Publicado em: 30 de novembro de 2023.


Um estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), que investigou a discussão sobre a regulação de plataformas digitais no Twitter em 2022, mostrou que falta uma compreensão mais profunda sobre o tema. Isso tanto por usuários comuns quanto por parlamentares brasileiros, especialmente no que diz respeito ao significado da expressão “regulação”. A partir das postagens analisadas, foi possível observar que o termo é frequentemente empregado de forma distorcida, sendo associado à censura e ao cerceamento da liberdade de expressão no ambiente digital.

Mesmo que não haja um conceito unânime, a literatura costuma definir “regulação” como uma forma de intervenção no comportamento dos indivíduos que tem como finalidade a satisfação de certos objetivos. Importa notar, dessa forma, que o termo não se limita à atividade legislativa ou administrativa de um Estado, mas compreende o conjunto de metas e estratégias, sejam elas públicas ou privadas, utilizadas para alcançar determinados fins. Apesar do termo estar geralmente relacionado com a interferência do Estado na economia, é também possível pensar em uma “regulação social”, que tem como alvo principal a intervenção no comportamento dos indivíduos com propósitos pré-definidos.

Além disso, a expressão “plataformas digitais” também costuma suscitar dúvidas, uma vez que não há uma definição uniforme para o termo, existindo várias classificações a depender do serviço prestado por essas ferramentas. De acordo com Jonas Valente e Marina Pita, as “plataformas digitais” podem ser entendidas enquanto “espaços/agentes de mediação de serviços e conteúdos”, desenvolvidos a partir de “uma base tecnológica”, cuja principal característica é a “atuação em um ambiente conectado”. O foco deste texto é, nesse sentido, a regulação de plataformas digitais de gestão e circulação de conteúdos, entre as quais estão as redes sociais, os mecanismos de busca e os aplicativos de mensagens instantâneas, como Instagram, Google e Whatsapp, por exemplo. A regulação de outros tipos de plataformas, como Uber e Ifood, merecem considerações próprias em uma outra oportunidade.

Nesse contexto, o debate sobre a necessidade de construção de uma agenda regulatória em torno das atividades desempenhadas pelas principais plataformas de gestão e circulação de conteúdos vem ganhando força nos últimos anos, não só no Brasil, como em outros países do mundo. Isso tem ocorrido principalmente como uma resposta dos Estados à intensificação de problemas como desinformação, compartilhamento de conteúdo ilegal e de discursos de ódio na Internet, o que têm ameaçado a credibilidade das instiuições públicas, a confiança nas mídias tradicionais e a estabilidade dos sistemas democráticos ao redor do mundo.

Diante disso, indaga-se como o modelo de negócio adotado por essas empresas e a forma como as plataformas são projetadas (e administradas) têm contribuído para o afloramento dessas questões e, consequentemente, qual o grau de responsabilidade dessas empresas nesse cenário. Ademais, a falta de transparência e de mecanismos de prestação de contas dificulta a compreensão sobre a maneira em que processos de moderação, filtragem e recomendação de conteúdo são realizados e também como os dados coletados dos usuários estão sendo tratados. 

Segundo K. Sabeel Rahman, as decisões e políticas internas dessas plataformas estão efetivamente governando e controlando o fluxo de informações, de bens e de serviços na nossa sociedade, o que faz com que as empresas concentrem para si grande poder. Dessa forma, indícios sugerem que pequenas alterações nos algoritmos usados para direcionar e impulsionar conteúdo podem interferir drasticamente no comportamento dos usuários, sem que eles tenham noção de que isso acontece.

 Lucas Belli explica ainda que as plataformas digitais acabam exercendo, atualmente, um poder estrutural que é “quase normativo, quase executivo e quase jurisdicional’’, sem que haja qualquer tipo de supervisão pela sociedade. Diferente do que muitos podem pensar, o autor afirma que a ausência de regulação estatal não significa que a sociedade não será regulamentada, mas sim que essa tarefa será exercida unilateralmente pelo setor privado, sem que haja necessariamente o compromisso com a garantia de valores democráticos. Dessa forma, a regulação estatal tem sido apontada como a principal ferramenta para conter o exercício arbitrário desse poder pelo setor privado, que por muito tempo se beneficiou com mecanismos autorregulatórios para gerenciar os seus serviços e maximizar seus lucros.

A regulação estatal dessas plataformas esbarra ainda em alguns dos desafios sistematizados por Lyria Moses, entre os quais estão: o “desafio da conexão regulatória”, o “dilema do ritmo” e o “dilema de Collingridge”. O primeiro se refere ao problema de regular tecnologias que estão em constante evolução, de modo que o quadro normativo é, de certa forma, sempre projetado tomando como base o cenário tecnológico anterior. Durante a elaboração do Marco Civil da Internet (MCI), por exemplo, muitos dos problemas mencionados acima não faziam parte das preocupações dos legisladores da época.

O segundo desafio, por sua vez, relaciona-se à dificuldade de acompanhar e, ao mesmo tempo, gerenciar a incerteza na aplicação das leis vigentes diante dos avanços tecnológicos. Nesse ponto, centra-se, por exemplo, grande parte das críticas em torno do MCI, que afirmam que a lei se tornou obsoleta para lidar com os desafios atuais. Convém notar, todavia, que a lei estabeleceu um modelo de responsabilidade que é referência no mundo, privilegiando a promoção da liberdade de expressão na Internet em detrimento de práticas que poderiam levar à censura, sendo, dessa forma, um importante ponto de partida para o aprofundamento da discussão. Esse desafio também chama atenção para a necessidade de pensar em um arranjo regulatório que seja aberto, flexível e que comporte mecanismos de atualização. 

Por fim, o terceiro desafio diz respeito ao momento escolhido para regular determinada tecnologia, já que se a escolha se der nos momentos iniciais de sua implementação, pode-se inibir a invocação. Por outro lado, se houver demora, os atores regulados podem crescer rapidamente e apresentar forte resistência à regulação estatal. Um exemplo disso foi a campanha desinformativa capitaneada pelas principais plataformas que operam no Brasil contra o PL 2630/2020, popularmente conhecido como “PL das Fake News”. Ou mais recentemente, com a decisão do Spotify em suspender suas atividades no Uruguai em virtude da aprovação de uma nova lei sobre direitos autorais no país.

Atualmente, a proposta brasileira de regulação de plataformas digitais aguarda votação na Câmara dos Deputados. Mesmo sendo um passo inicial importante para o estabelecimento de regras de transparência, auditoria e  prestação de contas, é preciso também  buscar por medidas estruturais, que limitem o modelo de negócios dessas empresas e diminuam os incentivos relacionados à coleta massiva de dados pessoais, além de conter possíveis conflitos de interesses. Ademais, é importante focar na construção de infraestruturas tecnológicas públicas, especialmente para serviços que são críticos e estratégicos para o país, oferecendo alternativas para as pessoas. Também é interessante o estabelecimento de um órgão administrativo especializado que fiscalize a conformidade das plataformas com o sistema regulatório e tenha certa margem legal para propor adaptações. Em suma, é preciso aprofundar a discussão sobre o tema, de modo a mitigar os riscos atrelados ao desenvolvimento das tecnologias e, ao mesmo tempo, promover a garantia dos direitos fundamentais e da democracia.

Rhaiana Valois

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), integrante do laboratório de Design Jurídico da USP e colaboradora, nos anos de 2019 a 2021, da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da OAB/PE. No IP.rec, atua na área de Regulação de Provedores da Internet.

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