Publicado em: 3 de agosto de 2023


As discussões sobre regulação de plataformas digitais no Brasil, em especial em torno da tramitação do Projeto de Lei nº 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, vêm ocorrendo em torno de diversos pontos controversos, dentre eles a instituição ou não de um órgão para regular e fiscalizar o exercício dessas empresas, em território nacional.

Há quem defenda a criação de órgão independente e autônomo[1]; outros, advogam em favor do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) para assumir esse protagonismo, até que uma entidade autônoma se estabeleça[2]; ainda, uma das agências reguladoras existentes, a Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel, candidata-se a incumbir-se de novas atribuições[3], sob o argumento de que já regulamenta vários elos da cadeia do ecossistema digital, começando pela estrutura passiva, dos equipamentos de rede dos serviços de telecomunicações e dos provedores de serviço de valor adicionado[4]; o Projeto de Lei nº 2768/2022 reforça a posição da Anatel, pois atribui-lhe mais uma função que é a de regular o funcionamento das plataformas digitais no Brasil; com modelo original, a Comissão Especial de Direito Digital do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propõe a criação do Sistema Brasileiro de Regulação de Plataformas Digitais, formado por três instâncias decisórias, dotadas de composição plural, envolvendo representantes dos três Poderes da República, Comitê Gestor da Internet, entidade de autorregulação, além de indicações da Anatel, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e OAB Federal[5]

O turbilhão de ideias em torno do tema impulsiona a refletir sobre questões primordiais a serem consideradas em qualquer modelo que seja adotado. Nesse sentido, este ensaio visa contribuir com as discussões, destacando requisitos a serem observados na instituição de uma entidade reguladora e fiscalizadora das grandes plataformas digitais, tomando por base a experiência de criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

A ANPD é uma autarquia pública federal especial, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (Decreto Federal nº 11.401, de 23 de janeiro de 2023), responsável por zelar pela proteção dos dados pessoais, orientar, regulamentar e fiscalizar o cumprimento da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, aplicando sanções, em caso de violação às normas vigentes.

O primeiro quesito analisado é a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

A ANPD foi criada pela Medida Provisória nº 869, de 27 de dezembro de 2018, posteriormente convertida na Lei nº 13.853, de 14 de agosto de 2019, visto que sua proposição inicial, no texto do projeto de lei da LGPD, ocorreu de forma irregular, por vício de iniciativa, o que fundamentou o veto presidencial ao dispositivo. Como resultado, instituiu-se um cenário de insegurança jurídica, por esvaziar a estrutura orgânica de proteção de dados pessoais, em virtude da ausência do órgão responsável pela coordenação das atividades de regulação, controle e fiscalização do seu cumprimento.

Diante desses equívocos, fica a primeira lição, de que o processo de criação do órgão regulador deve ser iniciado pela esfera competente, para evitar um hiato entre o início da vigência da norma e sua efetiva aplicação.

A segunda questão está relacionada à natureza jurídica do órgão e sua capacidade para exercer plenamente as atividades de regulação, fiscalização e aplicação de sanções a instituições do setor público e privado.

A referida Medida Provisória criou a ANPD com regime jurídico sui generis, ou seja, como órgão da Administração Pública Federal, na estrutura organizacional da Presidência da República (por estratégia orçamentária), mas com autonomia característica de uma autarquia pública especial. 

Mesmo instituída como órgão centralizado, algumas características institucionais conferidas à ANPD lhe garantiram certa autonomia, como patrimônio próprio, estabilidade e mandato fixo dos Diretores, autonomia técnica, decisória[6] e financeira, reiteradas pelo Decreto nº 10.474, de 2020, que aprovou a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da ANPD. A autonomia financeira, inclusive, considerada mais relevante do que a conferida às autoridades equivalentes na França e no Reino Unido (BORDALO, 2020), por prever diversas fontes de recursos, como dotações consignadas no orçamento da União; doações; valores apurados na venda ou aluguel de bens móveis e imóveis de sua propriedade; valores apurados em aplicações financeiras das receitas citadas; os recursos provenientes de acordos, convênios ou contratos celebrados com entidades, organismos ou empresas, públicos ou privados, nacionais ou internacionais; o produto da venda de publicações, material técnico, dados e informações, inclusive para fins de licitação pública. Esse nível de autonomia foi ratificado com a criação da ANPD como autarquia pública federal de natureza especial pela Medida Provisória nº 1.124, de 2022, convertida na Lei nº 14.460, de 25 de outubro de 2022.

