Publicado em: 8 de junho de 2023

No início do mês passado, qualquer pessoa que acessasse a página principal do Google no país iria encontrar um link para um texto assinado pelo diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas do Google Brasil, Marcelo Lacerda, com o posicionamento da empresa sobre o PL nº 2630/2020, de autoria do senador Alessandro Vieira, que institui a “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. Com o título “O PL das fake news pode aumentar a confusão sobre o que é verdade e mentira no Brasil”, o texto afirmava que, caso o projeto em questão fosse aprovado da forma como está atualmente, apenas iria aumentar a desinformação na Internet, impedindo as plataformas de retirar conteúdos nocivos da rede. 

De acordo com uma pesquisa do Laboratório de Estudos e de Internet e Mídias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Netlab), a empresa estaria ainda utilizando a sua ferramenta de busca para direcionar os usuários e para ampliar o alcance de conteúdos contrários à proposta e também veiculando anúncios sem sinalização contra o PL. Conforme explica o Netlab, como os anúncios não estavam sinalizados como sendo relativos a temas políticos ou sociais, não era possível encontrar informações de transparência sobre eles na central de publicidade da plataforma.

O estudo detectou ainda anúncios do Google com críticas ao PL no Spotify, plataforma que, segundo a pesquisa, não permite publicidade envolvendo temas políticos. O Google também teria pago por propagandas no Facebook e no Instagram, que, assim como as que estavam sendo veiculadas em sua própria plataforma, não apresentavam qualquer sinalização quanto ao seu teor. Apenas um desses anúncios foi posteriormente recategorizado pela Meta

Ainda de acordo com a pesquisa, o Youtube, uma das plataformas controladas pela Google, também privilegiou vídeos partidários contrários à proposta. Além disso, colocou na interface dedicada a criadores de conteúdos, o Youtube Studio, um link que redirecionava os usuários a um texto que abordava os “impactos” da proposta para esse segmento, afirmando que a lei, feita de forma “apressada”, faria com que alguns criadores de conteúdos ficassem isentos de obedecer às regras da plataforma sobre desinformação, bem como daria ao Governo a autoridade máxima  para decidir sobre o que pode ou não estar no Youtube.

Diante disso, o Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo cobrou explicações das empresas envolvidas no caso sobre os indícios de violação de direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão ligado ao Ministério da Justiça, também enviou um ofício ao Google determinando que a empresa sinalizasse como publicidade os conteúdos produzidos sobre o PL e que não promovesse censura de posicionamentos contrários ou interferisse no alcance de posições convergentes na plataforma, além de ordenar a veiculação, em até duas horas, de uma contrapropaganda para informar os brasileiros sobre seus interesses comerciais relacionados ao projeto em discussão, estabelecendo a aplicação de uma multa em caso de descumprimento. 

Dias depois, foi a vez do Telegram atacar o PL com mentiras. A empresa enviou aos usuários do aplicativo uma mensagem contra a proposta afirmando que “O Brasil está prestes a aprovar uma lei que irá acabar com a liberdade de expressão” e que “O PL 2630/2020 dá ao governo poderes de censura”. Diante da nova ofensiva, o MPF cobrou explicações da empresa sobre o ocorrido e o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, ordenou retirada da mensagem em até uma hora e a publicação de uma retratação, sob pena de bloqueio do aplicativo por setenta e duas horas em todo país mais multa. Além disso, houve denúncias nas redes sociais de que o Twitter estaria diminuindo o alcance de conteúdos e derrubando hashtags a favor do projeto.

É importante destacar, nesse sentido, que as práticas empregadas pelas plataformas nesse episódio extrapolam a simples discordância entre atores políticos em uma democracia, já que elas estariam utilizando da sua posição econômica para manipular a opinião pública sobre um tema que é de seu interesse. Além de veicularem anúncios de forma pouco transparente e dos indícios de alteração do alcance e do direcionamento das postagens, muitas das afirmações propagadas pelas empresas são falsas e estão sendo utilizadas estrategicamente para provocar medo e terror na população. Os textos com teor sensacionalista não aprofundam a discussão sobre o PL, só fazem afirmações vagas e categóricas, o que dificulta o entendimento comum sobre o que se está sendo realmente discutido, atrapalhando, consequentemente, o andamento da proposta no Congresso Nacional.

