No dia 22 de novembro, o substitutivo ao Projeto de Lei nº 2630/2020 (PL das fake news) foi apresentado pelo Deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), após a consideração de parecer elaborado pelo Grupo de Trabalho GTNET. É possível perceber que a redação de um dos artigos, o Art. 37, localizado nas Disposições Finais, foi alterada de: 

“Os provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada deverão ter sede e nomear representantes legais no Brasil, informações que serão disponibilizadas em seus sítios na internet, bem como manter acesso remoto, a partir do Brasil, aos seus bancos de dados, os quais conterão informações referentes aos usuários brasileiros e servirão para a guarda de conteúdos nas situações previstas em lei, especialmente para atendimento de ordens de autoridade judicial brasileira.” (destaque nosso)

para:

“Os provedores deverão manter representantes legais no Brasil, informação que será facilmente acessível em seus sítios na internet, bem como disponibilizar às autoridades brasileiras competentes, nos termos desta Lei, informações referentes aos usuários brasileiros.” (destaque nosso)

 

Abandono da “sede no Brasil”

Um dos principais problemas apontados no Voto do Relator, e que suscitou a mudança, está relacionado à criação de um significativo desincentivo, afastando investimentos estrangeiros, caso a legislação obrigasse que todos os serviços de redes sociais, ferramentas de busca e serviços de mensageria instantânea tivessem sede no país. Dessa maneira, o relatório considera que para efeitos legais, basta, portanto, que haja representação jurídica da empresa no país. 

Além disso, é importante salientar que, assim como demonstrado por Luiza Brandão e Lucas Anjos, a adoção da sede da empresa como único critério de jurisdição tem deixado inúmeros órgãos de investigação e de aplicação da lei em diversos países, também conhecidas como “law enforcement authorities – LEAs”, insatisfeitos. De acordo com os autores, especialistas como o professor Paul Berman, da George Washington Law School, enxergam de maneira negativa a utilização da sede da empresa como critério determinante único de jurisdição. Uma das maiores problemáticas identificadas é a possibilidade de forum shopping, isto é, a escolha da jurisdição mais favorável ao demandante, nas hipóteses em que haja competências internacionais concorrentes. 

 

Representação local

Um ponto que permanece no novo substitutivo, no entanto, é a escolha da “representação jurídica local”. Este requerimento não é exclusividade do Brasil. Propostas que buscam regimes jurídicos mais rígidos de responsabilização de intermediários já são realidade em lugares como a União Europeia. Projetos de lei de uma Diretiva e um Regulamento da União Europeia visam obrigar empresas de Internet com sede no estrangeiro à designação de um representante legal na UE para processamento de pedidos de dados feitos por autoridades. 

Assim, como na UE, no Brasil a questão torna-se controversa uma vez que não há discricionariedade em relação às empresas afetadas. Dessa forma, pequenas plataformas e corporações globais multibilionárias recebem o mesmo tratamento. Assim, como diversos especialistas afirmam, propostas que geram a obrigação de um representante, apesar de muitas vezes serem bem intencionadas e apresentadas como benéficas, já que proporcionam “certeza e clareza jurídicas”, na realidade, podem funcionar como uma ferramenta de manutenção de monopólios já existentes, uma vez que obrigam entidades a destinar recursos para a compreensão da legislação de um país específico. Também chamado de “corrida armamentista jurídica”, esse fenômeno pode ser percebido em outras manobras elaboradas por Estados, como, por exemplo, no caso de data localisation laws que buscam estabelecer a obrigatoriedade da localização de servidores de companhias em territórios nacionais. 

 

Disponibilização de informações

A nova redação acerta em abandonar a ideia de “acesso remoto”, entendido por diversos especialistas como um desafio aos princípios do direito internacional reconhecidos pela nossa Constituição, uma vez que há o desejo de incidência do poder jurisdicional em outra jurisdição. Além disso, a manobra representaria a quebra de princípios como a autodeterminação dos povos, não-intervenção e igualdade entre os Estados. É importante salientar que a violação de acordos já firmados contribui para um aumento da desconfiança entre Estados. 