No entanto, como órgão da administração pública direta, essa autonomia e independência eram constantemente questionadas, em virtude de sua existência nos quadros institucionais da Presidência da República.

Nesse sentido, fica a segunda lição: é imprescindível a autonomia e independência do órgão regulador, em relação ao poder público.

Ademais, como órgão da Administração Pública direta Federal, a autonomia conferida pela lei, por si só, não lhe permitia exercer plenamente seus poderes sancionatórios contra órgãos públicos do ente ao qual pertencia, nem mesmo contra outros entes federados.

Isso porque, em relação às pessoas jurídicas de direito público, não existe controle administrativo de um ente federativo sobre o outro. Assim, a União não tem competência para impor sanção administrativa a Estados, Municípios e vice-versa. A imposição de sanção administrativa pressupõe uma relação vertical de sujeição entre o sancionador e o sancionado. Os entes federados estão numa relação horizontal, sem que haja sujeição administrativa entre eles e, por isso, inexiste possibilidade de uma entidade federativa impor, administrativamente, uma sanção sobre outra. Sendo assim, carecia a ANPD de legitimidade para aplicar sanções administrativas às pessoas jurídicas de direito público (MARTINS, 2020). Reforça esse entendimento, o modelo federativo adotado no Brasil, descrito nos artigos 1º e 18 da Constituição Federal de 1988.

Em respeito aos princípios da cooperação e da coordenação, não cabia à ANPD sancionar autarquias federais; e por força da autonomia federativa, as autarquias estaduais e municipais (MARTINS, 2020).

No caso das empresas públicas e sociedades de economia mista, que exercem atividades econômicas em sentido estrito[7], atuando no domínio econômico produtivo (Estado-Empresário) em regime de concorrência, não é permitido gozar de tratamento diferenciado em relação às pessoas jurídicas de direito privado particulares (art. 24 caput LGPD). Por outro lado, se estiverem operacionalizando políticas públicas e no âmbito da execução delas, teriam o mesmo tratamento dispensado aos órgãos e às entidades do Poder Público (art. 24, parágrafo único, LGPD). No entanto, é importante ressaltar que a ANPD não podia sancionar pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços públicos, pelos mesmos fundamentos postos acima.

O regime especial para as autarquias, como o conferido às agências reguladoras, universidades e autarquias reguladoras de categorias profissionais, por exemplo, garante maior autonomia em relação ao Poder Executivo, sobretudo quando se trata de gestão. O núcleo fundamental do modelo consiste na ausência da submissão da entidade à interferência de outros entes administrativos (JUSTEM FILHO, 2015), tendo outras características, como a diversidade e amplitude de funções, o exercício de atividades normativas, fiscalizadoras, sancionatórias e julgadoras, seu caráter técnico, e possível flexibilidade e consensualidade no exercício de suas funções (ARAGÃO, 2005). 

A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento pela indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado que abrange poder de polícia, de tributar e de punir. O caso em questão refere-se à fiscalização do exercício de atividades profissionais regulamentadas por conselhos de fiscalização profissional, que também possuem natureza autárquica em regime especial, conforme acórdão da ADI 1.717/DF, que julgou a constitucionalidade do art. 58 e seus parágrafos, da lei nº 9.649/1998. 

Desse modo, como terceira lição, o órgão regulador deve ter personalidade jurídica de direito público, por exercer função regulatória, atuar com poder polícia, fiscalizar atividades, aplicar sanções, ou seja, por executar competências que são próprias do Estado, sendo a natureza jurídica autárquica em regime especial a mais indicada para atender a esse requisito.

