O IP.rec, através do projeto “Responsabilidade Civil de Intermediários Tecnológicos” entrevistou atores de diversos setores (academia, empresas, sociedade civil e governo) com o objetivo de apresentar um panorama em série do debate multissetorial sobre a responsabilidade de intermediários (relativa a diversos danos).

Esta série de entrevistas está sendo publicada como material orientador das pesquisas no Brasil, que apresentam, de forma comparada, diferenças e sinergias no tratamento da matéria. O objetivo central aqui é ampliar o diálogo entre atores, além de trazer um material de consulta importante para os pesquisadores localizados no Brasil e, especificamente, no nordeste brasileiro.

O quinto entrevistado é Michel Roberto de Souza. Michel é doutor e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Possui LLM em Direito Comparado, Economia e Finanças pela International University College of Turin (IUC) e graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Atua como diretor de políticas públicas na organização latinoamericana Derechos Digitales.

1. O paradigma geral de (não) responsabilização ou condicionamento da responsabilização a casos específicos (EUA, Brasil) é suficiente ainda ou precisa ser revisado?

Estamos passando por um momento de grande pressão para modificação do paradigma de responsabilidade civil dos intermediários. A questão da responsabilidade dos intermediários é complexa e muito sensível, pois está diretamente ligada à como se dá a comunicação das pessoas, das empresas e do Estado, estamos falando de impacto nos direitos humanos, principalmente da liberdade de expressão. Está intimamente ligada com vários outros temas, como automatização, uso de inteligência artificial e a própria moderação de conteúdo. É necessário, de qualquer modo, respeitar os direitos humanos, não podendo haver censura prévia e controle do que se expressa nos diferentes meios.

O que aconteceu nos últimos anos foi um verdadeiro aumento do poder e crescente concentração das grandes empresas da internet (big techs) em moldar o próprio debate público e isso tem acarretado diversos problemas. Diferentes padrões de exclusão de conteúdo, falta de um procedimento adequado para questionamento e revisão de conteúdo, falta de transparência, opacidade na moderação automatizada dos conteúdos (que se diz por inteligência artificial) além de problemas em geral relacionados à utilização dos algoritmos. Mas os desenvolvimentos tecnológicos que temos vivenciado somado à importância das redes sociais no debate público em geral, demonstram que a discussão agora é outra daquela que se tinha há anos.

Uma possibilidade é regulamentar de forma diferente a responsabilidade dos intermediários por ações de terceiros em suas plataformas e por suas ações próprias. Assim, a questão da responsabilidade do intermediário nos casos em que ele não tem atuação, estabelecendo isenção de responsabilidade dos intermediários exceto para notificação judicial idônea, como princípio geral. Conforme já enfatizado pela Relatoria de Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, o estabelecimento de um regime de responsabilidade objetiva para comunicação eletrônica e digital é incompatível com os estândares mínimos de liberdade de expressão. Mas, é possível pensar outro regime de responsabilidade pelas suas próprias ações. A questão problemática aqui é como regulamentar essas próprias ações, tendo em vista a influência das novas tecnologias quanto ao próprio papel desempenhado pelos intermediários, fazendo-se um juízo de proporcionalidade e necessidade, sob pena de se ter uma regulamentação vaga e imprecisa de quais seriam os casos em que não se aplica. É importante ressaltar que qualquer regulamentação que venha a ser criada deve respeitar os direitos humanos em matéria de liberdade de expressão, privacidade, acesso à informação, transparência, devido processo legal, direitos de associação e reunião, direitos políticos e direito à verdade.

2. Qual a sua visão sobre cenários recentes de responsabilidade civil, com a modificação de legislações para aumento de responsabilização de intermediários (Índia, Alemanha, Espanha e México)?

Estamos vendo na região iniciativas inclinadas a regular a responsabilidade dos intermediários pela circulação de conteúdos não somente com relação aos direitos autorais, mas também em outros temas como a desinformação e o discurso de ódio. Percebemos que esses temas estão em ebulição nos últimos tempos.

Um exemplo tem se dado nas últimas semanas, com uma discussão mais intensa no Chile sobre um recente projeto de lei sobre plataformas Digitais (Boletín N°14.561-19). Referido projeto cria conceitos amplos como “consumidor digital” e “liberdade de expressão digital”, mas acaba criando também algumas confusões e não ataca esses problemas que estamos verificando há anos. Este projeto traz um número amplo de temáticas que acaba por não responder adequadamente aos problemas sociais complexos que são vistos hoje, problemas como utilização indevida dos dados para segmentação, falta de transparência e devido processo legal, silenciamento, censura, assédio e estímulo à desinformação, entre outros. Sobre a responsabilidade de intermediários, por exemplo, o projeto estabelece em seu artigo 6º que as plataformas seriam responsáveis apenas se tivessem “conhecimento efetivo do ilícito”, por não serem diligentes. Mas estabelece, em seu artigo 15, que o provedor de plataformas digitais será objetivamente responsável para “todos os danos, patrimoniais e morais que ocasionem aos usuários”, podendo o juiz condenar o provedor ao dobro dos prejuízos, e ainda ordenar o bloqueio temporal da plataforma, quando o descumprimento da lei tenha “caráter sistemático”. O próprio projeto de lei parece não ter uma regulamentação clara a esse respeito. Esses exemplos tem sido recorrentes ultimamente, demonstrando a necessidade de se defender os direitos humanos nessas discussões, sob pena de termos violações em massa dos direitos.

