No livro “Futuro Passado”, o historiador alemão Reinhart Koselleck chama atenção para a importância dos conceitos históricos na compreensão da realidade. Para ele, a unidade da ação política e social só se dá por meio do desenvolvimento de conceitos. Esses conceitos, ao delimitarem determinados aspectos para se autodefinir, excluem automaticamente outros e, assim, determinam-se a si mesmos.  Além disso, ao longo da história, ele identificou também o que chamou de conceitos assimétricos opostos, ou conceitos antitéticos assimétricos, que podem ser entendidos como designações que não se reconhecem mutuamente e estão em uma posição desigual, de modo que um tenta negar a existência do outro. 

 

Koselleck (1979, p. 192) explica ainda que “o conceito serve não apenas para indicar unidades de ação, mas também para caracterizá-las e criá-las. Não apenas indica, mas também constitui grupos políticos ou sociais“. Nessa linha, tal metacategoria da ciência histórica, que é muito usada na história política para falar sobre pares como “cristãos x pagãos”, “helenos x bárbaros” e tantas outras antíteses, também pode ser estendida para conceitos teóricos, especialmente quando se focaliza uma área do conhecimento cujos sentidos específicos (semântica/pragmática) estão em disputa. 

 

Nesse sentido, é possível pensar as categorias da teoria da responsabilidade civil, especialmente, as de responsabilidade objetiva e a subjetiva. E, indo além, refletir sobre os contextos de historicidade das construções dogmáticas quando os regimes de responsabilização cível em todo o mundo, e no Brasil com bastante destaque, começam a ser revistos dadas as novas necessidades e usos tecnológicos.  

 

Antes do Marco Civil da Internet ter estabelecido o regime legal  de responsabilidade de intermediários tecnológicos, por exemplo, essas duas correntes doutrinárias estavam (e continuam) em disputa. Os defensores da teoria da responsabilidade objetiva argumentavam a favor da tese de que os intermediários deveriam ser responsabilizados pelo conteúdo ilícito divulgado ou compartilhado pelos usuários em plataformas na internet. Com base no art. 927 do Código Civil, presumia-se o risco da atividade realizada por esses agentes. 

 

Em contrapartida, os que advogam em favor da teoria subjetiva, baseados no princípio de que ninguém deve ser lesado pela conduta alheia, defendiam ser necessária a verificação da conduta (culposa ou dolosa) dos intermediários, seja pela omissão diante da ciência de conteúdo ilícitos sendo compartilhados em suas plataformas, seja pela não exclusão de materiais após notificação judicial, para a configuração do dever de reparar o dano.

 

As categorias de responsabilidade (civil) objetiva e subjetiva, nesse sentido, podem ser enquadradas na definição de Koselleck de conceitos opostos assimétricos, uma vez que não só se excluem e se limitam mutuamente, como os atributos colocados em cada conjunto conceitual não podem ser usados na direção contrária. O tratamento dogmático dado à responsabilidade civil subjetiva impõe uma direção de tratamento adversa (que se põe contrária, adversus) àquela da responsabilidade objetiva. 

 

Na responsabilidade subjetiva, é imprescindível a comprovação da culpa lato sensu do agente para a caracterização do dever de indenizar a vítima, ou seja, é necessário demonstrar que o agente causador do dano atuou (ou se omitiu) de forma voluntária ou, ainda, que agiu de modo negligente ou imprudente. Por outro lado, na responsabilidade objetiva, não é necessária essa comprovação: havendo dano, o agente deve indenizar a vítima, tendo em vista, entre outros fundamentos, a teoria do risco, isto é, independe da existência de culpa (FARIAS, 2019, p. 969).  

 

A partir disso, a doutrina desenvolve uma série de subcategorias que procuram abarcar outras situações que fogem desse dualismo imposto para manter operantes os conceitos em questão, de modo que a teoria que serve para explicar esse fenômeno jurídico se torna cada vez mais complexa.

 

Distanciando-se da antítese, Marcos Bernardes de Mello (2017, p. 311) defende, ao contrário, que

 

o sistema jurídico brasileiro não se cingiu à culpa; adotou o princípio da transubjetividade na responsabilidade civil, em razão do qual se estabelece um nexo entre o fato danoso e o homem, que transcende a pura subjetividade da culpa e não se compraz com a só objetividade do risco: vê-se a contrariedade a direito objetivamente, imputando-a a alguém a ela ligado, com razão de certos pressupostos de natureza subjetiva“.

