Publicado em: 9 de novembro de 2023.

Algo tem me incomodado no estudo e observação das práticas de inovação, especialmente em “ambientes de inovação” do contexto brasileiro: a inovação tem se transformado num dogma por alguns de seus cultores.

Para desdobrar este incomodo eu queria pedir a licença de quem possa ler este texto para abordar o tema sob duas perspectivas da metáfora da “hélice da inovação”, proposta por Etkowitz e Leydesdorff

A primeira perspectiva é comparar a imagem, de forma trivial, ao funcionamento da hélice com seu equivalente concreto – um ventilador de mesa, presente na casa de todos os brasileiros. A segunda perspectiva é, abusando da trivialidade, questionar se “hélices” são aparatos suficientes fora da perspectiva de “progresso”, no sentido de progresso moderno.

A discussão acerca do modelo tripla hélice está atrelada a um contexto de superação de modelos lineares de desenvolvimento social, notadamente do desenvolvimento social e econômico que passa a funcionar a reboque da produção de conhecimento. Passaríamos de um contexto linear, no qual a demanda por soluções se apresentaria e a tecnologia viria ao encontro, com soluções, para modelos ditos evolucionários e complexos. Para articular um processo de integração de diferentes interesses, a metáfora das hélices aparece – integrar-se-ia governo, academia e indústria, em suas atividades, numa paisagem coligada e de mútuas influências para resolver problemas sociais.

Esta ainda parece ser a solução e perspectiva adotada por atores do ecossistema de inovação global – em Recife, por exemplo, o site do Porto Digital descreve o parque tecnológico como “fruto e referência nacional de uma ação coordenada entre governo, academia e empresas, conhecido como modelo “Triple Helix“. 

Em outro exemplo, o plano estratégico do Recife, voltado à incorporação e atravessamento da tecnologia na gestão governamental, elenca todos os eixos de interesse público numa grande trama pautada no pressuposto da inovação. Ali parece haver a descrição de um modelo de quádrupla hélice, com foco na oitiva popular. Mas a análise granular das políticas postas e planos traçados revela que a ideia está apenas focada na ilusão de unidade que um “ventilador ligado” parece gerar. 

Concretamente, o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação municipal, que é o instrumento que deveria criar condições concretas para a implementação do “plano”, apresenta um Conselho, prenhe de responsabilidades, mas que não quebra com a noção de tripla hélice. Não há representação devida da sociedade civil e os demais interesses estão estereotipados em alguns poucos atores. Mais do que isso, o instrumento legal é apresentado, oficialmente, com uma imagem que tenta retratar o trabalho de Etzkowitz e Leyfesdorff (sic). 

Na imagem trivial que lancei, um ventilador com 3 hélices, ligado, pode ser percebido pelo olho humano como uma unidade. A ilusão de ótica está intimamente ligada à metáfora – pelos esforços unitários das 3 hélices temos o espalhamento do vento e o deslocamento do ar. Como bem pontuou George Lakoff, no livro Metáforas da Vida Cotidiana, as imagens que nos reportam a movimentos “para cima” e “para frente” são, na história das ideias e da cognição humana, sinônimos de “progresso”. 

Se o meu leitor ou leitora ligar um ventilador de mesa próximo poderá constatar este efeito ótico perceptível pelo senso comum. Nesse caminho, podemos rapidamente nos perguntar se a adição de mais hélices ou pás faria aumentar a potência dos ventos. Numa cidade como Recife, a possibilidade de aumentar o frescor em dias quentes é questão de saúde. Façamos o texto, jogando um argumento de busca no google sobre “ventilador de mesa”, iremos encontrar imagens de traquitanas com 4, 5 ou 6 pás e uma mensagem de maior potência dos seus produtos. Isso parece ser uma verdade correta e singela. Será?

Na teoria das hélices, autores diversos têm abordado que a falta de novas “pás” neste ventilador-framework teórico tem sido causa da incapacidade de analisar melhor a mudança e aumento da complexidade social. Em seu blog, Silvio Meira, professor da UFPE e um dos fundadores do Porto Digital em Recife, descreve a necessidade de aparição de outros atores – mais duas hélices representariam “capital investidor” e “usuários”. Em texto mais recente, o mesmo Silvio Meira relata que no Brasil o modelo de tripla hélice nunca decolou (faltou potência?). Para ele, ignoramos, globalmente, a realidade de novas hélices – além das anteriormente citadas, os empreendedores se somariam numa hélice sêxtupla.