Apesar disso, não é a primeira vez que as plataformas lançam ataques ao projeto de lei. Em 2022, a Meta pagou anúncios nos principais jornais do país dizendo que o PL, ao invés de combater as fake news, prejudicaria “a lanchonete do seu bairro”. Em um comunicado conjunto, o Google, a Meta, o Mercado Livre e o Twitter também se posicionaram contra o projeto, declarando que “o texto, que ficou conhecido como PL das Fake News, passou a representar uma potencial ameaça para a Internet livre, democrática e aberta que conhecemos hoje” e que irá “restringir o acesso das pessoas a fontes diversas e plurais de informação; desestimular as plataformas a tomar medidas para manter um ambiente saudável online; e causar um impacto negativo em milhões de pequenos e médios negócios”. O Google, por sua vez, colocou um alerta semelhante ao do último mês com um link que redirecionava o usuário a uma carta do presidente do Google no Brasil, Fábio Coelho, na qual afirma que a proposta tornaria os produtos e serviços  da empresa menos seguros e úteis. 

Essa tática também foi utilizada em países como a Austrália. Em 2020, o país discutia a aprovação do News Media and Digital Platforms Bargaining Code para obrigar as empresas de tecnologia a negociar com veículos de imprensa nacionais a remuneração pelas notícias veiculadas nas plataformas. O Google, além de ameaçar encerrar as atividades no país, também inseriu um alerta na sua ferramenta de busca no país assim como fez no Brasil. Na ocasião, o link redirecionava para um texto intitulado: “The way Aussies search every day on Google is at risk from new Government regulation”, no qual afirmava que a lei provocaria uma piora nos serviços e produtos da empresa e colocaria em perigo a gratuidade deles no país. O Facebook também realizou uma forte ofensiva após a aprovação do projeto de lei australiano em 2021, bloqueando por uma semana as notícias veiculadas em sua plataforma para cidadãos australianos. A empresa só reverteu a medida depois do governo concordar em fazer emendas na lei, dentre as quais está a ampliação do prazo para que as empresas façam acordos com os veículos de imprensa.

Mas o que há no projeto de lei brasileiro que incomoda tanto empresas como Google, Facebook e Telegram?

Em primeiro lugar, no que diz respeito à última versão do projeto divulgada no dia 27 de abril de 2023, pode-se notar que a proposta possui uma série de obrigações de transparência para as plataformas. De acordo com o art. 20 do projeto, os provedores, como Facebook e Instagram, deverão disponibilizar, de forma clara, objetiva e acessível informações detalhadas ao público sobre as características dos serviços que oferecem, os principais elementos dos termos de uso, os tipos de conteúdos proibidos, a faixa etária à qual se destinam e os potenciais riscos de uso. Além disso, deverão explicar as etapas que utilizam para garantir que os conteúdos que circulam na plataforma estão em conformidade com os seus termos de uso. Os provedores terão também que informar os critérios e métodos utilizados para moderação de contas e conteúdos, os algoritmos utilizados em eventuais sistemas automatizados, os meios que o usuário poderá utilizar para notificar o provedor sobre de possíveis violações, os canais que estarão disponíveis para receber reclamações de usuários e os mecanismos de contestação das decisões.

De acordo com o art. 21, os termos de uso das plataformas terão ainda que especificar os parâmetros utilizados nos seus sistemas de recomendação de conteúdo, incluindo, no mínimo, uma descrição geral dos algoritmos utilizados, os principais critérios que determinam a recomendação ou direcionamento de conteúdo ao usuário, resguardados, é claro, os segredos comercial e industrial das empresas, bem como disponibilizar opções para que os usuários modifiquem esses parâmetros. Além disso, deverão indicar as medidas de governança adotadas no desenvolvimento e emprego dos sistemas automatizados, conforme dispõe o art. 22.

Outro ponto sensível para as empresas diz respeito à produção e divulgação dos relatórios semestrais de transparência, que deverão conter informações sobre procedimentos de moderação de contas e de conteúdos adotados, ações implementadas para enfrentar atividades ilegais, mudanças significativas nos termos de uso e sistemas de recomendação e dados sobre as equipes responsáveis pela aplicação das regras (art. 23, §2º). Além disso, deverão constar dados sobre o número de usuários ativos e perfis de uso que permitam aferir a precisão dos procedimentos adotados e realizar a verificação do cumprimento das obrigações previstas (§3º). Nos termos do art. 24, o provedor deverá ainda promover uma auditoria externa e independente para avaliar, anualmente, a sua conformidade com a lei.