 

Se tomarmos como base a obra de Mello (2017), que bebe da teoria do direito de Pontes de Miranda (2012), o Direito é um sistema lógico e, portanto, é necessário que as teorias jurídicas desenvolvidas expliquem, de forma simples, os fenômenos aos quais se propõem. Quando, ao contrário disso, é necessário criar várias exceções para que uma determinada teoria seja mantida, observa-se que há indício de voluntarismo retórico e não de intersubjetividade científica. 

 

Isso porque são os fatos que devem orientar o desenvolvimento de uma teoria e não o contrário. Se ela não consegue explicar de forma satisfatória os fenômenos jurídicos, é mais proveitoso reformular a teoria do que despender tempo tentando explicar ou elaborar exceções para o caso geral. Tal concepção não se distancia da perspectiva histórica que é exposta neste texto, pois a influência do observador-pesquisador-cientista em nada autoriza a solapar o poder de veto da fonte e do fato, que, no caso das humanidades e do direito, é também o fato sócio-histórico

 

Percebe-se, portanto, que os conceitos antagônicos, como o de responsabilidade civil objetiva e subjetiva, selecionam experiências possíveis a fim de permitir a compreensão da realidade, o que, por sua vez, ocorre de forma limitada e excludente em razão da natureza desses conceitos. 

 

A partir deles, contudo, é possível também traçar um horizonte elástico de expectativas, que permite que os setores da sociedade disputem as narrativas dominantes e possam redefinir a própria realidade de forma mais ampla e, talvez, mais eficiente. O conceito de transubjetividade (MIRANDA, 1954, T. II), por exemplo, parece abrir uma fresta sobre a regulamentação tradicional de plataformas e sobre o potencial de relacionar fato danoso e pessoa (mais do que ao “homem”, é à esfera jurídica da pessoa, mas não só, que se atribuem deveres, direitos, e o exercício de pretensões e exceções) – isso, importa alertar, quando (e se) for bem compreendido em seus fundamentos.

 

REFERÊNCIAS

 

COSTA, Thabata Filizola Costa. Como era a responsabilidade civil dos provedores de Internet no Brasil?. Jusbrasil. 2016. Disponível em <https://www.google.com/amp/s/thabatafc.jusbrasil.com.br/artigos/316058731/como-era-e-como-e-a-responsabilidade-civil-dos-provedores-de-internet-no-brasil/amp>. Acesso: 25 de mai.

FARIAS, Cristiano Chaves de. Manual de Direito Civil. – Volume único. – 4. ed. rev, ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo II. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1954.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado: Parte Especial – Tomo LIII (Direito das Obrigações). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

 

Esse texto faz parte das pesquisas relativas ao projeto “Responsabilidade Civil de Intermediários Tecnológicos”, realizado pelo IP.rec em 2021-2022. Para mais informações, busque a nossa página ou entre em contato por e-mail.

André Fernandes

Diretor e fundador do IP.rec, é graduado e mestre em Direito pela UFPE, linha teoria da decisão jurídica. Doutorando pela UNICAP, na linha de tecnologia e direito. Professor Universitário. Membro de grupos de especialistas: na Internet Society, o Grupo de Trabalho sobre Responsabilidade de Intermediários; no Governo Federal, Grupo de Especialista da Estratégia Brasileira de IA (EBIA, Eixo 2, Governança). Fundador e Ex-Conselheiro no Youth Observatory, Internet Society. Ex-Presidente e Fundador da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Alumni da Escola de Governança da Internet do CGI.br (2016). No IP.rec, atua principalmente nas áreas de Responsabilidade Civil de Intermediários, Automação do Trabalho e Inteligência Artificial e Multissetorialismo.


Rhaiana Valois

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), integrante do laboratório de Design Jurídico da USP e colaboradora, nos anos de 2019 a 2021, da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da OAB/PE. No IP.rec, atua na área de Responsabilidade Civil de Intermediários.

Compartilhe

Posts relacionados