O trabalho vem sofrendo diversas transformações ao longo da história. Com a transformação do capitalismo, a inserção das máquinas e da produção em massa que ocorre de maneira mais rápida e eficiente, os espaços ocupados pelo trabalhador que vende a sua força de trabalho, começam a mudar também.

Ele não encontra mais tanto espaço nas fábricas e, com a introdução da automação e da inteligência artificial, os ambientes mais ocupados são os de trabalhos informais, cada vez mais precarizados. A Internet desempenha um papel catalisador nessa transformação,  permitindo o surgimento do que fica conhecido como “economia compartilhada”. Modelos tradicionais de prestação de serviços tornam-se mais práticos e simplificados: onde antes um serviço que era conhecido e realizado principalmente face a face, agora pode ser encontrado facilmente através da Internet e de plataformas que prometem facilitar e descomplicar o acesso a tais bens de serviços.

A economia compartilhada surge, inicialmente, com uma aparência de um consumo consciente, porque as pessoas aparentavam compartilhar, reaproveitar e alugar para outras pessoas recursos parados, sem utilização e em depreciação. O uso da Internet e de plataformas que auxiliam esse tipo de consumo funcionam muitas vezes através da conexão peer-to-peer,  que faz a ligação entre o prestador de serviços (aquele que deseja fazer alguma comercialização de determinado serviço) e a pessoa que deseja adquiri-lo (BIANCHI, PACHECO, MACEDO, 2020). Apesar dessas plataformas partirem de um discurso economicamente sustentável, que se origina do princípio que qualquer pessoa pode facilmente se cadastrar e encontrar uma fonte de renda extra, muitas empresas prosperam devido à redução de custos derivado da desregulamentação geral do mercado de trabalhadores autônomos e informais. Surge assim o termo uberização, equivalente à criação de novas relações de trabalho, muitas vezes como atividades autônomas, em que o trabalhador teria a autonomia e liberdade de escolher seus horários de trabalho, podendo se ver como empreendedor, como seu “próprio chefe” e criando muitas vezes uma visão deturpada do que realmente caracteriza essa nova relação de gerenciamento e de controle do trabalho.

Existem diversas empresas que funcionam dessa maneira, dentre as mais populares aqui no Brasil estão Ifood, Uber, Rappi.  Apesar de um processo de onboarding (isso é, de entrar até começar a operar no aplicativo) com poucas barreiras e atritos para início, muitas vezes a empresa exige uma frequência de utilização da plataforma pelos trabalhadores. Partindo do exemplo das empresas citadas anteriormente, quem não cumprir um nível mínimo de horas e tempo online na plataforma é passível de receber algumas sanções que podem ocasionar até mesmo no desligamento. Ocorre também uma terceirização da avaliação dos entregadores e motoristas de tais plataformas, que é feita pelos clientes que contratam o serviço e que geram notas nos aplicativos que importam muito para a remuneração dos trabalhadores, sendo uma forma de gamificação e “o fluxo de avaliações também funciona como um meio de certificação do trabalho, estabelecendo para o consumidor relações de confiança que não passam mais pelas esferas públicas de certificação do trabalho e das empresas” (ABILIO, p. 3, 2019).

Na uberização,ocorre uma grande exploração da mão de obra por essas grandes empresas que dominam o mercado; enquanto os trabalhadores raramente possuem algum direito ou garantia, uma vez que há pouca ou nenhuma legislação específica ou responsabilidade com as pessoas cadastradas. Tais empresas alegam que o serviço que exercem é apenas a realização da conexão entre os usuários e as empresas, de modo que as pessoas cadastradas caracterizam-se apenas como parceiros, tentando assim se eximir de uma responsabilidade maior.  Além disso, o trabalhador uberizado precisa arcar por conta própria com diversos gastos advindos do exercício da função. Muitos precisam comprar motos para fazer entregas, possuem custos com manutenção dos veículos, de plano  de dados móvel para acessar os aplicativos, celular, combustível, etc.

É também uma incógnita para o trabalhador como será seu dia de trabalho, uma vez que a demanda de entregas ou de corridas é controlada muitas vezes pelo aplicativo, não tendo noção de quanto poderá ser o valor que receberá ao final do dia.  Esse mecanismo termina por criar um sistema de “incentivo perverso” para que os autônomos passem o maior tempo possível conectados e gerando renda para si mesmos (e, consequentemente, para as empresas proprietárias dos aplicativos também). Uma vez que não há perspectiva de saber quanto é o mínimo ou máximo a ser faturado em um dia, por muitas vezes motoristas e entregadores trabalham por quantas horas forem necessárias, até que eles atinjam sua meta diária auto-criada e auto-administrada, necessária para o seu sustento diário.

