É muito comum pensar em situações em que precisamos disponibilizar nossos dados pessoais, muito antes ou independente do que hoje é chamado “Big Data”. Pense só em quantas vezes na vida você não se identificou na entrada de um prédio, ou fez uma ficha completa na secretaria de um escritório médico? Ou ainda, com naturalidade, escreveu seu nome completo em uma lista de presença, a cidade onde mora na entrada de um museu? Já parou para pensar que ao pedir uma pizza alguém que você não conhece tem seu nome, endereço e telefone?

O que mudou?

É possível perceber uma espécie de naturalidade com esses dados que circulam em nossa sociedade. Essa naturalidade esbarra, contudo, em preocupações sobre as consequências de haver dados pessoais não necessariamente protegidos de usos indevidos ou fraudulentos, por exemplo. Ou ainda na possibilidade de que as informações que nós mesmos produzimos sejam utilizadas para nos influenciar, sem tomarmos consciência disso.

Não, eu não estou querendo instaurar o pânico (nem sugerir que você pare de pedir sua pizza preferida na comodidade de sua casa). No entanto, ignorar que a relação e as implicações de nossos dados na tão chamada Era Digital sofreram mudanças que impactam em nossa vida diretamente é perder o trem da história por querer — ou sair do juízo sem saber, como já diria a Canção do Novo Mundo. Falando em história, coletar informações sobre pessoas faz parte de organizações sociais desde a Antiguidade, com os censos do Império Romano, até a sustentação, no século XX, de inúmeros sistemas políticos, viabilizando perseguição contra opositores, ou controle praticamente absoluto sobre populações. A internet acrescentou um quê (bem robusto) de facilidade no tratamento de dados pessoais, inclusive, não restrito a atores estatais, como nos exemplos anteriores.

No novo contexto, atores privados também usufruem das novas tecnologias para desenvolverem diferentes modelos de negócio. A potencialidade, a diversidade e o volume de dados pessoais ganharam dimensões nunca antes experimentadas.

O potencial se refere às novas interfaces em que os dados circulam ou são armazenados, ou pelos meios em que são coletados e tratados. As características da internet, como ubiquidade, descentralidade e portabilidade dos dados que por ela trafegam implicaram na dimensão que dados pessoais assumiram na atualidade. Essa dimensão não é apenas um motivo de preocupação, sobre nossa segurança, mas também envolve a viabilidade de uma série de benefícios e praticidades cotidianas. Sem falar do salto da ciência, nas oportunidades educacionais e culturais ou as chances de rupturas com problemas sociais historicamente reafirmados. Então, o problema não são “os tempos de hoje”, mas a forma como nos adaptamos a eles.

“A gente não vive em uma caverna…”

A frase veio de uma amiga querida que dizia à filha ainda bebê (uma fofura, aliás, que já veio a um mundo bastante conectado às redes) que ela chorar ao ir para os meus braços não ia adiantar, afinal, “a gente não mora em uma caverna”. E, ainda rindo da metáfora, foi exatamente a nossa relação com dados pessoais na internet que me veio à cabeça. Evitar qualquer coleta de dados pessoais não é uma missão factível — voltemos aos exemplos mais banais do início desse texto. Não nos sobrou nem a ilha deserta, que pode ser vista sem muita dificuldade por ferramentas de geolocalização.

A solução também não pode ser aceitar simplesmente o uso desenfreado, desinformado ou irresponsável de dados cada vez mais precisos, interligados e com valor econômico. É necessária a consciência de que fornecer dados pessoais é apenas a ponta de um iceberg de possibilidades sobre o uso desses dados, quem terá acesso a eles ou a segurança em que eles serão armazenados. Acontecimentos recentes mostram que falhas na segurança de bancos de dados podem expor milhões de pessoas e serem usados para golpes financeiros, falsidade ideológica e uma série de ilegalidades. Saber sobre a segurança dos seus dados é não apenas uma necessidade, mas um direito de nós, titulares.

O dever de informação é reforçado no ecossistema de proteção de dados que se delineia com a aprovação, em 2018, da Lei Geral de Proteção de Dados. A nova lei entra em vigor no Brasil em 2020, mas isso não quer dizer que até lá estamos desprotegidos. Existem diversas garantias sobre direitos de consumidores, com destaque para o direito à informação, e outras situações sensíveis, como aquelas envolvendo a saúde dos titulares dos dados, crianças e adolescentes, ou sistemas bancários. Com essas e outras bases legais, a coleta de CPF por uma rede de drogarias foi coibida em Minas Gerais. A ação chamava a atenção pela falta de informações aos consumidores e o processo revela uma série de instruções sobre a “captação” do CPF de clientes, sem esclarecimento de finalidade ou padrões de segurança. A investigação e o processo administrativo foram conduzidos pelo PROCON-MG, com a participação do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Já em São Paulo, tramita uma ação civil pública contra a empresa que presta os serviços no metrô da maior cidade do Brasil, por instalar câmeras — sem informação ou consentimento das pessoas que pela via circulam diariamente — que captavam imagens para fins de publicidade.

Essas situações demonstram os diversos interesses que dados pessoais podem despertar. Estar consciente de seus usos, poder escolhê-los ou restringi-los a uma finalidade legítima são fundamentos de sua proteção, para muito além de leis ou regulações. Uma cultura de privacidade e proteção de dados pessoais se molda também por meio de ações simples, inseridas no cotidiano, assim como as tecnologias que os utilizam. Perguntar o porquê, ser informado e poder afirmar suas escolhas não são para “um novo mundo”, mas para o presente. Para agora. São sobre você, sobre cada um de nós e para que a gente saia da caverna, afinal.

*Luíza Brandão é mestranda e bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. É fundadora e diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Escreve em sua capacidade pessoal.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem à autora.

Luiza Brandão

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