Olhando pra trás…

O ano de 2019 vai chegando ao fim. Um ano intenso, em muitos sentidos, desafiador, mas que também nos ensinou muita coisa. Nessa época do ano, resta-nos refletir sobre o que passou, reconhecer os ganhos, aprender com os erros e planejar o ano que está por vir.

E nesse exercício de meditação, começamos essa retrospectiva citando os aspectos políticos da nossa atuação em 2019.

É certo que esse ano foi um ano de muitas mudanças políticas, decorrentes do processo eleitoral de 2018, que elegeu um Congresso Nacional com perfil conservador, o que dificultou a atuação de entidades e pessoas que trabalham com a perspectiva dos direitos humanos. Neste campo de conflitos e desafios, tivemos discussões muito importantes sobre a Medida Provisória nº 869/2018, que resultou na Lei nº 13.853/2019, que alterou a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e criou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Participamos, como membro da Coalizão Direitos na Rede, de uma das audiências públicas promovidas no âmbito da comissão especial que discutiu a medida provisória perante o Congresso Nacional, além de fazer o trabalho de advocacy associado a esse tema. Apesar dos nossos esforços, a lei não contemplou todas as modificações por nós propostas, tendo em vista os diversos interesses em jogo – dentre os quais destaque-se o fator econômico.

Ainda neste mérito, em 2019, por causa das diversas ameaças aos direitos humanos e aos grupos ativistas e defensores da pauta humanista, assinamos muitas cartas de apoio a causas diversas, inclusive ambientais. Expressamos nosso repúdio, através de carta, à prisão arbitrária do desenvolvedor de software e ativista pela segurança digital Ola Bini; também manifestamos apoio à redação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, enfatizando sua constitucionalidade e necessidade de manutenção para a defesa da liberdade de expressão na Internet; e, mais recentemente, apoiamos nota da Artigo 19 sobre a necessidade de proteção dos ativistas pelos direitos digitais, além de outros apoios efetuados por meio da Coalizão Direitos na Rede. Foi um ano bem atribulado nesse aspecto, contudo acreditamos que, conforme nossos princípios e diretrizes de atuação, fizemos o que estava ao nosso alcance.

Uma grande preocupação surgida em 2019 foi sobre o aparato de vigilância iniciado pelo governo Bolsonaro. Apesar das disposições contidas na LGPD, o governo publicou dois decretos que vão de encontro à lei, promovendo a criação do Cadastro Base do Cidadão com todas as informações dos cidadãos lá concentradas, sendo dado livre acesso a todas as entidades públicas e cujo compartilhamento entre órgãos pode se dar sem qualquer comunicação ao titular dos dados pessoais. Falamos sobre esse caso aqui.

Outro grande motivo de inquietação foi a instalação da CPMI de Fake News. Em nota, a Coalizão Direitos na Rede alertou para a possibilidade de danos à liberdade de expressão, quando se associa o debate da desinformação aos demais temas que são tratados na CPMI sobre práticas criminosas no ambiente digital. Há um temor de que a conclusão da comissão seja no sentido de criminalizar práticas comuns na rede, de forma a cercear a liberdade de expressão dos usuários de Internet no Brasil.

Do ponto de vista institucional, 2019 nos trouxe uma equipe nova e muito querida. Através da primeira chamada pública para voluntários, realizada entre abril e maio, selecionamos a melhor equipe em linha reta da América Latina, que tem se dedicado muito às atividades desenvolvidas pelo Instituto e proporcionado ao IP.rec um crescimento em muitos aspectos. Mariana, Isadora, Pedro, Tassiana, Isabela, Isabel e Thaís se juntaram ao grupo que já contava com Marina, Paula e os diretores Raquel, André, Ramiro, Caio e José Paulo para compor grupos de pesquisa, incidência e capacitação. A essa equipe, só temos a agradecer a dedicação e desejar que estejamos juntos por muito mais tempo.

E, por causa dessa equipe, pudemos realizar alguns dos melhores eventos deste ano: o Minicurso da Escola de Governança da Internet, em parceria com o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que foi um sucesso e levantou discussões excelentes durante os dois dias, no qual pessoas de diferentes setores tiveram a oportunidade de refletir sobre a Internet de uma nova maneira; o lançamento na nova série de eventos IP.hacks (com a adoção do Rex como mascote oficial do Instituto), com a discussão sobre a nova Diretiva Europeia de direitos autorais;; e o III Seminário do Marco Civil da Internet, que tratou do tema da desinformação e seus desdobramentos, as ameaças à liberdade de expressão e os efeitos nos processos eleitorais mundo afora. Esses dois últimos eventos foram realizados na Ceça, que agora é também o local onde estabelecemos nosso escritório.

Outro destaque desse ano foi a participação da equipe no Fórum da Internet no Brasil, realizado em Manaus. A caravana feminina do IP.rec compôs a programação do Fórum, realizando dois workshops propostos pelo Instituto e participando como convidadas de atividades propostas por grupos parceiros. É um enorme orgulho para nós, a cada ano que passa, ver a nossa participação no FIB crescer quantitativa e qualitativamente, já que este é um dos eventos mais importantes do nosso calendário anual.

