre o nosso dia-a-dia e nossos pensamentos, conforme é dito por Paula Sibilia, em seu livro “O Show do Eu”. Por isso, atualmente, as pessoas estão cada vez almejando atingir o patamar de “celebridade digital” ou “digital influencer”, tornando-se famosas nas redes sociais, com diversos seguidores no âmbito nacional ou até internacional e faturando com isso. 

Em 2020, a Forbes anunciou quais eram os youtubers mais bem pagos no mundo. Em primeiro lugar, faturando cerca de US $29,5 milhões, está Ryan Kaji, uma criança de apenas 9 anos que faz avaliações de brinquedos em seu canal no YouTube. Ele e muitas outras crianças e adolescentes, atualmente, vêm sendo protagonistas de uma grande mudança entre os hábitos infantis, em que deixaram de ser meros espectadores dos conteúdos na Internet, para se tornarem criadores deles. Os pais, por sua vez, também começaram a perceber que todas essas informações infantis e notoriedade geram lucros altíssimos e, por isso, tornaram-se agentes de seus próprios filhos. Assim, pode-se perceber a criação de uma nova forma de trabalho extremamente lucrativa, que vem a ser objeto de inspiração de milhares de pessoas ao redor do mundo, sendo uma das principais as crianças e gerando uma mudança de desejos entre os jovens nos últimos anos.

Nas palavras de Richard Schechner, a vida começou a virar um comércio, onde tudo que fazemos traz um retorno financeiro. Isso, contudo, reflete na vida das crianças, que, com o trabalho precoce, podem vir a sofrer com certas consequências quanto à própria forma que enxergam a sua realidade e a vida. Tudo o que antes significava práticas comuns na vida da criança (como brincar, receber presentes, viajar), passou a ser monetizado para um mercado voltado para o consumo dessas realidades. Por isso, instalou-se uma crença nas crianças de que, para ter sucesso na vida, o importante é ser reconhecido na Internet, criando-se uma concepção de que a pessoa só atinge o sucesso se conseguir acumular milhões de likes e seguidores em suas redes sociais.

Todas essas questões trazem à tona a problemática acerca de como estão sendo criadas as representações de infância e juventude na atual sociedade. Por exemplo, com as novas inspirações digitais, alguns fenômenos peculiares começaram a acontecer. Houve um aumento, por exemplo, na procura por cirurgias plásticas entre os jovens, para que possam atingir uma beleza similar a um filtro de Instagram, o que ficou conhecido como “dismorfia de Snapchat”. Há, portanto, uma pressão social sendo criada em cima das crianças para que elas consigam atingir determinados patamares. É muito comum encontrar diversos perfis na Internet criados pelos pais para compartilhar conteúdos dos filhos e ver se conseguem ganhar alguma fama. Inclusive, já há uma gama de empresas voltadas para “cursos de youtuber”, onde as crianças aprendem como angariar fama, ser notado na Internet e, principalmente, rentabilizar o canal.

É importante lembrar, inclusive, que a plataforma do YouTube, principal veículo utilizado pela juventude, requer que os usuários tenham mais de 13 anos para administrar seu próprio canal. Caso contrário, é necessário que a conta fique em nome dos seus responsáveis. Além disso, o ECA, em seu artigo 60, afirma que qualquer forma de trabalho antes dos 14 anos de idade é completamente proibida e, até os 18 anos, só pode se dar nas condições de menor aprendiz. Todavia, em nosso ordenamento jurídico não há regulamento específico acerca do trabalho dessas crianças em plataformas digitais, como celebridades ou influenciadoras, por exemplo.

Entretanto, esse não é o padrão que é visto atualmente. Assim como Ryan Kaji, muitas crianças começam desde cedo a performar vídeos na Internet. Há situações em que as crianças sequer chegaram a nascer e já são alvo de exposição por parte dos pais, como é o caso do filho da celebridade Pyong Lee, que antes mesmo de nascer já tinha suas imagens no útero da mãe sendo compartilhados e seu perfil já contava com milhões de seguidores. 

Ainda mais preocupante foi uma pesquisa feita por Anna Brosch, com 168 pais e mães, onde se constatou que 90.5% dos pais já revelaram online o nome da criança, 83.9% já revelaram a data de seu nascimento e 23.2% já colocaram todas essas informações de maneira pública, com possibilidade de qualquer um ver. Ainda mais espantosa foi a porcentagem de 32,7% desses pais que admitiram que já publicaram documentos pessoais das crianças, como sua certidão de nascimento, diplomas da escola, entre outros. 