Entretanto, outro ponto preocupante do ponto de vista jurídico, e que deve ser observado, é a exigência de acesso “às autoridades brasileiras competentes” de “informações referentes aos usuários brasileiros”. Sem estabelecer qualquer rito ou garantia processual, o dispositivo dá margem a possíveis arbitrariedades. Mesmo em países que estão buscando a elaboração de um framework para pedidos de “evidência eletrônica”, como é o caso da União Europeia e o seu The European Production and Preservation Orders for electronic evidence in criminal matters (e-Evidence), a discussão é controversa e extensa – ocorrendo desde 2018. 

Embora tenha havido algum progresso nos detalhes técnicos, a disposição para notificar as autoridades do país executor continua sendo uma questão de entrave. Em maio de 2021, um grupo de 25 ONGs se posicionou contra a proposta, em carta aberta, alertando que ela não oferece salvaguardas suficientes para os direitos fundamentais, especialmente para certas categorias, como jornalistas. Em parecer não vinculante emitido em 2019, a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (EDPS) apelou a um envolvimento mais significativo das autoridades relevantes no Estado-Membro de execução, dizendo temer que o novo sistema pudesse conduzir a abusos, uma preocupação semelhante a dos deputados que se opuseram à proposta.

 

Mas o que temos até o momento?

É esperado que grandes empresas de tecnologia busquem armazenar os seus dados em países diferentes daqueles em que operam. Seja por questões financeiras, estratégicas ou operacionais, a prática é considerada corriqueira no meio digital. Hoje, graças a mecanismos de transparência disponíveis no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados, os usuários podem obter o acesso aos seus dados e têm um relativo nível de transparência a respeito dos seus dados pessoais coletados e armazenados por essas companhias .

Desde que os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros usuários de Internet sejam respeitados, a cooperação internacional se faz essencial para a prestação jurisdicional e deve ocorrer de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro. O nosso ordenamento, por sua vez, engloba os tratados internacionais assinados pelo governo brasileiro e as legislações nacionais como os Códigos de Processo Penal e Civil e o Marco Civil, sendo o último também harmonizável aos procedimentos de cooperação internacional.

Assim, percebe-se que a proteção da soberania brasileira – e o funcionamento da Internet – depende do equilíbrio oferecido por estados-nação envolvidos no processo de cooperação. Caso o Judiciário brasileiro se afaste de tratados firmados nesta matéria, como, por exemplo, o Mutual Legal Assistance Treaty (MLAT), abrir-se-á espaço para que outros governos façam o mesmo. O MLAT é um acordo que, em conjunto com os procedimentos descritos no Código de Processo Civil e no Código de Processo Penal, estabelece a necessidade de expedição de carta rogatória para que órgão jurisdicional estrangeiro pratique ato de cooperação jurídica internacional, ou para que sejam cumpridas diligências necessárias à instrução de processo penal.

É fato que os ritos estabelecidos pelo MLAT, na forma como hoje são processados, frustram expectativas das autoridades brasileiras de acesso célere a meios de prova visto que o processo é considerado extremamente moroso nos moldes atuais. Além disso, o tema se mostra bastante controvertido. Como demonstrado por Luiza Brandão e Lucas Anjos, a “doutrina e a jurisprudência internacional” têm apontado os seguintes critérios para se determinar que um Estado tem uma conexão substancial e um legítimo interesse ao requisitar determinados dados armazenados por um provedor de aplicação estrangeiro: 

  1. Nacionalidade das vítimas e dos investigados/suspeitos;
  2. Residência habitual das vítimas e dos investigados/suspeitos;
  3. O local onde foram sentidos os efeitos do ato ou crime;
  4. Se o serviço online é direcionado ou acessível a determinado território;
  5. Localização da sede da empresa;
  6. Localização dos dados (servidores);
  7. A localização dos responsáveis pelo registro de nomes de domínio. 

Esses critérios, apesar de não exaustivos, foram elencados ao longo de cerca de 30 anos a partir de desenvolvimentos doutrinários e jurisprudenciais na Europa e EUA, desde a expansão comercial da Internet a partir dos anos 90. Além da falta de consenso, a falta de diversidade geográfica chama a atenção para as assimetrias de poder, visto que decisões consideradas como parâmetro para diversos sistemas envolvem poderosos atores que se concentram nessas jurisdições. 

