Publicado em: 28 de fevereiro de 2024


O processo eleitoral está de volta na agenda nacional para as eleições minoritárias, focadas em prefeituras e vereanças.  Dois pontos merecem destaque: a quantidade de candidatos que controlam a base da burocracia estatal no Brasil, a nível municipal e, mais uma vez, o debate redivivo na tecnologia sobre os usos maléficos com fins desinformativos.

A cada ciclo eleitoral se renova, como um trauma do pleito eleitoral de 2018 e da adoção by default de uma gestão para a produção e apropriação da desinformação, o receio dos eleitores, agentes de estado e mídia tradicional com um cenário hipotético de dissolução de pilares de verdade e objetividade. Tal como aconteceu nos últimos pleitos, e ainda mais após o lançamento de modelos de inteligência artificial generativa, a pergunta que não quer calar: podemos combater a desinformação? Mais precisamente: temos a capacidade de combater a desinformação forjada com base em conteúdo gerado artificialmente por IA?

De bate-pronto, a resposta é um contundente “não”. 

A primeira ordem da negativa envolve o fato arqueológico de que a mentira e a verdade não são fenômenos oriundos do séc. XXI, mas fazem parte da cultura humana desde o seu nascimento. Mais do que isso, a sofisticação das ferramentas para forjar a mentira (falsa informação ou desinformação) muitas vezes não substitui, mas explora o elemento de confiança que agrega o tecido humano em sociedade.

Isso quer dizer, de forma bastante concreta, que o efeito viral da desinformação vem menos da sua verdade ou mentira interior, menos sobre a informação e mais sobre as pessoas que circulam, creem, divulgam e chancelam de forma acrítica. A “tia do zap” no mais das vezes é menos uma vilã de novela, articuladora de mentiras em rede, e mais uma comprometida com ideologias profundas – como todos nós somos.

A segunda ordem de negativa está ligada ao fato de que, se a tecnologia que cria condições de credibilidade parcial de conteúdos falsos ou artificiais é antiga, o novo se apresenta em sua disponibilização plataformizada e acessível a alguns cliques no buscador mais próximo. 

Deepfakes são produtos oriundos do processamento artificial de dados em algoritmos muito usados para fins artísticos, satíricos e críticos. Deepfakes também são os produtos que, sustentados em um agir doloso, transformam a verdade factual para fazer parecer real algo que nunca foi um evento concreto.  

Agora façamos a soma das negativas: se conteúdos absurdos ganham efeito viral por comprometimento ideológico (“vacinas matam”, “mamadeira de piroca”, “pizza gate” etc.), como esse comprometimento ideológico se manifestará a partir de um conteúdo que, em vista rápida, parece crível? Que exige, portanto, parar para olhar para ele e não estar de acordo de forma prévia?

Como uma série de filmes de baixo custo e gosto duvidoso, a desinformação já passou pela “origem”, pelo “agora”, e enfrenta um “retorno” – o vilão da vez é a Inteligência Artificial. E não é que a IA, como incrustada nos meios de produção atual, seja uma inocente mocinha. Mas a pergunta que se abre no horizonte é: quem são os humanos que se apropriam disso?

É para responder essa pergunta, por exemplo, que os Tribunais de cúpula do país, notadamente o STF e o TSE, têm buscado programas de combate à desinformação com a criação de campanhas educativas, parcerias com entidades de checagem e entidades de pesquisa – dentre elas o IP.rec. O esforço é louvável e necessário, mas não altera o grau de resposta à questão, em suas múltiplas dimensões de negativa.

Se uma eleição presidencial na década de oitenta foi rifada pela divulgação de notícia falsa em rede nacional, se nos rincões do Brasil grassa a prática de ofensas combatidas de forma incansável pela justiça eleitoral, não há como encarar um cenário em que uma tecnologia massificada, pulverizada e acessível como a deepfake produzida por IA possa ser combatida a contento. 

No papel de fazer cumprir a lei, o Tribunal Superior Eleitoral editou norma que responsabiliza aqueles que fizerem uso deste tipo de expediente tecnológico para propagar mentira, discriminando de forma expressa (com base no princípio da legalidade) que o uso de sistemas e modelos algorítmicos configura o mesmo tipo de ilícito eleitoral. Ainda, cria obrigação de diligência para que as grandes empresas retirem, ato contínuo à notícia, conteúdo falso veiculado através de suas aplicações.

Temos vilão, temos enredo, temos até anti-heróis (o poder de Estado não deve estar nos polos de valores), onde está o mocinho? 

O mocinho é a educação crítica, para o agir libertador, de cada eleitor e eleitora. É um final anticlimático, mas objetivamente verdadeiro. As “vulnerabilidades” dos comprometimentos e acordos tácitos ou subterrâneos feitos pelos indivíduos e pela sociedade, transigindo com o absurdo e o fantástico, são a base para explorar e viralizar uma fake news. 

Sim, a inteligência artificial torna mais difícil entender o verdadeiro e o simulado, mas toda interpretação recai sobre o indivíduo que interpreta. Se este indivíduo vive a partir dos valores humpty-dumpty, cuja cartilha diz que “o que eu digo significa aquilo que eu quero que signifique”, e transforma toda a semântica e história de valores da sociedade em uma grande bagunça, bem… 

É importante finalizar com um pouco de filosofia não requisitada: aparatos e objetos tecnológicos só se concluem como ato no uso; toda tecnologia é, em certo sentido, possibilidade de ocorrer, portanto, potência. É menos sobre o martelo e mais sobre quem segura o martelo.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.

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