As pesquisas também estão a pleno vapor no IP.rec! Os grupos de Automação do Trabalho, Multissetorialismo e Governança da Internet, Vigilância e Privacidade e Inovação Aberta, Dados Abertos e Ciência Cidadã estão com pesquisas em andamento e muito do conteúdo produzido tem sido publicado no nosso blog, a fim de dar publicidade aos resultados.

No âmbito internacional, fomos representados por Mariana Canto, uma de nossas pesquisadoras, em diversos eventos e conferências, entre eles o IGF – Internet Governance Forum, o Workshop on Feminist Data Protection organizado pela Universidade de Tübingen e a Universidade Livre de Bruxelas em novembro e o simpósio Intercultural Digital Ethics organizado pelo Oxford Internet Institute em dezembro. Também contribuímos para a consulta à comunidade realizada pelo Painel de Alto Nível sobre Cooperação Digital da ONU.

Houve melhorias também na área da comunicação: lançamos novo site e, com ele, uma newsletter mensal, além de contarmos, desde outubro, com o auxílio luxuoso da UNILAB, a Agência-Laboratório do curso de jornalismo da UNICAP, nas nossas redes sociais e assessoria de imprensa. Sentimos que ganhamos muito com essa parceria e aqui reconhecemos e agradecemos o trabalho do professor Luiz Carlos Pinto e as estagiárias Vitória e Dara!

E o que esperar de 2020?

O ano que entra tende a ser ainda muito difícil em termos políticos. Apesar do grande esforço que temos feito em sensibilizar o legislativo federal para a importância de se discutir os temas relativos à Internet e às novas tecnologias com suporte científico e com a representação multissetorial nos debates, essa não é a realidade padrão, o que acarreta grande prejuízo para a sociedade civil em geral. Claro que isso não é motivo para esmorecer, pelo contrário. O trabalho continua, na tentativa de enriquecer as discussões e criar espaços de comunicação entre os setores da sociedade, alertando sobre o que está em jogo no campo dos direitos digitais.

Particularmente, consideramos alarmante a perseguição a grupos ativistas e defensores de DDHH, com especial atenção aos exércitos virtuais de propagação de ódio e mentiras. As narrativas criadas esse ano, como, por exemplo, aquelas de que o fogo na Amazônia foi iniciado pelas ONGs e financiado pelo ator Leonardo DiCaprio, tendem a aumentar, mantendo uma indústria dedicada exclusivamente à produção de conteúdo falso para influenciar a opinião pública. Esses processos precisam ser denunciados e combatidos com força, a fim de que prevaleça a convivência sadia e construtiva entre os principais atores políticos do país, assim como para a manutenção de um padrão de informação, e não desinformação, dos cidadãos brasileiros.

Em 2020, continuaremos com o nosso trabalho de influenciar o debate político a nível nacional e local sobre os temas de regulação de novas tecnologias, pois sabemos que esse é um dos objetivos da produção do conhecimento científico. Além disso, faz parte da técnica multissetorial o diálogo aberto entre os diversos setores, sendo tal princípio valorizado e estudado em nosso Instituto.

A nível interno, pretendemos expandir nossas pesquisas, ampliando o escopo de atuação, e publicar resultados mais concretos daquelas já em andamento. Além disso, outro dos nossos objetivos é ampliar os esforços em processos de capacitação, principalmente cursos de extensão, a fim de formar profissionais informados e críticos sobre os temas que nos são afetos.

A ampliação de parcerias, a nível local e nacional, quiçá internacional, também é outra meta para 2020. Estamos sempre abertos à realização de ações em conjunto com outros grupos que tenham pauta e valores semelhantes, pois entendemos que o trabalho em conjunto tem muito mais força e reverbera mais longe.

Para além de tudo o que foi dito, o IP.rec reafirma o seu compromisso com a defesa dos direitos humanos e o combate a toda e qualquer forma de censura, além do apreço pelo debate multissetorial e pela interdisciplinaridade em suas atividades, sejam elas públicas ou internas. Colocamos nossas redes de contato à disposição de todos os que desejem saber mais sobre as nossas produções, pesquisas e eventos, que queiram colaborar ou mesmo que apenas queiram passar para tomar um cafezinho. Nossas portas estão abertas.

Um abraço a todos e boas festas! Que em 2020 a gente possa pensar a inovação tecnológica de uma maneira mais humana!

Raquel Saraiva

Presidenta e fundadora do IP.rec, é também graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestra e doutoranda em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2017). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Algoritmos e Inteligência Artificial, Privacidade e Vigilância e Tecnologias de Realidade Virtual e Aumentada, mas também se interessa pelas discussões sobre gênero e tecnologia.

Compartilhe

Posts relacionados