O que é trabalho? É possível responder a essa pergunta através de conceitos abstratos, sejam acadêmicos, científicos, jurídicos, empresariais, organizacionais etc; ou através de conhecimento prático das situações que designamos como trabalho. A primeira estratégia é a escolhida pela “história dos conceitos” de Reinhart Koselleck que visa identificar como pessoas pensam e conceituam o trabalho ao longo do tempo e espaço [1]. A segunda, se aproxima da sociologia do conhecimento, como proposto, por exemplo, por Berger e Luckmann em “A Construção Social da Realidade”, segundo os quais a vida cotidiana é uma realidade intersubjetiva que articula uma realidade externa interpretada e dotada de sentido interno, subjetivo. Aqui, seriam nas experiências da vida cotidiana que se formariam e empregariam esquemas de tipificação que organizam a percepção e apreensão das próprias situações experienciadas e seus participantes [2].

 

As dimensões tratadas por essas estratégias se relacionam e se afetam mutuamente. Quando o mundo do trabalho muda, adaptações ou novos conceitos passam a ser necessários para compreender e incidir neste mundo transformado e em transformação. Sendo os conceitos derivados das próprias experiências da vida cotidiana, há vínculos entre os esquemas de tipificação variavelmente compartilhados e anônimos e os conceitos desenvolvidos por pesquisadores, juristas ou gerentes organizacionais. Simultaneamente, novos instrumentos de compreensão, definição e categorização de uma determinada realidade, abrem possibilidades de ação sobre essa, na medida em que passam a estruturar a própria percepção e apreensão das experiências, isso é, os esquemas de tipificação. 

 

No caso do trabalho, observa-se na última década o surgimento e a consolidação de novas formas de sua realização, estruturadas pelo uso de tecnologias da informação e comunicação (TIC’s). Plataformas digitais passaram a promover as modalidades emergentes de trabalho, oferecendo atividades remuneradas de acesso facilitado numa época onde o emprego formal se vê mais raro. Freelancers, mais ou menos especializados, podem se conectar a clientes ao redor do mundo sem sair de casa, quando possível.  Enquanto a automação de diversas atividades e funções avança, processo acentuado pelo uso e desenvolvimento da inteligência artificial, o típico trabalhador industrial e, mais recentemente, o trabalhador de escritório, perdem espaço. Os esquemas de tipificação das experiências de trabalho vão mudando, moldados pelas mudanças do mercado de trabalho. Algumas profissões desaparecem e outras surgem pelo advento das tecnologias, afetando os esquemas de percepção e apreensão deste ou aquele trabalho como uma profissão, isso é, uma atividade especializada que requer um conjunto de conhecimentos específicos.

 

Peguemos como exemplo o último filme de Ken Loach [3], “Você não estava aqui” (2019). A obra de ficção relata a vida cotidiana de uma família marcada pelo empobrecimento fruto da crise de 2008. O pai, Ricky, após longo desemprego permeado por virações, busca num serviço de entrega de encomendas a saída para seus problemas financeiros. Tratado como franqueado e não como empregado, ele deve bancar toda a infraestrutura básica para a realização do serviço, que abarca as metas e rotas definidas pelo sistema digitalizado. Sua companheira, Abbie, trabalha como cuidadora e recebe por cada atendimento realizado. Nenhum recebe por hora, mas por metas mal remuneradas que devem ser cumpridas para que, acumuladas, garantam uma renda satisfatória para suas necessidades e desejos básicos, fato este que, ao longo da narrativa, vai precarizando não apenas as relações de trabalho, mas as relações interpessoais entre os personagens de toda a família, nos quais se incluem um filho adolescente e uma filha criança. 

 

É possível observar aqui como as práticas de trabalho são estruturadas e cognoscíveis para as pessoas. A noção de autonomia, exprimida no desejo de “ser seu próprio patrão” pelo protagonista, pode ser considerada como um esquema de percepção e apreensão de uma rotina de trabalho que é apresentada na narrativa do filme como extenuante, apressada, sem folgas e insuportável, baseada em uma subordinação que ignora e pune toda e qualquer dificuldade do trabalhador em executar o trabalho.

