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A humanidade nunca avançou se não por crises imensas. É um dos sinais de mudança de modelo de sociedade. Todos os direitos humanos, sejam eles trabalhistas, ambientais, ou mesmo garantias em relação à propriedade e liberdades individuais foram conquistados após crises gravíssimas. Alguns acreditam que temos agora uma oportunidade para avaliar o rumo que estávamos tomando e o universo em que estávamos imersos enquanto sociedade. Outros acreditam que para sair desta crise seriam necessárias soluções sistêmicas que nos auxiliassem a pensar um modelo de inovação que de fato melhore a vida das pessoas. Um dos aprendizados da crise atual, porém, é que nossas ações produzem reações em cadeia.

Na corrente atual do pensamento hegemônico, a afirmativa no enunciado pode parecer problemática de acordo com o pêndulo moral de cada um: é fácil que se feche o mundo de possibilidades carregado pela  palavra “oportunidade” se a entendemos apenas dentro de uma lógica de produção e consumo. Em situações como esta em que nos encontramos esta frase serviu de mote para empreender mais e mais ações para chegarmos até aqui, à beira do precipício. E se o precipício nos olha de volta, parafraseando Nietzsche, é porque fomos caminhando até ele mirando simplesmente num horizonte sempre fugidio do bem-estar pleno para cada um. Individual.

Mas nosso atual momento nos faz perguntar: de que vale? O conceito de heterotopia de Foucault salienta um momento e espaço em que a ordem cultural está em desarranjo. Isso quer dizer que há lugares-momentos que desfazem a ordem para compor uma outra nova. Esse é precisamente o momento que creio estarmos vivendo. Se queremos de fato inovar, portanto, devemos entender este momento crucial em que se desnudam a ordem das coisas e agir ativamente sobre ela.

Muito tem se falado acerca da importância da ciência e das pesquisas científicas durante a pandemia. Os laboratórios, onde vivem os cientistas em nosso campo da imaginação, nos filmes, nos desenho e nos livros e, enfim, no inconsciente coletivo, nos remetem a locais de experimentação. É que eles são em essência espaços e ambientes próprios para as tentativas, ensaios, descobertas e acertos. E é justamente com os laboratórios que é possível validar ideias e projetos que nos parecem inacessíveis ou complexos. Seguindo o pensamento de Foucault, os laboratórios maker são essas heterotopias em que o próprio conceito de passado-presente-futuro se borra. Se entendermos os laboratórios como estes espaços que subvertem a velocidade da produção de uma peça que numa cadeia industrial levaria meses para sair, então podemos concluir que estes lugares aceleram o tempo das coisas – inclusive da velocidade com que vamos ao futuro.

 

Inovação aberta, design e laboratórios makers

Os laboratórios e os makers estão na vanguarda em mostrar soluções muito mais rápidas, baratas e colaborativas durante a pandemia da COVID-19. Deixamos portanto de trabalhar em cima do “eu acho” ou o “não vai dar certo” e passamos para ciclos muito rápidos de teste e de “saída para a rua”. Os laboratórios são de fato lugares para testes. Contudo, o entusiasmo não pode ser a única emoção a comandar: as questões de gênero e raça nos locais em que impera “a tecnologia” também têm que ser muito debatidos. Na realidade, todos nós entendemos a seriedade e os impactos da saúde na economia, e, portanto, não temos tempo para esperar soluções mágicas ou complexas.

Ao compreender a metodologia clássica de design do caminho percorrido do problema até o produto acabado, utilizado com morosidade ora compreensível, ora não, pela indústria – os makers se põem no personagem do futuro que volta ao nosso presente para trazer algo que só seria feito em meses de espera. Desta forma, a contribuição destes espaços e das pessoas que trabalham neles é de crucial importância para dar suporte real às pessoas que mais necessitam dos seus trabalhos hoje: as equipes médicas.

Os makers, os cientistas e a cadeia produtiva de inovação formam uma rede, e esta rede possui a capacidade de mobilizar pessoas em diversas partes do mundo colocando-as em contato com atores do Estado e da indústria;  testando ideias e soluções; compartilhando designs; criando em fonte open-source; e, enfim, contribuindo para adaptar soluções em conjunto.  Neste sentido também é perceptível o esforço em priorizar e mapear a capacidade de avanço em certas tecnologias por necessidade e urgência. Há várias soluções como a esterilização com luz U.V. e a fabricação de EPIs sendo reproduzidas em cadeia. Pessoas em diversas partes do mundo estão trabalhando diariamente com o mesmo propósito: acelerar o processo de produção das máscaras de proteção, realizá-lo de forma menos custosa e  adaptar o produto final de acordo com a necessidade do local em que se encontram. No tangente à resposta direta à ameaça às vidas das equipes de resgate por meio de EPIs há um projeto maker em curso em Pernambuco, sob a batuta do Porto Digital; ações semelhantes desenvolvidas pela Universidade Federal do Ceará (que busca desenvolver também um respirador artificial); articulação entre designers, médicos, hospitais e pessoal dos governos municipais do Rio de Janeiro na produção e distribuição dos EPI e projetos em periferias que visam garantir a segurança alimentar das pessoas que mais serão mais atingidas pelo coronavírus.

