Publicado em: 21 de setembro de 2023


O índice GovTech Maturity do Banco Mundial, lançado em novembro de 2022, analisou o nível de digitalização de diversas ferramentas de governos considerando quatro componentes centrais: (1) principais sistemas governamentais; (2) prestação de serviços; (3) integração e envolvimento dos cidadãos; e (4) índice de habilitadores GovTech. A transformação digital no setor governamental não é um assunto novo na esfera de desenvolvimento mundial – alguns países enfrentam problemas como a inclusão digital em partes remotas do país, com a necessidade de projetos de instalação de fibra ótica nesses lugares, além de projetos de educação digital voltado para pessoas de baixa renda ou da população mais velha. Essas estratégias variam de acordo com a situação econômica e recursos disponíveis no país; no entanto, algumas abordagens comuns incluem a criação de políticas e regulações favoráveis à inovação digital, investimentos em infraestrutura de tecnologia, a digitalização de serviços públicos, entre outros. É fundamental ressaltar que as estratégias de transformação digital são dinâmicas e se adaptam às necessidades de cada grupo onde são aplicadas.

A digitalização de governos oferece certas vantagens, como maior eficiência na prestação de serviços e acesso mais fácil à informação; no entanto, também apresenta desafios e perigos, como preocupações com a segurança cibernética devido a um aumento no risco de ataques, a privacidade e a proteção dos dados dos cidadãos – que podem ser ameaçadas pela coleta massiva de informações pessoais – e a exclusão digital que ocorre quando nem todos têm igualdade de acesso ou habilidades para utilizar os mesmos serviços digitais. Esse último fator é considerado um risco à medida que possui o poder de potencializar desigualdades sociais quando nem todas as pessoas naquele grupo possuem as mesmas oportunidades. Segundo o GovTech Maturity, do Banco Mundial, a Coreia do Sul e o Brasil aparecem como exemplos de governos mais digitalizados do mundo, ainda que essa digitalização não esteja presente em todos os segmentos da sociedade; enquanto que a Alemanha, por exemplo, está implantando uma estratégia digital até o ano de 2025, quando pretende ter grande parte de seu governo digitalizado.

A Germany Digital Strategy é um projeto do Governo Federal alemão com foco na digitalização de processos, de maneira a posicionar o país na vanguarda na prestação de serviços informatizados, com atividades agrupadas em três eixos temáticos: “Sociedade Conectada” (“Networked Society”), com projetos que envolvem a sociedade civil em maior esfera junto ao governo, como a digitalização do sistema público de saúde, a mobilidade, a educação digital e o acesso a cultura e a mídia; “Economia Inovadora” (“Innovative Economy”), com subáreas que envolvem a economia do país, como o incentivo à ciência e à pesquisa tecnológica e, por fim, “Estado Digital” (“Digital State”), com subáreas como cibersegurança, dados abertos, justiça digital – que, inclusive, inclui projetos de digitalização do sistema judiciário alemão – e gerenciamento digital.

No Brasil, o projeto gov.br se destacou nos últimos anos por ser uma grande plataforma digital com o intuito de reunir diversos serviços em um só lugar, como os relacionados ao imposto de renda, ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e à renovação de carteira de motorista. A plataforma unificada foi projetada para simplificar e centralizar o acesso a serviços públicos online e informações governamentais, visando aprimorar a eficiência, a transparência e a acessibilidade desses serviços. O gov.br foi destaque por utilizar a plataforma “Plone”, um sistema de gerenciamento de conteúdo de código aberto que pode ser usado para criar sites e/ou portais. Alguns perigos da plataforma são os já citados relacionados à privacidade – como o vazamento de informações pessoais e o acesso não autorizado de informações sigilosas – e a distinção entre dados privados e públicos. Em relação à proteção de dados, há ainda um risco maior devido à necessidade de coleta de dados biométricos, já que o sistema foi construído com sua autenticação de segurança baseada na coleta de biometria, representada pelo reconhecimento facial. E aqui reside uma crítica importante: a segmentação de acesso a serviços baseada no conjunto de dados cedidos à plataforma, que divide as contas de cada um dos usuários em níveis (bronze, prata e ouro), sendo o mais alto aquele em que é preciso cadastrar a biometria facial e que, por consequência, tem acesso a uma maior quantidade de serviços. Segundo o governo, isso se dá por questões de segurança, mas há pouca evidência na literatura técnica de que a verificação de identidade por biometria seja segura, o que pode representar um risco para as pessoas na medida em que aumenta a coleta de dados pessoais e, por conseguinte, a complexidade do sistema, reconhecidamente um fator relevante para determinar a sua insegurança.