Esse conjunto de fatores e comportamentos pode gerar episódios de burnout, no qual os funcionários têm episódios de estresse induzido por excesso de trabalho. Isso foi o principal motivador para que a Uber limitasse a carga horária dos seus funcionários a 12 horas, não só para evitar episódios de estresse e malefícios de saúde aos motoristas, mas também como redução de custos para a própria empresa (menos acidentes, e consequentemente menos problemas trabalhistas).

Com a pandemia do COVID-19, que vem intensificando as vulnerabilidades e desigualdades já existentes, os trabalhadores informais e precarizados foram afetados pelo confinamento. Com muitos desligamentos e demissões causados pela queda de demanda generalizada da economia, muitas pessoas veem o trabalho informal dos aplicativos como uma forma de complementar sua renda perdida, mesmo sob o risco de infecção. Apesar do grande aumento no pedido por delivery (o iFood chegou até a “cair” durante o Dia dos Namorados), esse aumento não foi acompanhado de um aumento de zelo e cuidado para aqueles funcionários que estão lidando diariamente com o risco.

De acordo com uma pesquisa realizada entre entregadores de aplicativos, mais da metade reportou não terem recebido qualquer tipo de apoio das empresas para a redução do risco nas entregas (álcool em gel, máscaras); ao mesmo tempo, mais de 60% reportou que era necessário trabalhar ao menos 9 horas durante a pandemia. Um entregador relatou uma queda de remuneração na pandemia, de 7 reais para uma entrega de 4 quilômetros, em um percurso realizado de bicicleta. De acordo com uma matéria da The Intercept, no mês de Março, ainda no início do curso da pandemia no Brasil, a empresa Rappi chegou a pagar um bônus de R$15,00 para entregadores em um dia de fortes temporais, incentivando assim que os entregadores se mantivessem disponíveis para realizar entregas no aplicativo, apesar dos riscos ainda maiores; deixando em plano secundário a saúde dos seus “colaboradores”.

Motivada pela superexploração desses trabalhadores acentuada pela pandemia, os entregadores de aplicativos começaram a se mobilizar para realizar uma greve nacional para o dia 1° de julho, com o objetivo de demandar melhores condições de trabalho durante a pandemia. Dentre as melhorias, eles reivindicam o aumento no pagamento das corridas, uma taxa mínima para as entregas, equipamentos de proteção individual (EPI), seguro de vida, cobertura contra roubos e também pedem o fim de bloqueios e desligamentos indevidos das plataformas.

Ao que parece, o cenário ideológico no qual tais plataformas se instalaram ganha maior e mais forte contestação ao longo de todo o mundo, tendo a pandemia um fator catalisador da situação de crise cotidiana que sustenta um modelo de negócio tido como disruptivo. Entre os setores sociais chamados ao debate o direito se apresenta como fator de mediação fundamental, não só exercendo o poder de coercibilidade Estatal, direcionando um sentido de normas trabalhistas existentes às práticas presentes, como criando novas estruturas de regulação dessas atividades. De outro lado, a academia e o setor empresarial são forçados a pensar, para além da mera ideologia solucionista, nas múltiplas camadas e consequências das práticas de mercados implementadas e na necessidade de implementar uma agenda social capaz de permitir uma prática capitalista, sem descurar do mínimo de direitos necessários à saúde do trabalhador.

Referências

ABILIO, Ludmila Costhek. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas,  Valparaíso ,  v. 18, n. 3, p. 41-51,  nov.  2019 .   Disponível em: <https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-69242019000300041&lng=es&nrm=iso>. accedido Em  14  jun.  2020.  http://dx.doi.org/10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674

BIANCHI, Sabrina Ripoli; MACEDO, Daniel Almeida de; PACHECO, Alice Gomes. A UBERIZAÇÃO COMO FORMA DE PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA QUESTÃO SOCIAL. Revista Direitos, Trabalho e Política Social, [S. l.], p. 134-156, 17 jun. 2020. Disponível em: http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rdtps/article/view/9755. Acesso em: 14 jun. 2020.

Isadora Lages

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