Assim, temos uma juventude pautada na superexposição iniciada por elas ou pelos seus representantes e alimentadas pelos padrões impostos na Internet. Aos olhos de muitos, tudo isso é apenas uma forma de garantir um futuro para as crianças, uma vez que a fama trará estabilidade financeira. Contudo, os pais precisam se preocupar com a preservação das imagens de seus filhos. Apesar de não ser a intenção dos pais colocar seus filhos em perigo, é possível identificar comportamentos que podem permitir danos futuros para os mesmos.

Diante de tanta exposição, os pais devem questionar acerca da privacidade, da dignidade e da imagem dos filhos como uma forma de colocar em prioridade o melhor interesse da criança. Este é o princípio que norteia todos os direitos e deveres de toda a sociedade perante as crianças e adolescentes. No artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.

No artigo 4º, fala-se que as crianças possuem prioridade absoluta diante da família, da sociedade, da comunidade e do poder público, de modo que seus direitos devem ser integralmente respeitados sob pena de punição conforme a lei, por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais. 

Os responsáveis possuem a obrigação de assistir ao filho, criando-o e educando-o, bem como garantindo o respeito a todos os seus direitos e a um desenvolvimento pleno e saudável. Portanto, detentores do poder constitucional, os pais precisam zelar da melhor forma possível para que a criança possa ter um ambiente saudável para o seu crescimento. Isso, por sua vez, também se aplica ao âmbito digital. A partir do momento em que eles divulgam informações e detalhes sobre a vida das crianças e adolescentes, pode gerar um impacto ao desenvolvimento físico e psíquico da criança.

Aliás, esse impacto não precisa ser instantâneo. Quando falamos sobre o melhor interesse da criança, este zela tanto pelas ações do presente quanto como essas ações podem se repercutir no futuro. Quando um pai publica ou usa a criança como fonte de renda na Internet, todo aquele conteúdo produzido pode vir a trazer repercussões futuras para essa criança, seja ela boa ou ruim. Um exemplo simples disso são pequenas celebridades atualmente conhecidas, tais como a Mc Melody, que há um tempo virou polêmica. Se essa criança, no futuro, quando já for adulta, afirmar que, agora que possui melhor discernimento, percebeu que nunca gostaria de ter passado por aquela situação ou que não quer ser relembrada por aquelas imagens antigas, haverá forma de reverter isso?

A resposta, em quase totalidade das vezes, será não. Como é reconhecido, a Internet é um local onde as informações são adicionadas, mas dificilmente conseguem ser apagadas. Tudo que cai nesse âmbito digital fica para sempre lá, independentemente dos esforços das autoridades governamentais. O máximo que se pode fazer é evitar que aquele conteúdo seja achado, contudo não há como evitar que outras pessoas consigam colocá-lo em circulação novamente.

Apesar de poder pleitear pelo chamado “direito ao esquecimento”, não é certeza que isso irá mitigar todos os efeitos negativos que aquilo possa vir a causar ou ter causado. Por isso, é necessário extrema cautela na hora de publicar informações pessoais sobre essas crianças e adolescentes, pois a sua imagem e informações podem vir a assombrá-las no futuro.

Quando uma criança vem sendo usada como forma de arrecadação de dinheiro por parte de seus responsáveis, há um desrespeito a esse crescimento saudável, uma vez que a criança precisa amadurecer muito mais cedo para entender a realidade à qual se está inserida. A filmagem de crianças e adolescentes nunca irá captar a espontaneidade, pois, como já visto através de vários exemplos, elas aprendem a se comportar diante das câmeras, ou por si mesmas – vendo vídeos na internet – ou através de comandos de seus pais.

Por isso, é preciso que os pais e os responsáveis ponderem sobre se aquela superexposição afetará de forma negativa a vida desses seres em desenvolvimento. Eles não podem ser impedidos de publicar na Internet acerca das crianças e adolescentes sob sua responsabilidade, isso é também uma forma de mostrar orgulho ao desenvolvimento. Contudo, é necessário que haja prudência na hora dessas postagens, observando se aquele conteúdo pode, de certa forma, vir a violar os direitos das crianças ou trazer embaraçamento futuro.

 

Isabela Inês Bernardino de Souza Silva

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