 

Investindo na cooperação internacional

Conforme observam La Chapelle e Fellinger, da organização Internet & Jurisdiction, um novo caminho pode ser enxergado no conjunto de soluções além da extensão extraterritorial da sua soberania ou imposição de fronteiras nacionais na Internet. A organização acredita que a saída mais adequada seria a criação de um espaço institucional multissetorial, a nível global, permanente, que permita que representantes dos diversos grupos afetados produzam padrões e mecanismos de cooperação internacional eficientes.

A abordagem multissetorial é bastante presente na comunidade da governança da Internet, especialmente em sua camada técnica, muitas vezes buscando a padronização de tecnologias por meio da criação de “padrões universais”. Dessa forma, a I & J procura investigar “padrões processuais comuns, de forma a garantir um mínimo de interoperabilidade entre as jurisdições; e responder “como os pedidos devem ser submetidos” e “como os pedidos devem ser julgados”.”. Dessa forma, normas e procedimentos elaborados por meio de “consensos multissetoriais” seriam considerados “padrões normativos de política pública” também chamados de policy standards. A adoção desses padrões ficaria a cargo de guias de melhores práticas ou obrigações normativas em leis nacionais e tratados internacionais.

 

Assimetrias de poder como possíveis entraves

Apesar de ser uma abordagem promissora, é importante observar cautelosamente alguns pontos de possíveis entraves para o sucesso de “padrões normativos”. Para muitos estudiosos, criar espaços comuns aspiracionais, leis, regras, normas e valores é inerente à natureza humana para construir a sociedade. Visões compartilhadas podem inspirar ações compartilhadas para uma vida melhor e mais digna. Somos seres intrinsecamente orientados para o futuro. Entretanto, como demonstra a antropóloga Payal Arora, universalismos de qualquer tipo são uma faca de dois gumes. Eles vêm com o achatamento de culturas e identidades e às vezes se tornam uma rubrica paternalista para justificar a opressão de certos grupos. 

Para Arora, leis podem evocar significados diferentes entre as comunidades marginalizadas do mundo, longe da posição sacrossanta que ocupam entre muitas no Ocidente, por isso é necessário ir além. Arora nos lembra que, em 2018, apenas cinco por cento da população mundial desfrutava de uma democracia plena. Muitos governos e elites no poder, particularmente no Sul Global, elaboram leis contra seu povo para sustentar seus regimes. Esses governos autoritários governam pela lei, embora estejam acima dela. As leis nessas regiões têm uma longa história de serem moldadas por aqueles que estão no poder para preservar seus privilégios. Com séculos de colonialismo em muitos desses contextos, as regras surgiram como um meio de legitimar a exploração em nome da ordem social. 

Arora nos lembra também que os regulamentos não têm sentido sem a aplicação. E ainda assim, nos concentramos desproporcionalmente no desenho da lei e muito menos na implementação. Conceituar, por exemplo, um universalismo de “privacidade” nas economias globais de dados de hoje era uma inevitabilidade. Não poderíamos atender a uma regulamentação global de dados sem assumir uma cultura de privacidade compartilhada. Entretanto, por mais que essa padronização crie um conjunto bem embalado de regras para lidar com a globalização da vigilância de dados, o fato é que, quando lidamos com a aplicação da lei (enforcement), a cultura se torna o tradutor essencial. A aplicação da lei vem com o envolvimento com a cultura, o que é essencialmente confuso, imprevisível e frequentemente sobrecarregado com legados de desigualdades em certos países.

 

Padrões universais, diversidade e inclusão

Para a antropóloga Corinne Cath-Speth, a especificidade cultural da padronização da Internet muitas vezes complica a teorização atual sobre a governança da Internet que postula uma ‘mudança para a infraestrutura’ e rejeita uma análise cultural. Estruturas teóricas e políticas definem a responsabilidade corporativa em sistemas digitalmente distribuídos e responsabilizam as organizações de governança da Internet e seus participantes pelo poder que exercem. Dessa forma, é necessário que voltemos a nossa atenção à dinâmica do poder e a questão urgente da responsabilidade. 