Na favela do Paraisópolis, em São Paulo, voluntários controlam por grupos de whatsapp até 50 famílias e se encarregam de que faça chegar a elas o que necessitam. Mas não podemos ser ingênuos para esta realidade exemplificada na favela de Paraisópolis: se estão construindo estas redes de apoio é mais por falta de infraestrutura mínima para uma crise sanitária grave em sua região do que por motivações políticas. E isso também deve servir como um espelho para o nosso pensamento atual. Por uma percepção otimista, pessoas que outrora foram invisíveis estão sendo assistidas – mesmo que para diminuir, de certa forma, o risco para todos os outros. Nunca tivemos um desafio que colocou tão à prova a regra de ouro da ética de Aristóteles – só existe uma escolha correta quando essa distribui justiça e trata o outro como um sujeito de direitos.

 

Redes de colaboração

Alguns acreditam que esta foi a primeira grande onda de um ciclo de pandemias e de impactos climáticos que devemos sentir em nossa geração. A ciência vem alertando para os riscos das próximas crises – refugiados climáticos e doenças ainda não mapeadas ou decorrentes da ação humana, como a atual – e enquanto, por um lado, temos a capacidade de avaliar nossos rumos de forma mais clara, por outro o meio ambiente nunca mandou um recado tão direto para a humanidade (a desigualdade e os modelos econômicos nunca estiveram tão transparentes). Se focarmos num mundo mais empático, equilibrado e sustentável, e que não possibilite o acúmulo de grandes fortunas, talvez tenhamos uma chance de sobreviver enquanto sociedade (já que o futuro depende disso).

Os exemplos citados na questão anterior demonstram bem o que se pode entender como pontos positivos: mudança no paradigma de pensamento, questionamento do modelo em que vivemos, e, mais importante, abertura das portas para novas maneiras de organizar tudo: da vida ao trabalho. A falta de tudo, inclusive de ordem aparente, nos faz querer rearranjar as coisas e nos estimula a criar o novo: uma nova maneira de trabalhar, uma nova maneira de produzir, de consumir, de nos relacionarmos, de nos expressarmos. É principalmente um momento em que a criatividade, a ciência e suas redes de colaboração mostram o seu valor e escancaram que o obscurantismo não pode ser colocado no mesmo patamar de quem está trabalhando com inovação ou ciência – enfim, com um trabalho baseado em evidências.

Temos que nos adaptar, portanto, a um novo modelo de estar em sociedade e a um novo mundo. Nos acostumamos, por exemplo, a um formato de trabalho que submete o outro a estar disponível como um recurso, fisicamente, numa relação hierárquica, durante uma determinada quantidade de horas. Isso é algo que não dá certo em inovação. Bertrand Russell e diversos outros filósofos falam do ócio criativo e da capacidade de produzir dentro de um modelo mais confortável e acolhedor para cada um. Talvez o home office seja uma chance inédita de testarmos isso. A Suécia já provou isso: pessoas entregam muito mais, e melhor, quando estão dentro de modelos de trabalho flexíveis, tanto de carga horária reduzida, quanto de home office. O discurso do novo pelo novo esconde muitos perigos, entretanto: temos, sim, que aproveitar essa “falta” para criar a partir dela, mas jamais devemos deixar de questionar quais os efeitos dessa novidade que estamos fazendo.

E como fazemos isso? Com laboratório maker – jogando a ideia para ser testada, prototipada e avaliada; com democracia e distribuição equitativa do poder.

Caio Scheidegger

Diretor de Projetos e Fundador do IP.rec. Mestre em Gestão Ambiental IFPE, com pesquisa voltada ao desenvolvimento de produtos tecnológicos. Especialista em CopyrightX por Harvard Law Pesquisador de Visão Computacional e Machine Learning no Grupo de Pesquisa e Desenvolvimento de Produtos Tecnológicos, do Instituto Federal de Pernambuco e no GRENDES - Grupo de Engenharia e Desenvolvimento de Software, do Instituto Federal de Pernambuco. Desenvolve pesquisas em inovação aberta. Project Manager na MesaInc, PM na Work.co - Digital 4.0 do BTG pactual - plataforma mobile de investimentos. Cientista de Dados e articulador no Aetrapp.org. Scrum Master e Gerente de Agilidade no D.A.D.O. IMS - Porto Digital. Foi coordenador do Laboratório de Mobilidade no Porto Digital. Associado ao Instituto Invento - Tecnologias Apropriadas para a Sustentabilidade. Artista Plástico e consultor de prototipagem. No IP.rec, atua na área de Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada.


Cadu Silva

Professor de design na Universidad Peruana de Ciencias Aplicadas, mestrando em Design Gráfico Digital pela UNIR – Universidad Internacional La Rioja (ES), designer de produtos especializado em mobiliário e iluminação, host no podcast Mais Uma Cadeira, organizador da Zine de mesmo nome e pesquisador sobre construção de identidade cultural brasileira e design de móveis.

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