1. As síndromes em tempos de pandemia e o espaço de trabalho virtual

Em tempos de pandemia, um passeio nas redes sociais nos mostra uma série de relatos de pessoas com uma postura psicológica desassossegada, em situações de crise comportamental e recorrendo ao argumento de alguma “síndrome” presente. Usuários argumentam e compartilham materiais em seus perfis pessoais e profissionais sobre síndromes de produtividade, síndrome do impostor e outras tantas situações agudas que afetam a nova realidade do convívio social restrito e controlado.

Um elemento se destaca nesta equação é a constante referência à experiência “home office”, obrigatória por força da pandemia e mediada através de ferramentas tecnológicas. Tal realidade vigente reconfigurou o ambiente de trabalho, que, por si, já tornava o trabalhador dependente de uma série de variáveis bastante destacadas: a produtividade, a filosofia de que o trabalho válido é aquele que se faz presente, a dimensão quantitativa das respostas apresentadas, da redução das rotinas à atividades reprodutivas etc.

Numa realidade de trabalho mediada pela tecnologia, não é de se estranhar os clamores dos sujeitos de sufocamento por sentimentos negativos de incapacidade de produzir, de sentimento de insuficiência e baixa produtividade e de sensação de aumento constante da cobrança – o ambiente de trabalho, acentuado pela mediação tecnológica, é um ambiente de colonização da vida e do tempo da vida humana.

Como forma de solucionar a dinâmica concreta de controle e dominação presente no cotidiano instrumentalizado e burocratizado das mais diversas formas de trabalho existentes na sociedade (trabalhos manuais, trabalhos intelectuais, trabalhos criativos, no comércio, na indústria etc), empregadores de toda ordem partem para as ferramentas tecnológicas de registro do tempo e da produtividade.

Esses expedientes não são novidade no ambiente de trabalho, a tecnologia e o controle sempre foram associados com maestria, como forma de regular e operacionalizar o espaço do trabalhador e a orientação do tempo de vida com vistas à produção. A novidade está na aceleração da adoção de medidas de controle, convertidas em medidas de vigilância, através da situação da pandemia, contrabalançada pela ausência de um tempo de vida livre, pois todos estão ou deveriam estar restritos ao ambiente doméstico, agora também constituído, para alguns, como ambiente de trabalho.

De acordo com John Danaher¹ a colonização temporal e mental do trabalho é ainda mais gravosa e estrutural pois se acentua com a evolução do processo tecnológico e representa uma verdadeira exclusão do tempo de vida livre, tendo em vista que a dita liberdade do trabalho nada mais é do que o tempo de recuperação dos danos causados pelo trabalho e o tempo de preparo/capacitação para a atividade produtiva.

Nesse sentido, bem se vê que a virtualização do espaço de trabalho não cria uma situação de dominação e vigilância que agora agride o trabalhador, apenas escancara um expediente cotidiano já operacionalizado tecnologicamente.

 

2. O que é dominação?

Dominação, no sentido tratado neste texto, faz referência a uma situação do sujeito humano no qual, por força de agenciamento externo, é diminuída a sua liberdade, não sendo esse sujeito apto a exercitar uma escolha possível, capaz e responsabilizável.

É importante explicar o que é essa escolha: ela se divide em três níveis necessários e atrelados, configurando o estado de escolha livre. Portanto, ela necessita ser uma escolha (1) possível, disponível ao sujeito, ademais ser uma (2) escolha que o próprio sujeito esteja apto, seja capaz de escolher, por força de sua própria formação intelectiva e moral. Por fim, (3) o sujeito que escolhe de maneira (in)formada e situada numa visão de mundo, assume as consequências possíveis advindas da ação, sendo responsabilizável.

Qualquer indivíduo, quando confrontado em qualquer situação, tem a possibilidade de escolher uma ação e as contingências situacionais implicadas na escolha. Num plano ideal, uma relação empregatícia seria configurada como uma relação de livre troca, mas, convenhamos, não é bem assim na prática. Existe uma limitada liberdade de escolha, constituída pelas necessidades materiais que constrangem os indivíduos, organizações e as próprias oportunidades disponíveis. No limite, a liberdade é de aceitar um determinado trabalho ou não ter capacidade de acessar os recursos mais básicos para a sobrevivência. A liberdade real, para um trabalhador, é escolher se submeter a um regime de dominação ou, para os mais privilegiados, escolher um dentre diferentes regimes dessa sorte.