Em 2019, o slogan “One World. One Net. One Vision” do Internet Governance Forum foi duramente criticado por muitos participantes do evento por ser tido como “bastante limitante”. Apesar de compreender o valor da universalidade, muitos participantes pontuaram a importância de se voltar para questões que por muito tempo foram esquecidas no ambiente digital como a diversidade, a consciência de gênero e a inclusão. Este fenômeno também pode ser observado pela Professora Laura DeNardis que apresenta a ‘virada infraestrutural’ na pesquisa de governança da Internet. A literatura na virada infraestrutural argumenta que os acadêmicos de governança da Internet devem observar como a infraestrutura da Internet é usada ou cooptada para fins além de suas funções técnicas e políticas construídas originalmente. Muitas vezes, uma leitura determinista acompanha a ideia de que as funções técnicas e políticas da infraestrutura da Internet são fixas e predeterminadas. Assim, uma falsa percepção da Internet como uma entidade única e estável ao longo do tempo, cujas funções sociais e técnicas surgiram independentemente umas das outras e de seu contexto histórico mais amplo é invocada. 

Uma contabilização mais precisa da dinâmica cultural da exclusão nas organizações de governança da Internet exigirá que a comunidade envolva disciplinas com literaturas robustas sobre esses tópicos, como estudos de gênero, estudos raciais críticos, estudos culturais e antropologia cultural. Esses subcampos podem equipar os atores de governança da Internet a perceber como e onde os processos de governança definem a dinâmica de poder em favor de seus participantes mais poderosos. Este foco etnográfico na especificidade cultural revela onde as visões atuais para o futuro da Internet, articuladas por engenheiros, sociedade civil, acadêmicos e legisladores, não chegam a repensar verdadeiramente a dinâmica de poder que impulsiona o desenvolvimento da infraestrutura da Internet. 

Como trazido pelo workshop “O Multissetorialismo na quinta onda da história da Internet: novas perspectivas e práticas” proposto pelo IP.rec e o Centro Popular do Audiovisual (CPA) no Fórum da Internet no Brasil em 2019, o foco do multissetorialismo não está nos setores e nas suas definições. Não há sempre um interesse específico e definido para cada setor. Muitas vezes, esses interesses são sobrepostos ou são conflitantes e a afirmação de uma representatividade e legitimidade setorial é cada vez mais difícil já que dentro dos setores, existem interesses específicos de subgrupos. 

Dessa forma, é necessário que se foque na ideia de multissetorialismo como uma forma de ampliação do espectro de participação de diversos atores. A prática multissetorial deve ser vista como uma técnica participativa na criação de políticas bottom-up, aberta e transparente. O foco em valores culturais, além de setoriais, e sua articulação em diferentes domínios na governança da Internet repolitiza a infraestrutura, tornando possível definir as decisões consideradas “técnicas” como explicitamente políticas, em vez de universal, neutro ou apolítico. 

Assim, além de todas as possíveis repercussões políticas e legais aqui mencionadas, ao manter trechos problemáticos da redação anterior, determinando que provedores tenham representantes legais no país e disponibilizem “às autoridades brasileiras competentes informações referentes aos usuários brasileiros”, o Projeto de Lei nº 2630/2020 escolhe seguir uma abordagem unilateral de resolução do conflito. Desse modo, o Art. 37 não só posiciona o Brasil de forma contrária à promoção da cooperação internacional mas reafirma uma dinâmica de poder não colaborativa ao ignorar a opinião de diversos especialistas e representantes de diversos setores e domínios da governança da Internet ouvidos em um total de 15 audiências públicas.

 

Este conteúdo foi produzido como parte do projeto “Defesa do regime brasileiro de direitos digitais”, que tem o apoio da Fundação Heinrich Böll.

Mariana Canto

Diretora e Secretária Geral do IP.rec. Mestra e Chevening Scholar 2021/22 em “Science and Technology in Society” pela Universidade de Edimburgo, no Reino Unido. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, tendo estudado parte do seu curso na Universidade de Hamburgo, na Alemanha. É pesquisadora visitante e German Chancellor Fellow (Bundeskanzler-Stipendium) 2022/23 no Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB), na Alemanha. É Internet of Rights Fellow na ONG Article 19, no Reino Unido. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2018), trabalhou junto ao Secretariado do Internet Governance Forum na ONU. No IP.rec, participa de projetos nas áreas de “Privacidade e Vigilância” e “Multissetorialismo e Participação Popular”. Também tem interesse pelo estudo da regulação de algoritmos, assim como sua influência em relações assimétricas de poder.

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