Mas o questionamento não se dá só no legislativo. No Brasil, por exemplo, o art. 19, do Marco Civil da Internet, tem sido colocado a prova também. Lembremos da MP 1.068/21, que continha determinações que eram contrárias ao Marco Civil da Internet, principalmente com relação à possibilidade de sanção por conta da moderação do conteúdo. Já no judiciário, o Supremo Tribunal Federal brasileiro está para julgar os temas de repercussão geral números 533 e 987, relatados pelos Ministros Luiz Fux e Dias Tofolli, respectivamente. Inclusive, os relatores dos casos convocaram audiência pública para oitiva de experts, que seria realizada em março de 2020, mas foi suspensa por conta do início da pandemia. Até o momento, não há indicativo de nova data para realização da audiência.

3. Há uma grande discussão atualmente sobre o DSA, que deve modificar a regulação das plataformas na União Europeia para promover um ambiente online mais seguro. Há propostas ou expectativas para modificar também o regime de responsabilização destas plataformas em algum nível, especialmente no que se refere a conteúdo gerado por terceiros? Como isso vem sendo tratado pelos diversos stakeholders?  

Recentemente, a Al Sur – um consórcio de onze organizações da sociedade civil e da academia na América Latina, dentre elas a Derechos Digitales, publicou o documento “Olhando Al Sur – Rumo a novos consensos regionais em matéria de responsabilidade de intermediários e moderação de conteúdos na Internet”, em que faz um mapeamento do debate legal do tema na América Latina. O DSA inclusive é analisado, em conjunto com a proposta do Digital Markets Act – que tem enfoque na questão competitiva, dando um ferramental maior e mais claro para as autoridades antitruste lidarem com os mercados digitais. Mas mesmo essas duas propostas legislativas, apesar da abertura do processo legislativo para discussão, não ficam isentas de críticas, tais como a necessidade de dar mais ênfase à interoperabilidade e de adoção de um regulador europeu que dê o enforcement às leis. Além da análise das propostas europeias, o documento da Al Sur traz importantes recomendações do consórcio para avançar o diálogo em nossa região e nas discussões em nível local.

Sabemos do lado da sociedade civil, os Princípios de Manilla são uma referência em termos de garantias de liberdade de expressão com relação à responsabilidade dos intermediários sobre conteúdos de terceiro. Mas o tema está bem correlato à própria moderação de conteúdo, tema que tem como uma das referências importantes os Princípios de Santa Clara, da tríade números, notificação e apelação. Em março de 2020, foi publicada uma chamada para submissão para início de um processo de análise necessidade de revisão desses princípios. Temos esperança de que essa abertura venha a fazer com que os Princípios de Santa Clara, que foram elaborados com uma visão mais procedimental do que substantiva, consigam ir ao cerne de questões mais espinhosas e se adequarem mais à realidade em que vivemos hoje.

Ainda, no início de 2021, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Relatoria Especial para Liberdade de Expressão (RELE) alertaram para o fato de que estamos passando por um ponto de inflexão caracterizado pela deterioração generalizada do debate público, com graves consequências e aumento da violência online e violência física. Por isso, a RELE vem fomentando o debate sobre o tema, por meio do “Diálogo das Américas”, com enfoque em três temáticas (moderação de conteúdo, deterioração do debate público e alfabetização digital) para apresentar um plano de ação à CIDH. É muito importante a participação da sociedade nesse debate.

4. Como você vê o papel de eventos políticos (banimento POTUS, etiquetagem de postagens como falsas) na modificação dos modelos de responsabilidade civil de intermediários?

Os eventos políticos acabam por colocar as redes sociais em evidência. Por exemplo, o caso de deplataformização do ex-Presidente dos Estados Unidos trouxe vários questionamentos dos dois lados do espectro político. Enquanto alguns questionavam a ingerência eleitoral das plataformas e acusavam as plataformas de censura, outros questionavam o motivo pelo qual se demorou tanto para se ter alguma reação mais enérgica e o porquê não se teve a mesma atitude com outros ao redor do globo. Outra consequência dos eventos políticos são as propostas legislativas para reverter a responsabilidade dos intermediários, conforme verificamos intensamente nos últimos anos. A politização de várias questões ligadas às medidas que seriam necessárias para lidar com a pandemia também põe lenha na discussão acerca da responsabilidade das plataformas, ainda mais diante da escalada da violência e sobre temas de fake news.

5. O multissetorialismo no processos de discussão seria suficiente para garantir uma eficácia e eficiência das normas que pretendem reformar o marco de responsabilidades no Brasil (ex: reforma do Código Eleitoral, Fake News e etc)?

O multissetorialismo é essencial em qualquer processo de discussão e de governança sobre a internet, pois há questões democráticas, técnicas, de valores sociais e de respeito aos direitos humanos que devem ser colocadas na mesa para se ter qualquer decisão. Contudo, apenas o multissetoralismo por si só não é suficiente para dar eficácia e para que as normas tenham eficiência. É necessário um arcabouço regulatório robusto, uma institucionalidade séria e autoridades que estejam acompanhando os fatos e acontecimentos, sempre com a finalidade de respeito aos direitos humanos. Um estudo de impacto ainda no momento de discussão no legislativo também é uma ferramenta interessante, ainda mais quando se pensa na necessidade de respeito aos direitos humanos. Por fim, é necessário enfatizar que não se pode ter um debate legislativo afobado e que não ouve adequadamente a sociedade, academia, especialistas e todos que estão envolvidos no tema, como temos visto em diversos exemplos dos últimos anos.

Institucional

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