Essas escolhas, no âmbito do trabalho, passam pelo ritmo e método de sua realização. O indivíduo se encontra limitado a um limitado conjunto de escolhas possíveis de como realizar as atividades de trabalho. A performance do trabalhador deve ser equiparada àquilo que lhe é imposto como certo.

O agenciamento externo, numa estrutura de dominação, por outro lado, está relacionado ao poder exercido e à submissão a uma autoridade superior. No ambiente de trabalho, a estrutura hierárquica da chefia normalmente se apresenta como uma relação de dominação.

Essa dominação pode envolver diversos dispositivos e técnicas de controle do comportamento, como coerção ou consenso, por exemplo. Ou ainda, recompensas e punições, carrots and sticks. Para recompensar ou punir, a chefia precisa de informação sobre a performance de seus subordinados. A vigilância é pressuposto básico para o controle do trabalho. Quanto mais informação disponível, mais fácil ou efetivo o controle. Aí se inserem as tecnologias de vigilância turbinadas pelo avanço das TICs.

Os chefes hoje podem saber quantos segundos e minutos se gasta numa determinada tarefa, num determinado programa ou página, quantos cliques foram feitos, quantas palavras digitadas. Assim, com o ganho de detalhamento crescente na informação sobre a realização das atividades pelo trabalhador, é possível propor e impor padrões de conduta cada vez mais intensos e exatos, eliminando obstáculos que não aparentem contribuir para a produtividade. Através desses meios, avança a dominação no e do trabalho.

3. Tecnologia de vigilância predatórias do ambiente de trabalho

Softwares que conseguem medir o desempenho e monitorar os empregados têm se tornado cada vez mais utilizados por empresas nesses tempos em que o coronavírus transformou o trabalho remoto não mais em uma possibilidade, mas em uma obrigação para que as pessoas possam continuar exercendo o seu trabalho. Com o fechamento de diversos escritórios em todo o mundo, as pessoas são mandadas para casa com os computadores das empresas e com a esperança de que a produtividade do funcionário continue a mesma, mas como controlar se esse desempenho realmente está atendendo as expectativas do chefe e da empresa?

Esse supervisionamento remoto dos trabalhadores funciona através da instalação de um aplicativo em seus computadores que monitora um conjunto de atividades realizadas por eles. Após a instalação a maioria dos aplicativos precisa que o trabalhador logue em sua conta assim que começa a trabalhar, influenciando indiretamente o modo que o trabalho vai ser realizado. Muitas empresas que vendem tais softwares os justificam como uma maneira de melhorar a transparência, a segurança e até mesmo o engajamento do contratado em relação à empresa. No entanto, apesar dessa mensagem aparentemente positiva, a realidade por trás de dispositivos de vigilância em ambiente de trabalho é outra. Mostra que muitas empresas, de forma antiquada, ainda apostam em táticas de medo, sentinela e pressão como ferramentas de aumento de produtividade, ao invés de criar uma cultura de confiança e colaboração entre pares.

O monitoramento pode vir de diversas formas, desde o acesso do chefe a mensagens privadas em aplicativos como o Slack, a gravações de reuniões em softwares como Hangout ou Zoom; vários canais de comunicação também podem ser monitorados. Até recentemente o Zoom também possuía uma funcionalidade de attention tracking, na qual os hosts das reuniões poderiam rastrear se os funcionários presentes na reunião passavam mais de 30 segundos fora do aplicativo. Com o rápido aumento de usuários diante da pandemia e as diversas críticas ao Zoom, a empresa removeu essa funcionalidade em abril de 2020.