A experiência da instituição da ANPD traz lições relevantes ao processo de criação de uma autoridade administrativa para regular e fiscalizar as plataformas digitais. É importante a instituição de um novo órgão regulador, pertencente à administração pública, dotado de personalidade jurídica de direito público, em regime especial, que lhe garantirá autonomia e independência para o exercício das atribuições que lhe serão conferidas, inclusive com a liberdade de construir um arranjo institucional com participação ativa da sociedade civil organizada, garantindo assim a regulação democrática de que o Brasil precisa.


Referências 

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo. 26 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
BORDALO, Rodrigo. Autoridade Nacional de Proteção de Dados: aspectos de organização administrativa. In: POZZO, Augusto Neves Dal; MARTINS, Ricardo Marcondes (coord.). LGPD e Administração Pública: Uma análise ampla dos impactos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 11ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

MARTINS, Ricardo Marcondes. Lei Geral de Proteção de Dados e direito administrativo: questões polêmicas. In: POZZO, Augusto Neves Dal; MARTINS, Ricardo Marcondes (coord.). LGPD e Administração Pública: Uma análise ampla dos impactos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

 

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[1]https://direitosnarede.org.br/2023/04/28/pl-2630-regulacao-publica-democratica-das-plataformas-e-fundamental-com-instituicoes-autonomas-e-participativas/; depoimento do Prof. Jonas Valente, Professor Associado do Lapcom, Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB, no Parecer proferido em Plenário ao Projeto de Lei 2630/2020, em 27/04/2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2265334&filename=PRLP+1+%3D%3E+PL+2630/2020

[2]https://www.abranet.org.br/Noticias/CGI.br%3A-orgaos-existentes-nao-tem-capacidade-para-ser-Autoridade-Autonoma-das-plataformas-digitais-4303.html?UserActiveTemplate=site.

[3]https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/a-sociedade-da-informacao-e-inseparavel-da-consolidacao-e-da-promocao-dos-direitos-humanos; https://www.mobiletime.com.br/noticias/17/05/2023/anatel-reafirma-posicao-na-regulacao-de-plataformas-no-dia-das-telecomunicacoes/?swcfpc=1;

[4]https://www.mobiletime.com.br/noticias/18/05/2023/baigorri-volta-a-defender-anatel-como-entidade-fiscalizadora-do-pl-das-fake-news/.

[5]https://nucleo.jor.br/content/files/2023/05/Ofi-cio-Sistema-brasileiro-de-regulac-a-o-de-plataformas-digitais.pdf; https://static.poder360.com.br/2023/05/proposta-pl-fake-news-oab.pdf

[6] Inicialmente, a Medida Provisória 869/2018 fazia alusão apenas à autonomia técnica, nos termos do art. 52-B da LGPD. No processo de conversão da MP em lei, o Congresso Nacional inseriu a autonomia decisória.

[7]Alexandrino e Paulo (2018) conceituam atividades econômicas em sentido estrito como as atividades produtivas rurais, comerciais e industriais, bem como a prestação de serviços privados, abertos à livre iniciativa, exercidas com finalidade de lucro, segundo os princípios orientadores da atividade empresarial, por pessoas ou organizações que adotem, ou tenham possibilidade de adotar a estrutura própria de empresa. Em caráter excepcional, o Estado desempenha essas atividades, o que ocorre quando sua exploração é necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art. 173 CF/1988) e quando sua exploração está sujeita a regime constitucional de monopólio (art. 177 CF/1988).

Danielle Novaes

Doutora em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Engenharia de Produção pela UFPE. Graduada em Direito e em Ciência da Computação. Especialista em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Especialista em Direito Público (Constitucional, Administrativo e Tributário). Especialista em Novas perspectivas do Direito Processual Penal. Especialista em Tecnologias da Informação. No IP.rec, atua na área de Responsabilidade Civil de Intermediários.

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