É sempre muito corriqueiro, em debates sobre a tecnologia, a ideia de que o tempo dela é algo alheio ao tempo da sociedade; relacionam-se, mas não imbricam-se. O que parece um absurdo, está presente na prática constante dos desenhos e desenvolvimentos de produtos por todo o planeta, sendo o tempo da sociedade relegado ao papel de submissão ao tempo da tecnologia e não ao papel de relação com o tempo da mesma. Esses mencionados recortes fazem alusão ao tempo das palavras e seus fatos: assim, para uma mentalidade mais pragmática e executória, se anula a reflexão sobre a palavra para ver apenas os efeitos de determinada prática sobre a vida social, normalmente sob a desculpa de um benefício qualquer.

É preciso, portanto, falar sobre a palavra ao falarmos, especificamente, de automação. É preciso fazê-lo pelo simples motivo de que a palavra orienta comportamentos, estabelece hierarquias e padrões sobre o fenômeno da automação na sociedade. É preciso falar sobre palavras quando falamos de automação ainda mais por certo fetiche prático que envolve as reflexões mais “expressas” sobre o tema.

O ‘tempo das palavras’, normalmente, aparece como questão secundária ou mesmo como não-questão quando do debate de diversas matérias e problemas; a análise da palavra é vista como o “adorno do adorno”, ou o arabesco contraproducente numa ótica produtivista e mercantilizante da vida e do pensamento que orienta a modernidade e chega, como legado, à contemporaneidade.

No direito, por exemplo, falar sobre palavra é coisa de filósofo que não se preocupa com questões práticas, ainda que os práticos solucionem mal os seus problemas, soçobrando as externalidades negativas sobre gente de carne e osso. No campo da política, o cerceamento da discussão sobre a palavra é a porteira aberta para o gado bravo da arbitrariedade. No campo da ciência, o silêncio sobre a palavra, em perfeita imagem do paradoxo, é o início do erro.

Um exemplo de discussão sobre a palavra no campo de automação pode ser encontrado nas reflexões de Mario Losano, que demonstra, por exemplo, a relação histórica entre a atividade mecânica, como trabalho e como habilidade, e a percepção social desse trabalho: a atividade mecânica e seu conceito, sua palavra, no sentido aqui visto, já foi considerada/utilizada para indicar atividade de deleite, de exercício da fruição da maravilha do engenho, mas, e aqui estamos no contexto Clássico, não fazia parte do campo de conhecimentos intelectuais, tidos como socialmente superiores. Para as pessoas dessa época, ao menos como se reconstrói das fontes, ainda que não fazendo parte dos conhecimentos superiores do homem (e não do humano, para eles), a atividade mecânica, por sua ludicidade, tinha valor e interesse.

Esse panorama se inverte no processo de transformação paradigmática que a Europa enfrenta pelo fechamento da cadeia de valores, com a demarcação de sociedades territorialmente limitadas, axiologicamente segmentadas do Medievo. Aqui, o que resta é apenas o aspecto subordinado da atividade mecânica, fora de uma elite intelectual, que passa a ser ainda mais restrita. A atividade mecânica se confunde com atividade braçal e com isso a atividade de feitura dos autômatos, objetos de deleite dos clássicos e germe das mentalidades sobre os robôs (ainda que não sejam sua causa direta), míngua, e, com ela, minguam os estudos sobre as técnicas mecânicas e filosóficas atreladas. Losano e outros autores descrevem que se deve, como em outros momentos, à cultura oriental – árabe, em específico -, o resgate e preservação desse saber, sob a vertente clássica, com sua a reinserção na Europa próxima do Renascimento.

Aqui a virada de palavras e sua relação com os fatos retorna sob a reorientação da atividade dos mecanismos, ainda vistos como atividade subordinada, que, entretanto, passam, a um só tempo, a demandar a genética clássica do deleite de sua atividade, com íntima ligação da mecânica e da lógica, elevando o status desse saber-prática e, com isso, inicia-se o espraiamento das atividades mecânicas para além da construção dos autômatos, em instrumentos que passam a afetar a sociedade.

O mecânico, como palavra chula, dá lugar a um locus profissional que se envolve diretamente com a construção do modelo de sociedade que descamba na modernidade, contra o humanismo — este que gerou a cultura da automação. Essa evolução é explicada historicamente pelos movimentos sincrônico e diacrônico que analisam, respectivamente, o momento pontual e o translaçamento e reenlace do conceito em sua manifestação com a vida vivida.

Da palavra à palavra: a cultura humanista do deleite e da reflexão que gerou o processo de criação de “tecnologia” de autômatos e deu base ao autômato como conhecemos hoje fundamenta o novo paradigma que exclui as suas próprias premissas fundantes, favorecendo ao pensamento da utilidade, da eficácia e da produção. A análise pragmatizante exclui da nossa vista o efeito de ruptura do paradigma conceitual e comportamental do extrato do tempo: a técnica é filha do humanismo, dele se alimenta para garantir um status, e dele se aparta para criar um novo estado social, no qual o humanismo se torna descartável.

O lembrete da alteração temporal do sentido da palavra, apesar de sua manutenção na escrita (grafema), tanto no que se refere ao autômato, como no que se refere ao mecânico, se pauta no exercício de observação da evolução diacrônica do conceito na história, como dito. Esse lembrete, embasado numa metodologia histórica específica, nos lembra que, contrário ao que se vende como marketing, o tempo da palavra “automação” e o tempo de palavra “trabalho”, que está na dimensão da sociedade, e a evolução dos seus sentidos pela relação de ambos os conceitos e a prática social que eles engendram, não favorece a uma adaptação ‘suave’, ‘simples’, ‘direta’ ou qualquer estrutura semântica do tipo, quando se pensa na velocidade da automação e na adaptação do trabalho a esse processo.

A eliminação do elemento humanista do campo da mecânica do autômato, que nasce desse mesmo humanismo, e se fundamenta nele para ganhar seu papel social de prevalência, demonstra, historicamente, que a evolução diacrônica de uma dimensão e suas práticas, não carrega, necessariamente, a evolução de outra, como que por ressonância.

O tempo do trabalho, especialmente por ser grandeza sociológica, pesa mais e custa mais para alterar e mover os seus elementos conexos (econômicos, antropológicos, sociológicos — cultura, enfim), isso quando comparado ao elemento tecnológico. Some-se a esse fator que a vontade da técnica (ou seja, a tecnologia realiza aquilo que ela visualiza) anda em comunhão com a vontade econômica em seu sentido mais primal (e, talvez) brutal (redução de custos, ampliação dos lucros).

Dinâmicas de automação, portanto, não se apresentam como oportunidade de deslocamento de forças de um campo de trabalho a outro, mas do confronto direto entre as velocidades conceituais, imagéticas do conflito entre automação e trabalho, e, principalmente das práticas derivadas dessas imagens.

Em conclusão sintética: uma técnica e uma tecnologia, um logos técnico, fora do seu paradigma originário humanista, impõe uma ruptura entre o artifício da automação e a vida da sociedade, pressionando o ser humano ao limite do esgotamento e solapamento do seu tempo, que é o tempo da própria vida e existência. O sumo: a automação fora do humanismo destrói a vida humana. É o eterno conflito dos que acham que filosofias e afins são brinco fútil e que joalheria, por si, é, meramente, futilidade — confundem portanto arte, estética e ética.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.

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