Os meios mais invasivos de monitoramento ficam por parte de aplicativos que são instalados diretamente nos computadores dos empregados, como o Hubstaff, TimeViewer e DeskTime, que acompanham todos os passos dos funcionários. O Hubstaff possui captura de telas aleatórias de sites que eles visitam, dos documentos que eles escrevem ou das redes sociais que eles utilizam, chegando a até mesmo a segui-los através do GPS. A funcionalidade principal do Hubstaff se dá através de uma tela que apresenta aos chefes, ou quem tiver o papel de monitorar, tudo o que o funcionário está fazendo. A cada 10 minutos o software consegue calcular a porcentagem, gerando uma nota de produtividade, das palavras que os empregados têm digitado ou o quanto ele tem mexido o mouse.

Já o aplicativo InterGuard é capaz de monitorar a cada minuto todos os aplicativos e sites que são acessados pelos trabalhadores, categorizando-os em “produtivo” e “não produtivo”. Ao final, ele cria um ranking entre todos os trabalhadores, mostrando os mais e menos produtivos. Ademais, o aplicativo é capaz de alertar caso um trabalhador esteja fazendo algo suspeito na internet. Se já não bastasse tudo isso, o aplicativo também é capaz de gravar os emails, mensagens instantâneas e senhas dos trabalhadores, além de fotografar a tela a cada 5 segundos.

Muitas empresas que utilizam esses softwares ignoram que a produtividade não pode e nem deve ser medida somente através do tempo em que a pessoa está logada no aplicativo ou do que digita e como mexe o mouse; existem outras maneiras de fazer o seu trabalho que não estão atreladas simplesmente ao uso do computador. Por isso, não seria mais fácil criar uma relação de confiança entre empresas e empregados em que o uso de tais aplicativos não fosse mais necessário?

Vários estudos já demonstraram como os benefícios de construir uma cultura de confiança no ambiente empregatício influenciam em aumento de produtividade. Por exemplo, de acordo com o estudo Employee trust and workplace performance, realizado pela Universidade de Sheffield, um nível alto de confiança entre funcionários e seus gestores mostrava um aumento de produtividade em até 5% quando comparado à média da indústria.

Esses aplicativos podem criar ainda mais tensão e ansiedade nos trabalhadores, uma vez que estão trabalhando sobre grande pressão. Já há vários registros e depoimentos que vêm informando sobre as condições estressantes às quais estão submetidos, conforme demonstra o The Washington Post, quando o constante monitoramento pode ir de encontro à produtividade.
Já quando olhamos para o cenário de pandemia atual, é possível já identificar mecanismos criados para monitorar seus trabalhadores. Na Índia, por exemplo, o aplicativo Aarogya Setu foi criado com o intuito de analisar o risco de infecção dos trabalhadores, baseado em sua localização, histórico médico e de viagens. Segundo o site Aljazeera, o governo vai tornar obrigatório o uso desse aplicativo e ele será, principalmente, destinado ao monitoramento de entregadores de comidas e servidores públicos.

Menos que inovar, essas tecnologias apenas otimizam uma prática antiga: a vigilância e o monitoramento. A pandemia da COVID-19 vem transformando a sociedade, a um ponto que, talvez, não haverá mais volta. Todas as políticas sociais atuais estão sendo voltadas para lidar com a pandemia. Contudo, é preciso analisar o “after-life” de tais tecnologias de monitoramento. Será que elas serão extintas, após a superação da crise, ou serão redesignadas para continuar monitorando os trabalhadores? Seria mais proveitoso empregar tais tecnologias para fomentar novos e mais saudáveis regimes de trabalho, baseados menos no controle e mais na colaboração e na confiança?

 

REFERÊNCIAS

DANAHER, John. Automation and Utopia – Human Flourishing in a World without Work. Harvard University Press, 2019.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.


Pedro Amaral

Mestre e doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco e pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas de Segurança (Neps) da UFPE, desde 2014. Tem interesse na economia política da internet e nas dimensões interacionais da adoção de tecnologias. Tem feito pesquisa de campo desde 2012 e tem se dedicado mais à etnografia e métodos quantitativos. No IP.rec, atua na área de Privacidade em Vigilância, com ênfase em políticas de criptografia e tecnologia na segurança pública.


Isabela Inês


Isadora Lages

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