Outros autores, como Carayannis & Campbell, defendem a ampliação das hélices com outro enfoque. Para estes autores, o trabalho de Etkowitz e Leydesdorff, ao tempo que fazia referência a um modelo de “n-tuple helix”, ficou encastelado no modelo triplo e, com isso, ignorou os avanços sociotécnicos que afetam o ambiente e demandas sociais (recortes de gênero, sexualidade, financeiros, educacionais, tudo dentro do mesmo balaio) e, em maior destaque, o desafio ambiental posto na forma de um cataclisma planetário que se aproxima. A quíntupla hélice da inovação e do conhecimento, para esta vertente, seria necessária para integrar na mesma imagem de partes-e-todo uma solução mais avançada. Fora disso, nós não teríamos ferramentas analíticas para gerenciar a inovação, o desenvolvimento tecnológico etc.

A pauta parece estar na ordem do dia. Pela lógica de Carayannis, Campbell e tantos outros, temas como a manifestação de vieses em sistemas de inteligência artificial, o recrudescimento da vigilância por políticas estatais de hacking governamental e tantas outras urgências do mundo do “direito digital” (este nome impróprio) poderiam ser rastreadas, explicadas e a solução viria pela integração com vistas a “aumentar o vento”, a “impulsionar”, ou seja, aumentar a potência da turbina.

Parece que a “adição de pás” para albergar a complexidade em modelos de análise sociológica do ambiente de inovação e tecnologia é algum consenso. Quais pás devem ser adicionadas é a questão. Então retorno a pergunta: aumentar as pás neste ventilador metafórico é suficiente para resolver problemas? Parece que temos uma panaceia teórica. 

Quando analisamos o aparato tecnológico do “ventilador”, percebemos que o aumento de pás não garante, per si, um aumento da potência dos ventos propulsionados. Na verdade, o aumento das pás fala mais sobre o “espalhamento” e “alcance” dos ventos gerados do que de sua potência. Outros elementos, de ordem morfológica e mecânica são mais importantes quando falamos de potência: a forma das pás, possibilitando ao mesmo tempo “cortar o ar” e “empurrar o ar” com maior eficiência, além da potência do motor e maior consumo de energia são as partes faltantes para fechar esta equação. 

Isso nos diz alguma coisa, neste cenário de metáforas que criamos. O objetivo do modelo das hélices e seu fim último analítico não é quantitativo, mas qualitativo. Pelo modelo pretende-se expor a necessidade de incorporação de perspectivas, de qualidades, ao processo de análise e descrição da inovação.

Não é, portanto, o caso de continuidade com uma lógica da modernidade clássica, num modelo voltado a nos levar “mais rápido” adiante. Mas,  aproximando-se de um imaginário simbólico contemporâneo mais complexo, um modelo para gerar movimentos mais complexos, espalhando o debate tecnológico e reconhecendo sua pervasividade social – a tecnologia afeta a todos, de forma desigual, em situações as mais diversas.

Eu atingi meus dois objetivos propostos de início. Mas o que tem a ver o debate sobre “ventiladores”, “pás” e “hélices analíticas” com inovar contra o “dogma da inovação”? 

Inovar, por excelência, é “por o novo” dentro de um determinado fluxo. Existem formas infinitas de pensar a inovação, a própria divergência quanto aos interesses a serem representados é um testemunho e um fato salutar. Entretanto, etimologicamente, ou, arriscando dizer, numa ontologia provisória dos sentidos atribuídos a esta palavra, não há inovação cujo comportamento demande uma adesão acrítica

Todas as práticas e símbolos imbricados no conceito de inovação, que só ganham suas formas atuais no final do séc. XIX, estão relacionadas com alguma dimensão de ruptura. No conflito das metacategorias históricas de “tradição” versus “modernidade”, a inovação é um agente que torce pela briga. 

Inovar é, em certo sentido, ser a favor de uma ruptura – ainda que não se saiba para onde os ventos irão soprar. Não à toa, falamos de “inovação sem permissão”, ou “iteração”, ou, até, “inove primeiro, quebre se preciso, peça desculpas depois e inove mais uma vez”.

Entretanto, pensando no desgaste ou fumaça – a famosa promessa sem fundamento, ou, no jargão do meio, a “venda de óleo de cobra” – relacionada ao modelo de tripla hélice, parece-me que as experiências de desenvolvedores, a educação universitária, especialmente no setor técnico, e as práticas de gestão recentes de atores públicos, estão mais preocupadas com o “deixar tudo como está”, do que com a defesa da inovação, especialmente se a mesma envolver riscos e um ônus de fundamentação aos poderes cristalizados. 

A dogmática da inovação se reproduz e perpetua um cenário de empobrecimento e muito “arroz de festa”. Cria-se um cenário em que a inovação, ontologicamente uma ruptura (boa ou ruim) é adotada como um alimento pasteurizado, um ultraprocessado acrítico. 

Na dieta informacional e imagética, este não parece ser um modelo que nós queiramos ter como pressuposto da construção de políticas e produtos que buscam solucionar problemas tão urgentes à sociedade. Na dieta analítica e nas lentes que usamos para enxergar e construir a realidade vale a mesma toada.

Contra a inovação como dogma, devemos apresentar a inovação em si.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.

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