 

Observando tais transformações reais, pesquisadores, juristas e legisladores, por exemplo, vêm desenvolvendo novas formas de conceituar e enquadrar essas formas de trabalho e suas diferenças para os modelos antigos ainda vigentes ou não. Destaco, como exemplo, as noções de uberização, plataformização, gig economy e microtrabalho. Elas permitem observar e enquadrar aspectos importantes e distintivos das novas práticas de trabalho que vêm surgindo e ganhando força no cenário atual, ou até promovê-las, dependendo de seu uso. Elementos como trabalho sob demanda, just in time, trabalho de plataformas digitais, flexibilidade, autonomia, precariedade etc são enfatizados ou não por diferentes conceitos.

 

Nesse cenário de transformações práticas e teóricas, a resposta à pandemia da COVID-19 impõe uma nova forma de organizar a vida cotidiana, incluindo as dinâmicas de trabalho. A necessidade de distanciamento social durante a quarentena implica na suspensão de diversas atividades, enquanto outras, essenciais, estão sendo mantidas. Dessas, o serviço de transporte de bens e mercadorias em diversas escalas ganha uma relevância crítica, visto que os destinatários não podem, nem devem, efetuar naturalmente atividades que envolvam interação social física, “o caso prototípico de interação social” (p.47) segundo Berger e Luckmann. 

 

Devido à demanda crescente por esse serviço, empresas como a Amazon anunciam medidas para expandir e fortalecer seus serviços durante o período. A empresa citada, além de aumentar a remuneração por hora oferecida aos seus funcionários, vai abrir cem mil vagas parciais ou integrais apenas nos Estados Unidos da América. Aqui no Brasil, empresas como Uber, Uber Eats, 99, iFood e Rappi continuam operando. Enquanto algumas dessas plataformas oferecem auxílios financeiros para os trabalhadores que forem diagnosticados com a COVID-19 e proteções para esses, o setor de transporte e entregas vem recebendo um boom no período, sendo uma preciosa e talvez a única alternativa para a sobrevivência de restaurantes, bares e outros negócios, sem tomar parte nos riscos da atividade

 

Frente a tais movimentos, Brian Merchant aponta que as modalidades de trabalho baseadas em plataformas vão engolir os trabalhadores dispensados dos setores suspensos e seus clientes, enquanto diversas empresas e setores irão quebrar e talvez nunca se recuperem. Merchant argumenta que isso acelerará a “amazonificação” da economia, com a transição de empregos em pequenos negócios para grandes conglomerados tecnológicos. A amazonificação da economia significará, segundo ele, a dependência do trabalho precarizado, mal remunerado, intermitente e facilmente descartável ou substituível, assim como a monopolização dos mercados por esses conglomerados tecnológicos. Lembrando que essa empresa visa à automação total de seus armazéns até 2030, Merchant salienta a possibilidade de extinção em massa das atividades desempenhadas por esses trabalhadores. 

 

Se, por um lado, esses setores vêm expandindo seus serviços e de maneira ainda mais acentuada durante a pandemia , por outro, eles oferecem trabalhos, formais ou informais, repetitivos e facilmente automatizáveis. Inclusive, parte das atividades já são automatizadas, o que garante sua predominância nos mercados que atuam. A regulação algorítmica do trabalho, argumenta Karen Yeung em entrevista ao DigiLabour, significa um processo de “mercantilização do trabalho humano, no qual as necessidades dos indivíduos por segurança, estabilidade e continuidade na gestão de suas vidas cotidianas são consideradas irrelevantes para o processo que combina, algoritmicamente, a assistência humana para executar tarefas específicas com as pessoas que se inscrevem nas plataformas para a realização de tarefas nos termos determinados por algoritmos”.

 

O uso de algoritmos e outras técnicas de automação para estruturar as atividades de trabalho, nos próprios termos dessas técnicas, aponta para uma forma de trabalho humano que deve se adequar ou se igualar ao trabalho não humano, o “trabalho morto”, enquanto não for substituído por este último, como aponta Ricardo Antunes. Observamos, como no filme de Ken Loach, uma rotina de trabalho que leva seres humanos a extremos para alcançar uma renda minimamente capaz de atender às necessidades de sobrevivência, em atividades que não oferecem progressão de carreira, nem proteções e garantias trabalhistas, estando sob a mira da automação. É por isso que Ludmila Costhek Abílio aponta que a “uberização é a subsunção real da viração”, aproveitando-se de bases de precariedade “em formação há décadas no mundo do trabalho” por movimentos de flexibilização e precarização do trabalho que, pode-se dizer, passam a formar e a estruturar esquemas de percepção e apreensão das próprias situações de trabalho mais abertas à introdução dessas formas de trabalho precárias.

