O que é o Marco Civil da Internet?

O Marco Civil da Internet nasceu de um projeto de lei que buscou estabelecer direitos, deveres e princípios relacionados à utilização e o desenvolvimento da Internet no Brasil. A ideia partiu do entendimento de que o avanço do uso da Internet por diferentes setores como governos, empresas, sociedade civil entre outros grupos de usuários, criaria novas questões e desafios relacionados à proteção dos direitos civis e políticos de cidadãos. Dessa forma, seria essencial estabelecer condições mínimas e essenciais para que o uso e desenvolvimento da Internet fosse preservado de maneira livre e aberta.

A proposta do Marco Civil da Internet (MCI) ou a Lei nº12.965/2014, nasceu de uma iniciativa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, que, em parceria com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, estabeleceu um processo até então inédito em relação à formulação de legislações dessa magnitude. Um longo processo aberto e colaborativo que contou com mais de 800 contribuições de diversos setores da sociedade brasileira e vários debates públicos sempre abertos à participação de toda a sociedade brasileira.

Que direitos são garantidos pela legislação?

O MCI desde sua origem foi motivado por princípios fundamentais como por exemplo, a defesa da privacidade, da governança democrática e da neutralidade da rede. Tais princípios ganharam repercussão nacional e internacional, levando o Brasil a ocupar posição de destaque por sua organização de governança multissetorial e pela iniciativa de uma legislação que buscou definir princípios-chave da Internet, livre e aberta, e as regras de proteção ao usuário.

Assim, dentre os principais direitos garantidos pelo MCI, podemos destacar:

  1. A inviolabilidade da intimidade e da vida privada e a inviolabilidade e sigilo do fluxo de comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei.
  2. O não fornecimento a terceiros de dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei.
  3. O dire­ito à liber­dade de expressão, algo que é frisa­do no tex­to como “sendo condição para o pleno exer­cí­cio do dire­ito de aces­so à internet”.

Quais direitos estão sendo ameaçados pelos novos projetos de lei que visam combater fake news propostos pela CPI da Covid?

É importante ressaltar que além de diversos pontos preocupantes anteriormente mencionados em nossa última publicação, as novas propostas legislativas elencadas no relatório final da CPI da Covid também podem ser visualizadas como riscos à preservação de direitos garantidos pelo Marco Civil da Internet.

Diferentemente do amplo debate buscado no âmbito cível pelo MCI, o primeiro dos projetos de lei propostos pela CPI visa não só criminalizar condutas relacionadas à disseminação de “notícias falsas” como também definir, de forma equivocada e insuficiente, um conceito extremamente subjetivo que é o de “notícia falsa”. Como defendido por diversos especialistas, ao criar um crime com pena de 2 anos para quem divulgar notícia falsa, retira-se o foco da “indústria das fake news”, abrindo-se margens para uma possível responsabilização arbitrária do usuário. Dessa forma, direitos e princípios chave estabelecidos no MCI são postos em risco, visto que a “garantia do direito à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à Internet”, para o MCI.

Já em relação ao segundo projeto de lei proposto pela Comissão, este oferece riscos aos direitos protegidos pelo MCI ao modificar diretamente o seu art. 10, inserindo o § 5º, que estabelece uma nova obrigação de coleta de dados pessoais de usuários por provedores de aplicação e redes sociais, como por exemplo, o nome completo, a data de nascimento e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e/ou o número de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). 

Dessa forma, o então vagamente denominado “provedor de rede social” e os provedores de aplicação deverão garantir a identificação “inequívoca do usuário que fizer publicação ou divulgação de mensagem em sua aplicação, quando essa mensagem for transmitida ou recebida por usuário localizado em território nacional”. O projeto ainda fala na utilização de “recursos tecnológicos disponíveis” pela rede social para validar a identificação mencionada, incluindo o acesso a informações disponíveis nos bancos de dados da Receita Federal do Brasil e o uso de certificado digital e de dados biométricos do usuário. 

A proposta se apresenta extremamente preocupante do ponto de vista estratégico e em relação à soberania nacional, uma vez que possibilitaria a empresas estrangeiras acesso a bases de dados nacionais extremamente sensíveis para fins de verificação, como é o caso dos números de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) do Ministério da Economia ou bancos de dados biométricos da Receita Federal. É importante lembrar que o Marco Civil da Internet foi uma resposta às denúncias de espionagem internacional, tornadas públicas por meio das revelações do caso Snowden em 2013. A então presidenta Dilma Rousseff pediu aos parlamentares urgência para a análise da proposta que visava proteger informações estratégicas do país. 

Assim, o novo projeto de lei ameaça um dos mais importantes direitos assegurados pelo MCI, o direito ao não fornecimento a terceiros dos nossos dados pessoais salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei. Além disso, é importante entender que esse “rastreio” estabelecido pela proposta legislativa pode dar margem à perseguição de grupos e usuários vulneráveis, colocando em xeque outros direitos assegurados pelo Marco Civil, como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada do usuário  e o sigilo do fluxo de suas comunicações pela Internet.

Ainda de acordo com o projeto de lei proposto pela CPI, ao provedor que descumprir o disposto neste artigo caberão as sanções previstas no art. 12 do MCI. Desta forma, sanções que são destinadas à proteção de dados pessoais e ao sigilo de comunicações privadas estão sendo, mais uma vez, interpretadas de maneira equivocada. É importante perceber que as sanções administrativas elencadas no art. 12 do MCI, que incluem a suspensão temporária das atividades e a proibição do exercício das atividades, são direcionadas a casos de vazamento de dados e comunicações privadas, como já apontado anteriormente pelos ministros Edson Fachin e Rosa Weber do Supremo Tribunal Federal nos julgamentos dos casos de bloqueio do Whatsapp em 2020.    

Em suma, o debate acelerado e a busca por respostas simplistas que resultam em tentativas de alteração do Marco Civil da Internet sem suficiente embasamento técnico em relação ao tema nos mostram como os projetos de lei apresentados atropelam debates já existentes e mais estruturados sobre desinformação, como é o caso do PL 2630/2020. Este projeto, que está sendo discutido há mais tempo e conta com um maior diálogo e participação da sociedade civil organizada, parece buscar melhores caminhos e soluções.

Este conteúdo foi produzido como parte do projeto “Defesa do regime brasileiro de direitos digitais”, que tem o apoio da Fundação Heinrich Böll.

Raquel Saraiva

Presidenta e fundadora do IP.rec, é também graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestra e doutoranda em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2017). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Algoritmos e Inteligência Artificial, Privacidade e Vigilância e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada, mas também se interessa pelas discussões sobre gênero e tecnologia.

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