Na Alemanha, a estratégia digital também prevê atuação em áreas concernentes ao controle de desinformação na esfera digital e ao combate ao discurso de ódio no projeto intitulado “Digital Civil Society”, uma das 18 áreas de abordagem propostas. Para tal, o projeto criou uma iniciativa chamada de “Codificação Cívica – Rede de Inovação em IA para o Bem Público” (“Civic Coding – Innovation Network AI for the Common Good”), que visa fornecer apoio financeiro a organizações da sociedade civil cujos projetos tenham como objetivo o fortalecimento e capacitação de cidadãos para reconhecer a desinformação. Porém, apesar de ser vista como grande prioridade para o governo, a estratégia digital alemã encontra algumas barreiras como o modelo federativo do país, onde cada estado/município tem independência (por exemplo, em como tratar dados), e boa parte da população e instituições burocráticas ainda são apegadas a sistemas analógicos. Ainda, diversas críticas recentes apontam para a falta de participação da sociedade civil no projeto. Segundo o website da iniciativa de estratégia digital alemã, será criado um advisory board com função de auxílio e monitoramento da estratégia digital. Porém, outras críticas já foram direcionadas ao advisory board no sentido de que não há espaço de discussão para os projetos, nem de participação do público. Além disso, a falta de estratégia e compreensão da aplicação dos projetos na prática também vem frustrando o andamento do projeto.

Em Recife, capital pernambucana, uma estratégia digital foi utilizada para regulamentar o estacionamento em algumas áreas urbanas e do centro da cidade, chamada de Zona Azul. Porém, como a utilização deste sistema depende de um aplicativo de celular que permite o “cadastro” da placa do veículo com o consequente pagamento de uma taxa para o estacionamento, está condicionada às pessoas terem acesso a um celular (ou procurarem alguém com acesso a um celular, num dos pontos de compra da cidade), o que acaba se tornando um sistema de transformação digital excludente. O site da Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano de Recife (CTTU), especifica que: “A partir de 2 de setembro, a utilização dos estacionamentos rotativos em área pública só poderá ser ativada digitalmente, através do aplicativo ou dos pontos de vendas.” (Zona Azul Recife). Caso mais e mais funções outrora físicas passem por uma transformação digital, ou seja, pelo estado de analógica ao digital sem o devido estudo de impacto, situações como essa passarão a ocorrer em outras áreas governamentais – mobilidade urbana, saúde pública, benefícios sociais, entre outros.

No caso da Coreia do Sul, conhecida pela tecnologia de ponta, Internet de alta velocidade, “cidades inteligentes”, como é o caso de Seul, os desafios relacionados à proteção  de dados e desigualdade digital também são latentes. A desigualdade de acesso aos serviços públicos fornecidos pelo governo se dá principalmente em áreas remotas e rurais do país, com a população mais velha. Outro grande problema são os ciberataques no país, que cresceram 119.7% desde 2017, ocasionando roubos de dados pessoais dos cidadãos, cartões de crédito, número de cadastro social e outros detalhes bancários. Tanto empresas privadas como serviços públicos vêm sendo alvo desses ataques no país, que chama atenção por ser mundialmente conhecido como uma sociedade altamente tecnológica e digitalizada. Por fim, o que é chamado da hipótese do “knowledge gap”, ou “hipótese da lacuna de conhecimento”, que faz referência à falta de acesso a veículos midiáticos como causa para ausência de compartilhamento e disseminação de determinado conhecimento, um estudo de Oxford publicou uma análise sobre a falta de acesso à Internet na população da Coreia como um perigo para a desinformação política. No artigo, é comentado que a maioria dos perfis políticos do Parlamento coreano possuem uma página própria na Internet, ainda que o uso da Internet para informação política no país seja baixo – provocando portanto a “lacuna de conhecimento” política no país.

Em resumo, governos que desejam efetuar a transição de serviços e estruturas analógicas para digitais necessitam, essencialmente, da condução de uma avaliação de impacto que leve em consideração grupos sociais e gerações diversos. A participação pública é fundamental neste processo, permitindo que cidadãos exerçam seu direito de expressar opiniões e moldar o modelo de sociedade no qual desejam viver. O desenvolvimento de um conhecimento tecnológico sólido para a prevenção de ataques cibernéticos e garantia da segurança dos sistemas implementados também se mostra de extrema importância.

Isabel Constant

Graduada em Cinema e Audiovisual pela UFPE e em Direito pela Unicap, tendo cursado parte do curso na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Portugal. Alumni da 3ª Edição da Diplomatura en Gobernanza de Internet (DiGi) e integrante do Youth Observatory (ISOC). Atualmente, também ocupa o cargo de Gerente de Inovação no Núcleo de Gestão do Porto Digital. No IP.rec, atua como pesquisadora na área de Responsabilidade Civil de Intermediários, também pesquisando sobre desinformação e regulação de plataformas.

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