 

Uma das consequências possíveis para a expansão e consolidação dessas formas de trabalho é sua normalização, tanto como frequência regularmente observável, quanto como formação de normas e regras, formais e informais, sobre tais formas [4], e até  a predominância dessas formas no mercado de trabalho, pressionando outros atores em direção à desregulação e à maior precarização do trabalho, visando à manutenção da competitividade. As regras e normas que estão e estarão sendo elaboradas para enquadrar os novos regimes de trabalho serão elementos centrais para o avanço ou freio da precarização e da desregulação do mercado de trabalho no futuro das economias ‘plataformizadas’. Isso, em parte, depende dos instrumentos conceituais utilizados pelos atores responsáveis pela elaboração legislativa e jurídica para compreender, definir e explicar essas práticas. 

 

Se as décadas de políticas de precarização e flexibilização do trabalho contribuíram para a aceitação das situações de precariedade, novas políticas estatais baseadas em outros conceitos e esquemas de apreensão da realidade podem construir as bases para a desprecarização do mundo do trabalho. Em diversos lugares, despontam movimentos no sentido de reconhecer os trabalhadores de plataformas como empregados, implicando em seguranças e garantias importantes para eles. No caso de motoristas de aplicativos, por exemplo, decisões legislativas e jurídicas nesse sentido ocorreram na Califórnia, Estados Unidos, em 2019Reino Unido, em 2018, França, em 2020, e Argentina, em 2019, fornecendo bases para reconfiguração da economia plataformizada em geral. 

 

No Brasil, em 2018, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região afirmou que os elementos que caracterizam a relação empregatícia, a dizer, habitualidade, onerosidade, pessoalidade e subordinação, existem na relação entre motoristas e a Uber. Após a Uber recorrer da decisão, a 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) rejeitou, por unanimidade, a existência da relação empregatícia entre o motorista e o aplicativo de transporte

 

Em diversas dessas decisões, noções que organizam a configuração das relações trabalhistas, como a de subordinação, foram alvo de debates, sendo centrais para os entendimentos jurídicos e legislativos apontados. Se a compreensão foi de que não há subordinação, na decisão do TST de 2019, declarou-se, na França, exatamente o oposto: há relação de subordinação entre motorista e aplicativo. No mesmo sentido, os juízes britânicos declararam haver “um alto grau de ficção” no acordo padrão entre motoristas e a Uber, no qual afirma-se que os motoristas são “self-employed independent contractors”, país onde se passa o filme de Ken Loach.

 

Fica clara a existência de um horizonte de disputa para a organização das experiências e dos esquemas de apreensão da realidade cotidianos através de conceitos empregados nas decisões normativas, mas influenciados pelos próprios esquemas de apreensão da realidade. Esse duplo movimento é, visivelmente, uma das chaves para a mudança social e para a dignificação do trabalho humano. Uma estratégia, arrisco, é fornecer formas empáticas de experimentação da realidade vivida pelos precarizados do mundo do trabalho àqueles que formulam conceitos empregados nas decisões, tornando evidente como ocorre, na prática, a subordinação desses trabalhadores através das punições e recompensas definidas pelas plataformas.

 

REFERÊNCIAS:

[1] Reinhart Koselleck. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, p. 25, 2006. 

[2] Peter L. Berger & Thomas Luckmann. A construção social da realidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1985. 

[3] Você não estava aqui. Direção: Ken Loach. Produção: Rebbeca O’Brien. New York (US): Zeitgeist Films, 2019. 

[4] Dennis Wrong. The problem of order. Simon and Schuster, 1994.

Pedro Amaral

Mestre e doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco e pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas de Segurança (Neps) da UFPE, desde 2014. Tem interesse na economia política da internet e nas dimensões interacionais da adoção de tecnologias. Tem feito pesquisa de campo desde 2012 e tem se dedicado mais à etnografia e métodos quantitativos. No IP.rec, atua na área de Privacidade em Vigilância, com ênfase em políticas de criptografia e tecnologia na segurança pública.

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