Nos casos em que os provedores ofereçam serviços de publicidade de qualquer tipo ou impulsionamento, o art. 26 determina que eles deverão identificá-las como tal, disponibilizando meios, de acordo com o art. 28, para os usuários se informarem sobre histórico dos conteúdos impulsionados e publicitários com os quais tiveram contato nos últimos seis meses.

Em relação aos provedores de mensageria instantânea, o art. 41 do projeto determina que as empresas deverão projetar suas plataformas de modo a limitar a distribuição massiva de conteúdos e mídias para vários destinatários, estabelecendo, em qualquer hipótese, a necessidade de sua identificação para encaminhamento e recebimento de conteúdos em listas de transmissão. Além disso, estabelece que os provedores deverão desabilitar, por padrão, a autorização para a inclusão de usuários em grupos de mensagens, listas de transmissão, canais de difusão de informações abertos ao público ou mecanismos equivalentes, ressalvadas situações de emergência, estado de calamidade pública e circunstâncias análogas; sendo necessária a aferição do consentimento prévio do usuário. 

Na hipótese de uso comercial ou institucional dos serviços de mensageria instantânea, os provedores deverão desenvolver medidas para garantir que não haja desvio de finalidade dentro da plataforma, impedindo que as contas sejam utilizadas para disseminar, por exemplo, propaganda eleitoral e partidária ou distribuir qualquer conteúdo não relacionado aos seus objetivos, conforme prevê o art. 43.

O projeto ainda determina que obras protegidas por direitos autorais e conteúdos jornalísticos ensejarão remuneração pelos provedores, não podendo, neste último caso, onerar o usuário final que acessa e compartilha sem fins econômicos os conteúdos jornalísticos nos termos do art. 32.

Para compreender realmente o que está por trás da ofensiva das plataformas contra o PL, por fim, é preciso observar que a principal fonte de receitas das empresas é obtida através da veiculação de anúncios publicitários personalizados. De acordo com dados do Netlab obtidos através da plataforma Statista, quase 98% da receita total da Meta em 2022 era relativa à publicidade digital, enquanto isso representava aproximadamente 80% da receita da Google no mesmo período. Como o setor carece de regulamentação, não há transparência sobre os critérios utilizados para a distribuição de anúncios pelas plataformas nem sobre os dados que são coletados para o perfilamento dos usuários e direcionamento de conteúdos publicitários. Assim, as empresas acabam lucrando em cima da disseminação da desinformação e do discurso de ódio.

O estabelecimento de regras de transparência, conforme previsto no PL, impacta diretamente seu rendimento, já que obriga as plataformas a adotarem medidas mais eficazes para combater a propagação de conteúdos nocivos na Internet, contendo, assim, o impulsionamento de notícias falsas e de falas misóginas, racistas e xenófobas, por exemplo. A possibilidade de responsabilização civil solidária por conteúdos produzidos por terceiros divulgados como publicidade na plataforma também pode gerar mais despesas para as empresas, que terão que arcar com multas e indenizações em caso de descumprimento das obrigações previstas. Além disso, o pagamento às empresas jornalísticas e aos autores pelas notícias afetará os lucros das plataformas, uma vez que  se beneficiam há anos com a veiculação desses materiais sem uma contrapartida direta pelo licenciamento dessas informações.

Diante do exposto, é possível notar que, por trás da defesa da liberdade de expressão, há grandes interesses econômicos em jogo. Mesmo que, dentro de uma democracia, todos tenham o direito de participar das discussões, não é possível aceitar que o debate público seja manipulado por um dos seus atores. Nesse sentido, não se pode ignorar a posição de dominância que um pequeno grupo de empresas exerce sobre o fluxo de informações globais. Assim, práticas que visem, a partir de informações inverídicas e de forma pouco transparente, influenciar a opinião pública sobre uma proposta em discussão no país, devem ser rechaçadas, uma vez que isso atenta não apenas contra o sistema democrático brasileiro, mas também contra a própria soberania nacional.

Rhaiana Valois

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), integrante do laboratório de Design Jurídico da USP e colaboradora, nos anos de 2019 a 2021, da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da OAB/PE. No IP.rec, atua na área de Responsabilidade Civil de Intermediários.

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